terça-feira, 5 de setembro de 2017

Décima provocação sobre o abecê nordestino


Essa décima provocação é para divulgar mais sobre o documentário O sertão como se fala, sobre o modo de nomear as letras no Nordeste, mas também, sempre oportunidade de rediscutir sobre a questão.

Um programa de TV da Assembleia Legislativa de Minas Gerais fez uma entrevista com Leandro Lopes, realizador do filme O Sertão como se fala. O mote do documentário é o abecedário nordestino, mas o filme é muito mais do que sobre isso! No momento está correndo festivais, mas, em breve, será disponibilizado. Assistam!

Enquanto isso, vejam a entrevista, em três partes.

Parte 1: nessa parte, o documentário é apresentado e se discute, basicamente, a questão do abecedário e as questões culturais da região.


Como estou estudando sobre o tema, não posso deixar de comentar uma ou outra coisa. Como temos visto por aqui, nos posts sobre o tema, enfatizo que, na Bahia, esse abecê não é apenas do sertão, mas também da capital. Gerações e gerações de soteropolitanos, assim como os baianos do interior, aprenderam assim. E ainda se ensina em algumas escolas... O sertão, seja em sua definição geográfica, como sub-região do Nordeste, seja em sua construção cultural identitária e imaginária, não abarca a cidade de Salvador. Por isso, tenho dito que prefiro falar em abecê nordestino, embora eu reconheça sua forte identidade sertaneja.

Além disso, como também já insisti, trata-se de nomes de letras, não de sons. Letras mais próximos dos seus “sons” – da fonética, como Leandro ressalta – mas são nomes também. Por que é engraçado que esses nomes, fê, guê, ji, lê, mê, nê, rê, si, sejam associados à fonética, ao som, mas bê, cê, dê, pê, quê, tê, vê e não o sejam...e tenham, sem pestanejar, o status de nomes de letras? Esse argumento se desfaz quando entendemos que em sua própria origem, o alfabeto trazia, em sua essência, essa ideia de o nome das letras darem pistas dos seus sons.

Parte 2: nessa parte, a conversa é mais sobre o sistema de financiamento do filme.


Parte 3: nessa parte, conversa-se sobre a viagem, a operacionalização do projeto, mas também retoma-se a questão do abecê, lá entre os minutos 6:28 a 8’. E dou essa precisão apenas porque quero fazer outra observação aqui.


Leandro defende o abecê do sertão como identidade cultural dos nordestinos sertanejos, e teve a curiosidade e a iniciativa de correr o Nordeste para mapear, em forma de documentário, a quantas anda essa questão hoje. Ainda assim, acolhe a naturalidade de seu desaparecimento, talvez por tomá-lo como um modo circunstancial de falar o abecê, apenas no sertão, apenas no momento da alfabetização.

Eu não acho que o "esquecimento", a "perda" desse abecê, seja um processo tão natural assim... Depende do que seja isso de "natural"... O processo histórico é natural? O que acho é que há forças de "colonização" e de discriminação que atuam aí, e que podemos, sim, ao menos, criar resistência, pelo conhecimento, pelo reconhecimento... como é o que eu tento aqui contribuir, com esse estudo, que é como eles também contribuem com o filme. Penso que o Doc talvez possa mais do que ele pretende – que o abecê do sertão viva como memória. Tomara!

Tudo bem defender que nosso abecê viva, ao menos, como registro histórico. Mas eu, de minha parte, quero mais! Como baiana, educadora, “alfabetizadora”, que vejo ele ainda por aí nas nossas escolas, na recitação de nossas crianças, na referência de adultos em situações cotidianas em que referir-se às letras se faz necessário, acho que, pelo menos na Bahia, ele pode ter vida para além da memória. Eu, que o vejo para além do sertão, para além do Nordeste – como um dos modos de falar o alfabeto no Brasil – torço para que permaneça vivo mais do que como história!

Precisamos, nós nordestinos, reconhecer esse modo de nomear as letras como um modo nosso, tão funcional e correto quanto o outro, conhecer sua história, sua legitimidade cultural e linguística, para que o Brasil todo também possa conhecê-lo e reconhecê-lo!

Para assistir ao filme: 
Lica

6 comentários:

  1. Gostei da proposta do documentário, achei que ele busca ressignificar o "Sertão" - a cultura, o povo, o modo de falar... mostrar o sertão a partir de outras narrativas que não a dominante no imaginário social. Compactuo da crítica feita por você Liane, acho que para além de um registro histórico podemos mostrar o quanto esse abc é vivo em diversas regiões do nosso país e que, portanto, ele não pode ser desprezado. Procurei o documentário aqui para assistir e não achei, sabe onde posso encontrar?

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    1. Oxente, Ana Paula, está qui sim, em outro post. veja: http://oficinasdealfabetizacao.blogspot.com.br/2017/10/sertao-como-se-fala.html
      E também na página do deles no Facebook:
      https://www.facebook.com/sertaocomosefala/
      Veja aí!

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  2. Muito interessante a proposta do documentário! A colonização,como citado no seu texto, nos fez introjetar esse processo de esquecimento do abc nordestino.. como um epistemicideo. ( assim como foi e tem sido feito contra a cultura indígena). Enfatizar esse tema é uma forma de resistência, para que o abecedário nordestino, que também é um elemento cultural brasileiro , não se restrinja somente ao Sertão. Além da desconstrução da ideia de Sertao como lugar de pobreza. Seca e a Caatinga São fenômenos naturais, a pobreza é consequência da política que falha em resolver os problemas da transportação de água e distribuição de elementos essenciais para qualidade de vida das pessoas que ali residem.
    Gostei muito do parágrafo final do texto, no qual é abordado a importância do reconhecimento das letras como identidade cultural nossa, tão legítima e historicamente importante quanto a linguagem formal e padrão. Acrescento o papel da escola e da universidade enquanto instrumentos para ressaltar esse abcdario. São poucos os espaços como esse que podemos ler, e reconhecer a importância da fonética e da linguagem oral, como essenciais para as nossas identidades culturais, nordestinas e sertanejas. Como reconhecer nossa legitimidade cultural se os espaços que temos não utilizamos para que isso seja feito? Qual o papel da universidade para a formação de pessoas descolonizadas, de maneira que reconheçam, enfatizem, e não deixem que esse tipo de temática caia somente no imaginário histórico e popular? Como tornar espaços como esse acessíveis a maiores pessoas, espaços, de forma horizontal e democrática? E como tornar essa temática interessante aos jovens, crianças e adolescentes, sem que isso se torne mais um elemento conteudista?

    São perguntas e reflexões que me fiz ao longo do texto!

    Anna Izabel Bi em humanidades
    Alfabetização e Letramento

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    1. Olá, Anna Izabel!
      Que boas reflexões!
      Pois é...esse estudo que estou fazendo visa justamente a isso, levar a discussão a mais pessoas, pois, de fato, é grande o desconhecimento e o preconceito com esse nosso jeito de nomear as letras.
      Você viu o post sobre isso, sobre esse desconhecimento e preconceito? É aqui:
      https://oficinasdealfabetizacao.blogspot.com/2017/07/quinta-provocacao-sobre-o-abece.html

      Espero, de verdade, que com essa pesquisa e estudo, vocês que vêm aqui me ajudem a divulgar mais essa temática.
      Vai ter um pequeno livro, que vou disponibilizar on-line e também artigos, que divulgarei quando for a ocasião.
      Leve lá ao seu BI!
      Vamos que vamos!
      Abraço,
      Lica

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  3. Estava procurando por esse alfabeto e achei seu post. A origem dele é algo que sempre me intrigou. Meus avós embora não soubessem escrever haviam aprendido assim. Meu pai embora não tenha nem o fundamental , aprendeu assim e fez questão de me ensinar.
    Fico muito feliz em ver que outros lugares também fazem assim. Minha inferência e hipótese dada a pesquisa genealógica é que esteja relacionada aos cristãos-novos judaizantes. Quando comecei a aprender hebraico fiquei muito curioso ao perceber que os sons do alfabeto que pai pronuncia existe em hebraico: fe ( פ) , gue/guimel ( ג ) , re (ר ) , sin (ש ) .
    Quando vejo as pronúncias do ladino (espanhol + hebraico) ou idish (alemão + hebraico) as letras lamed (ל), men (מ) e nun (נ) parecem uma variante destas letras.
    Já a pronúncia do J com ji, lembra muito a fonetica da letra árabe jim ( ). Considerando que os cristãos novos fugiram da Espanha para Portugal e de Portugal para o Brasil devido a inquisição que expulsou árabes e judeus da Europa , a pronúncia do alfabeto nesse formato e presente nas regiões com maior números de descendentes de cristão novos, para mim faz muito sentido.

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    1. Olá, anônimo/a!
      Muitas são as hipóteses possíveis, muita pesquisa seria necessária para descobrir a verdadeira origem do nosso abecê dito assim. Na verdade, pode até haver influências múltiplas. Você não falou de onde você e seus familiares são... ajudaria...
      Fato é que há outras motivações. Vocês viu o post que trata disso?

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