segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Troca letras e palavras flutuantes...

Post vapt vupt...

Um dia, já há algum tempo, postei o poema de José Paulo Paes, Letra Mágica, a propósito do qual eu comentei sobre atividades em torno da noção de par mínimo. Eis o poema abaixo e o post aqui.

Letra Mágica

Que pode fazer você
para o elefante
tão deselegante
ficar elegante?
Ora, troque o f por g!

Mas se trocar, no rato,
o r por g,
transforma-o você
(veja que perigo!)
no seu pior inimigo: o gato.

Dessa vez o trago de novo para dar a dica de textos que brincam com essas trocas de letras, esse pareamento de palavras diferentes a partir de uma só diferença de fonema e letra. Brincadeira com os aspectos fonológicos e fonográficos da linguagem. Pura poesia também! 

Bom, e para provocar, são bons textos para, inclusive, nos lembrar das possibilidades de reflexão fonológica e fonográfica que a poesia nos oferece, muito mais gostosas do que o trabalho mecânico de treinamento fonológico que certos programas de alfabetização propõem. 

No livro A turma do ABC, de Fátima Miguez, Nova Fronteira, vários são os pequenos textinhos poéticos que trazem duas ou três palavras formadas por par mínimo. São bem simples, mas bem lúdicos e dão boas brincadeiras. Eis dois deles:

Salta o S do sapo,
o P entra no papo...
O sapo está no papo
ou é papo de sapo?

O Z de zoada
faz muita zoeira,
prefiro o T de toada.
É som de primeira.


O livro História em três atos, de Bartolomeu Campos de Queirós, da Global, brinca com os três atos: o ato do gato, o ato do pato, o ato do rato... E na história, outras ressonâncias sonoras aparecem, como as aliterações do fonema /g/ em "O pato bica a garra do gato e engole o G" e fonema /p/ em "o gato arranha o pé do pato e papa o P". Esse livro foi presente de minha amiga Aline Moura. 

Essas brincadeiras de trocas de letras são muito interessantes para tornar observável o diferencial entre essas palavras que, no caso, aqui, diz respeito aos fonemas /g/, /p/ e /R/ e as letras que os representam G, P e R. Os fonemas consonantais, especialmente os oclusivos (como é o caso de /p/, /g/) - pois os fricativos e os vibrantes (como o /R/), por exemplo, são mais fáceis de serem isolados dos sons orais que os acompanham e, por consequência, mais fáceis de serem percebidos - são unidades muito abstratas para as crianças, que percebem o todo, a unidade silábica e, por um tempo, julgam que são essas as unidades representadas pelas letras. E elas percebem assim justamente porque a fala é co-articulada, pronunciamos a sílaba, não os fonemas isolados, e são os sons orais que constituem o núcleo da sílaba. 

Ora, para se alfabetizarem, ou melhor, no processo de se alfabetizarem, é certo que as crianças precisam se dar conta dessas unidades fonêmicas. Mas, diferente de treinamentos fonêmicos sem sentido algum para elas, isso é perfeitamente possível de ser feito através de atividades de reflexão fonológica (fonêmica) em presença da escrita - ver as palavras escritas, compará-las, ajuda as crianças a observarem as diferenças gráficas (entre as letras) e associarem essa diferença às diferenças fonológicas de cada palavra, que é a diferença que o fonema, justamente, implica. Ou seja, a consciência fonêmica vem a partir da análise do escrito. E observar fazer isso brincando com a poesia da linguagem é muito mais divertido, implicado e contundente! 

O que dizer, por exemplo, da poesia de Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles, livro que é cheio dessas brincadeiras com rimas, pares mínimos, assonâncias e aliterações? São recursos estilísticos da poesia, que, propondo mil ressonâncias das palavras umas nas outras, conferem musicalidade e ritmo às estrofes - e constituem em matéria fantástica para a reflexão sobre a língua! Vejam esse, Tanta tinta, que adoro:


Tanta Tinta

Ah! Menina tonta
toda suja de tinta
mal o céu desponta!
(Sentou-se na ponte,
muito desatenta…
E agora se espanta:
Quem é que a ponte pinta
com tanta tinta?…)
A ponte aponta
e se desaponta
A tontinha tenta
limpar a tinta
ponto por ponto
e pinta por pinta…

Ah! a menina tonta!
Não viu a tinta da ponte.

Bom, e lógico, muitos outros autores brincam com essas trocas fonêmicas, como o próprio José Paulo Paes, autor que, aliás, tem muitas maravilhas de poemas em que outros jogos de palavras aparecem, como alguns do Uma letra puxa a outra, que é parte do kit Arquivo Alfabético Poético, postado aqui. Mas vale à pena lembrar alguns, especialmente aqueles em que acrescentando-se letras vão surgindo outras palavras... Note que nem sempre a palavra está de fato presente, mas só aludida pelo sentido do enunciado, como Cabral, palavra aludida no verso que diz que a letra L faz "cabra descobrir o Brasil". Eis alguns:

L é uma letra louca
e faz a uva andar de luva
transforma a nota mi em 1000
cabra descobrir o Brasil

É com o H
Que a filha sai da fila,
Que malha sai da mala.
Com H a mana faz manha.

São textinhos muito indicados para as crianças prestarem atenção na escrita das palavras, na mudança mínima de fonema que faz com que as palavras mudem completamente, ótimos para as reflexões do processo de alfabetização! Dá para fazer várias brincadeiras...  

Mas considerando que poemas são constituídos dos significantes e significados das palavras, do jogo entre essas duas faces do signo linguístico, ambos colaborando com a construção de sentido e na poesia do texto, além dos jogos com os sons e grafia, temos também jogos com os significados das palavras.  

Assim, se alguns poemas propõem esse jogo com a mudança das palavras pela troca, inclusão, acréscimo ou substituição de letras,  outros trazem o foco nos diferentes significados de uma mesma palavra, brincando com a semântica da língua, com figuras de linguagem, figuras de estilo - e não mais com os aspectos fonológicos e gráficos. José Paulo Paes mesmo tem os poemas "Inutilidades", Pura verdade" e "Atenção, Detetive", obras de puro deleite semântico.

Atenção Detetive

Se você for detetive
Descubra por mim
Que ladrão roubou o cofre
Do banco do jardim
E que padre disse amém
Para o amendoim

Se você for detetive
Faça um bom trabalho
Me encontre o dentista
Que arrancou o dente do alho
E a vassoura sabida
Que deixou a louca varrida

Se você for detetive
Um último lembrete
Onde foi que esconderam
As mangas do colete
E quem matou o piolho
Da cabeça do alfinete.


Inutilidades

Ninguém coça as costas da cadeira.
Ninguém chupa a manga da camisa.
O piano jamais abana a cauda.
Tem asa, porém não voa, a xícara.

De que serve o pé da mesa se não anda?
E a boca da calça se não fala nunca?
Nem sempre o botão está em sua casa.
O dente de alho não morde coisa alguma.

Ah! se trotassem os cavalos do motor ...
Ah! se fosse de circo o macaco do carro ...
Então a menina dos olhos comeria
Até bolo esportivo e bala de revólver.

Ele brinca aí com a polissemia das palavras e com a figura de estilo chamada de catacrese, que é quando se usa emprestada uma palavra em seu sentido figurado por falta de uma palavra própria. Mesa não em pé, cadeira não tem costas, tomamos emprestado esses termos usados para seres vivos e usamos para esses objetos. Assim como cabeça ou dente de alho...eis a catacrese. E usar simultaneamente os dois sentidos de banco, manga, cavalos, bala, etc, é brincar poeticamente com a polissemia das palavras. Vê que a graça está em captar ao mesmo tempo os dois sentidos - ao menos- dessas palavras? Muito bacana, não é?

Um outro texto que acho bacana que explora a catacrese é a lista de "coisas que não servem para nada", do livro Listas Fabulosas, de Eva Furnari, da Moderna. A lista é assim:


Coisas que não servem para nada


1. Depilar perna de mesa
2. Calçar sapato em pé de feijão
3. Passar esmalte em unha de gato
4. Por colírio no olho do furacão
5. Descascar a batata da perna
6. Passar batom na boca do balão
7. Fazer massagem nas costas da cadeira

Essa é a lista da Olfa, membro do Clube das Listas. Tem outras listas lá! Minha preferida: Lista dos nomes preferidos de duplas caipiras, da Dárdara (Eva Furnari e seus nomes estramboticamente engraçados). Só para deixar um gostinho: Cisco e Farelo; Abóbora e Celeste! Rsrsrsrs, essa Eva! Aliás, veja que abóbora aí está no nosso tema - trocas de letras -afinal, faz uma referência à expressão abóbada celeste, não é? 

Bom, mas voltando a José Paulo Paes, olha como ele usa a polissemia e essa figura de estilo - a catacrese - também no seu poema Pura verdade, em que fala de "braço de mar coçando o sovaco", de "ângulo obtuso ficar inteligente e a boca da noite palitar os dentes", de "pé de vento calçar as botinas" e de "cavalo-motor sacudir as crinas". E o autor fecha o poema brincando com o aparente ilogismo, dizendo: "É a pura verdade/A mais nem um til/E tudo aconteceu/Num primeiro de abril"! 

Desse tipo de jogo com a semântica, com a polissemia, muito bacana também é o livro Isso, isso, de Selma Maria, da Peirópolis, em que a autora traz coisas assim, em forma de verbetes, imagens poéticas muito interessantes:

Biruta
A pessoa quanto mais biruta fica mais se perde no pensamento
A biruta quanto mais biruta fica mais acerta a direção do vento.

Bamba
A piada bamba faz rir
A corda bamba faz cair.


Canto
Um gato acha seu canto dentro da casa
o passarinho solta seu canto lá na mata.

Bom, quanto a isso, é a própria matéria da poesia, não é? Figuras de linguagem, de estilo, imagens poéticas, brincadeira com os sons e significados... Matéria de fazer poema, matéria de fazer linguagem, tudo a ver com aprender sobre a língua...

No processo de produção para a Feira de Livros da escola onde trabalho, fizemos  oficinas de poesia com várias propostas de "desembolorar" as palavras, brincando com a polissemia, as metáforas, os sentidos literais e conotativos, a construção de imagens poéticas... Esse livro foi muito usado nessas aventuras poéticas, com os professores e com as crianças! 

É isso, gente! 
Ah, completem essa leitura com o post antigo, citado, que você pode ver aqui.
Beijos,
Lica

14 comentários:

  1. Eu queria ser criança de novo para aprender assim... delícia professora!
    Taíse

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  2. Que maravilha!
    Tudo delícia!
    Viva a poesia, viva a brincadeira com as palavras!
    Leila

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  3. Viva!!!
    Tem tanta coisa deliciosa para fazer com textos e crianças...

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  4. Gostei das dicas dos livros.
    Me indique alguns livros para crianças do 3ºao 5ºano. Sou estagiária e vou trabalhar em oficina de alfabetização e letramento.
    Beijos!
    Email: martalopecar@terra.com.br

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  5. Marta,
    Tudo bem?
    Há infinitos livros para essa faixa etária também...embora minha especialidade sejam os livros para os menores.
    Precisaria ter alguma ideia de que tipo de livro e para que você queria, para poder sugerir alguns, porque é muito vasto o repertório.
    Qualquer coisa, me escreva no email indicado na coluna à direita da tela, ok?
    Bj,
    Lica

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  6. Eita, Lica!!!
    Tinha perdido esse post!! Li hoje, que maravilha! Vou usar o Detetive!
    Dez!!!
    Beijos,
    Ana

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  7. E foi, Aninha?
    Adoro esses poemas e essas brincadeiras!
    Boa investigação das palavras para vocês!
    Bjão,
    Lica

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  8. Amei o seu blog, quantas ideias e criatividade.
    Estou iniciando um blog, ainda engatinhando, sobre as formações do PNAIC em nosso município.
    Seu blog me inspirou e divulgarei a todos os nossos professores alfabetizadores.
    Parabéns!

    Alba Leide Lima Viana
    Sítio Novo - MA
    sitionovopnaic.blogspot.com.br

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  9. Obrigada, Alba!
    Façam bom proveito!
    um abraço,
    Lica

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  10. Barbara de Jesus Santos, EDCB85 2019.2


    O interessante deste post é como podemos valorizar a brincadeira, que é parte fundante da construção de conhecimentos nas crianças, trazendo uma intersecção entre a brincadeira, a literatura e o processo de alfabetização e letramento, assim fugindo do modelo tradicional. Como é falado no post, possibilita a reflexão fonológica e fonográfica de maneira muito mais prazerosa, creio eu que tanto para o/a profissional de educação quanto para os/as pequenos/as que estão na descoberta das funções da língua nesse mundo letrada em que vivem desde o nascimento.

    Outro aspecto que considero importante neste post são as indicações, pois muitas vezes por não termos tido acesso a um processo de alfabetização mais amplo, não só restrito a decodificação do sistema alfabético, não sabemos onde buscar materiais que nos dê suporte nesse processo. Por este motivo é importante à difusão de conhecimentos e materiais. É sempre muito prazeroso saber que existe gente produzindo materiais que trazem reflexões não só para as crianças, mas também para as/os profissionais de educação em suas práticas.

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    1. Olá, Bárbara, que bacana seu comentário!
      De fato, a literatura traz mobiliza o sujeito com sua função lúdica e estética, para além do entretenimento, de forma fundante!
      Penso que a formação de professores não se restringe aos conhecimentos teóricos - sobre a pedagogia e sobre os objetos de conhecimentos a serem ensinados -, os conhecimentos didáticos e a prática, mas também envolve ampliação de repertório cultural e profissional. Conhecer livros de literatura, autores, gêneros da tradição oral, jogos orais e "de mesa", produções audiovisuais, etc, me parece constituir um aspecto importante dessa formação. Tento fazê-lo nos espaços que tenho, como no início da aula e aqui - e por isso também insisto em investir nessa ação de fazê-los interagir com o blog.
      Muito obrigada por esse reconhecimento.

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  11. Gente! Até a Cecilia Meireiles brincando com os fonemas. Rsrs
    A gente estuda tanto e todo dia aprend uma nova coisinha que reacende e renova velhos aprendizados. gostei muito dessas brincadeiras com as palavras, Professora Liane. Parabéns pelas postagens. Será de grande ajuda durante meus trabalhos.

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    1. Jeane, a matéria da poesia é também matéria da alfabetização! A repetição de fonemas em um texto - como em poemas e trava-línguas, por exemplo - tanto é recurso poético quanto unidade de consciência fonológica. As aliterações e assonâncias são usadas por muitos poetas...e ajudam na consciência fonológica. As rimas - sonoridade que é rainha na poesia - é também unidade fonológica na alfabetização. Vê?
      Por isso, a abordagem da dimensão fonológica na alfabetização pode se dar na continuidade e em contexto das práticas lúdicas, letradas, poéticas.
      Essa é a minha defesa!!!
      E assim, estamos abordando unidades importantes da do processo de alfabetização, mas BEEEEEMMM distante dos procedimentos mecânicos e artificiais dos métodos fônicos...
      Obrigada, Jeane!

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