domingo, 26 de agosto de 2018

E os fonemas?

Nesse post, vamos falar de consciência fonêmica e grafofonêmica/fonografêmica, ou seja, a consciência metalinguística relativa ao fonema e a sua relação com a grafia. Aos que são estudiosos da área de letras, indico a observação no final da postagem, certo?

Embora a unidade fonológica que estrutura o sistema de escrita alfabética seja o fonema - pois os grafemas notam os fonemas, a reflexão fonológica sobre rimas e sílabas é muito importante para chamar a atenção para a dimensão sonora da língua e as diversas segmentações da palavra, importante na alfabetização inicial e, de qualquer modo, conferem um perfil analítico à língua. A consciência fonológica de rimas, sílabas e fonemas vocálicos contribui para a fonetização da escrita e para os avanços rumo à compreensão do funcionamento alfabético da notação da língua. A sílaba, em especial, contribui muito para o entendimento gradual de que o que as letras notam são os fonemas.

Para compreender o funcionamento alfabético, é preciso ir além dessas unidades fonológicas, e analisar as sílabas - unidade mínima de emissão sonora e, por isso muito mais natural para sujeitos não alfabetizados - em unidades menores, desenvolvendo a consciência fonêmica. Mas esse subtipo de consciência fonológica, diferente de ser prévia à escrita, se desenvolve junto à apropriação da notação alfabética. A análise oral apoia-se na palavra escrita e essa amplia a análise do oral. O fonema consonantal é uma unidade fonológica muito abstrata para quem não é alfabetizado. E por que isso?  

Os fonemas vocálicos soam, não é mesmo? As vogais são essas letras que representam sons que soam isoladamente, que não encontram obstáculos ao serem pronunciadas, e seus nomes coincidem com seus sons (ou alguns dos sons que assumem). Então é bem fácil observá-los oralmente e associá-los às letras que representam. Entretanto, os fonemas consonantais não soam isoladamente. Eles "soam com" - o nome consoante vem justamente daí, já pensou nisso? E soam com quem? Com as vogais! Por isso são tão abstratos, eles não são pronunciáveis nem perceptíveis isoladamente, porque a mínima emissão sonora é silábica - dizemos MA-LA, não M-A-L-A, não é? Além disso, é preciso considerar também que o fonema é uma unidade mental, não um som, pois a sua materialização pode ser de sons diferentes: a palavra DIA por exemplo, pode ser pronunciada como /Dia/, como se diz em algumas partes do Nordeste, ou algo como /djia/, com um chiadinho. O som muda, a palavra não. Então trata-se de um só fonema, pois a troca de fonemas troca, necessariamente, a palavra - esse é o conceito de fonema, ser uma unidade distintiva. Então, o que temos aí são alofones, dois fones diferentes, para o mesmo fonema. Fone é a materialização sonora do fonema. Parece complicado, não é? Mas é isso que garante que as palavras, seja lá a variedade linguística em que forem pronunciadas, continuem sendo a mesma palavra.

E como a unidade mínima de emissão sonora é silábica, pois não pronunciamos fones isoladamente, a não ser no contexto do ensino do sistema alfabético, a consciência dos fonemas não se dá pela emissão sonora (que é silábica), mas no contato com a própria escrita alfabética. O fonema consonantal não preexiste ao sistema alfabético como unidade sonora, tomar consciência da existência dessas unidades mínimas vem da necessidade de relacioná-las aos grafemas da escrita. Assim, é em situações de reflexão sobre as palavras escritas que o fonema ganha materialidade e pode, então, ser analisado pelas crianças. A presença da escrita amplia as possibilidades de análise fonológica, pois a escrita fornece um modelo de análise para o oral. É por isso que podemos dizer que a consciência fonêmica é, na verdade, consciência grafofonêmica. 

A consciência fonêmica não implica, necessariamente, a habilidade de pronunciar fonemas isolados e a segmentação artificial das palavras oralmente em todos os seus fonemas, como propõe a perspectiva dos defensores dos métodos fônicos. Mas também não há isso de achar que é impossível ter consciência fonêmica antes de estar alfabetizado. A relação entre consciência fonêmica e capacidade de leitura e escrita da notação alfabética é de causalidade recíproca, uma vai ampliando a outra, algumas habilidades são necessárias para se alfabetizar e outras se desenvolvem com a compreensão gradual do sistema. Há diferentes habilidades relativas ao fonema, umas, inclusive, são difíceis mesmo para os já alfabetizados. Por isso, é importante que as situações de reflexão sobre os fonemas se dêem em presença da escrita, se constituindo, na verdade, como consciência grafofonêmica. 

De todo modo, é bom ter em mente que, ainda assim, podemos brincar oralmente com os fones em duas situações, primordialmente:
  • “Esticando” os fricativos (/f/, /v/, /x/, /j/, /z/, /s/) e vibrantes (/R/, /r/ - R forte e fraco), numa tentativa de pronúncia isolada, em situações de jogo com a língua. Os fricativos são esses fonemas que friccionam, cujo obstáculo ao serem pronunciados não é total, mas parcial. Brincar de achar figuras que começam como "xxxxxxícara"..."xxxxxxá" (lembre que é o som que vale, não a letra, como o som /ssss/, pode ser sapo, cinto, cinema, sala, cera...); Lá vai a barquinha carregadinha de /sssss/sapo, /sssss/sorvete, /ssss/cinto...
  • Em sua repetição, aliteração, como nos trava-línguas – e aí, mesmo os fonemas oclusivos, mais difíceis de serem percebidos e pronunciados isoladamente, se tornam mais salientes. Os oclusivos são os fonemas que encontram obstáculo total ao serem pronunciados (/p/, /t/, /d/, /b/, /g/, /k/...).  Nos trava-línguas, mesmo os fonemas oclusivos se tornam observáveis por sua repetição: repare o /p/ se "amostrando" em “A pipa pinga, o pinto pia, quanto mais o pinto pia, mais a pipa pinga”  ou em “O peito do pé de Pedro é preto”.
É bom ressaltar que seja apenas brincando, seja já analisando oralmente essa unidade que trava a língua, seja observando essa repetição também no texto escrito, o trava-língua contribui para alfabetizar - no nível epilinguístico, ainda não muito consciente, controlado, explícito, apenas brincando; e, depois, no nível metalinguístico, de consciência fonêmica, analisando essas aliterações oralmente (observar o som que se repete e trava a língua) ou em presença da escrita (que letras indicam, no trava-língua escrito, as sonoridades que dificultam a pronúncia). 

Alguns autores, como Morais (2019), indicam que, em termos de consciência fonêmica, para se alfabetizar, basta identificar palavras que começam com o mesmo fonema e produzir palavras que começam o mesmo fonema que outra, tendo relação com a consciência de aliterações. Segmentar palavras em fonemas e contá-los, bem como ouvir e produzir fonemas isolados não seriam habilidades necessárias para se alfabetizar.

O sistema alfabético é um sistema complexo, não um código de transcrição da fala e, portanto, não se trata de memorizar e treinar associações entre fonemas e grafemas. Trata-se de atividade cognitiva, metacognitiva. Assim, se quando falamos em consciência fonêmica não se trata de artificializar a língua, pronunciando os fonemas de uma palavra isoladamente, nem de aprender os sons das letras fora do contexto das palavras, memorizando mecanicamente suas associações com os grafemas, qual seria, então, a abordagem da unidade fonema - além dessas brincadeiras orais - nas situações de reflexão linguística em presença da escrita? 

Acredito que a abordagem vai em duas direções, principalmente, que envolvem dois aspectos interessantes do fonema, que nos ajudam a refletir sobre isso: sua propriedade como unidade distintiva e sua propriedade de invariância (desculpem a simplificação, para os que são de letras e estudam fonologia). Vamos lá?

Como o aspecto distintivo define o fonema, começaremos por ele. E isso quer dizer o que? Fonema é uma unidade distintiva em uma língua, isso quer dizer que, se for trocado por outro em uma palavra, tem-se uma nova palavra, com um sentido diferente. Por exemplo, PATO e RATO são duas palavras diferentes, pois trocando o som /p/ pelo som /R/, mudou o sentido da palavra. Desse modo, /p/ e /R/, nesse contexto, são fonemas, fonemas diferentes. Ou seja, os fonemas existem nessa oposição a outros fonemas, a troca de um fonema em uma palavra forma, necessariamente, outra. Nesse exemplo, mudando-se apenas o fonema inicial, mudou a palavra e se um determinado som é distintivo, configura-se como um fonema. É importante sublinhar que o uso dos fones /R/ ou /r/ na palavra PORTA não muda a palavra, ela pode ser pronunciada com o R forte ou fraco, continua sendo uma porta, nesse caso são alofones, realizações fonéticas diferentes devido a variações dialetais. Ou seja o fonema /R/, por exemplo, ora é fonema (PATO-RATO), ora é alofone (/poRta/ x /porta/, com som forte e som fraco. Nesse caso, há perda do contraste fonêmico, há apenas variação de fones.

Desse modo, trabalhar as trocas de fonemas/letras iniciais é fundamental para a consciência grafofonêmica.. Há jogos e materiais estruturados que focam, justamente, essas comutações, como alguns do meu acervo (Adivinhas par mínimo, foto abaixo), jogos comerciais (como o Boggle Slam) e do acervo do CEEL (Bingo de Sons Iniciais, foto abaixo). 




Palavras que se distinguem apenas por um fonema  - e não necessariamente o inicial - são definidas  como pares mínimos, que são também muito usados como recurso poético. Sobre isso, veja nesse post sobre isso no poema O Colar de Carolina, de Cecília Meireles. No poema “Tanta Tinta”, da mesma autora, ela brinca também com os termos TINTA, TONTA, TENTA, pares mínimos que fazem a festa no poema, e ainda os desdobra em outras palavras. Os pares mínimos são sonoros e, por isso, servem muito bem à poesia! E eles têm muito a ver também com consciência fonêmica. Todos esses recursos que Cecília usa em seus poemas (e muitos outros autores), são matéria prima da poesia e também matéria prima da alfabetização! Para saber mais sobre o par mínimo e ver algumas brincadeiras envolvendo a alfabetização, veja essa postagem aqui mesmo no blog.  

Vê como  o aspecto distintivo do fonema está em jogos e na literatura? E na tradição oral, também pode estar! Nesse exemplo de atividade abaixo, a partir da parlenda “Cadê o toucinho que estava aqui?” também vemos essa abordagem:

Depois de brincar com a parlenda, saber se conheciam e as diferentes versões que conheciam, de pesquisar essas versões, a professora colocou no quadro uma delas:

Cadê o toicinho 
que estava aqui?
O gato comeu
Cadê o gato?
Foi pro mato
Cadê o mato?
O fogo queimou
Cadê o fogo?
A água apagou...

Depois disso, ela sugeriu à turma criar oralmente mais versos para essa parlenda, incluindo um rato e um pato nesse encadeamento, e deixou as crianças discutirem e acharem uma solução. Percebe que, nessa proposta, ela tanto brinca com esse repertório como tradição, herança de nosso povo, como gênero oral, que abriga várias versões, pois vai mudando no tempo e espaço, quanto como renovação desses textos da cultura da infância? Pois bem, depois de muitas  propostas e negociações para "renovar" essa parlenda, ela ficou assim:

Cadê o toicinho 
Que estava aqui?
O rato comeu
Cadê o rato?
O gato espantou.
Cadê o gato?
Saiu com o pato.
Cadê o pato?
Foi pro mato
Cadê o mato?
O fogo queimou
Cadê o fogo?
A água apagou...

Depois de discutirem sobre rimas, a professora colocou no quadro a parlenda escrita e quatro palavras do texto: RATO, GATO, PATO e MATO. E propôs analisarem as semelhanças das palavras rimadas em -ATO, e as crianças observaram que terminam com as mesmas letras, do som ATO. Observaram também que só mudando a letra inicial – e o som inicial – a palavra vira outra. 

O interessante dessa situação é que uma criança começou a experimentar escrever ATO com todas as consoantes do alfabeto, em ordem. A professora gostou da proposta e aproveitou na sua aula! Ela fez uma tabela, propondo que, depois de juntarem todas as consoantes com –ATO, separassem as palavras que existem das que não existem. As crianças foram sugerindo, discutindo, a professora, junto com elas, ajustando, e a tabela ficou assim:


A situação gerou ainda muitas conversas como por exemplo: sobre o que é BATO, CATO, LATO...que foram sugerindo frases e a professora conduzindo para que compreendessem que se trata de verbos conjugados; falaram sobre XATO existir no som, mas ser escrita com CH e não com X; sobre o significado de NATO, que acharam que não existia; sobre QATO não poder, porque Q sempre vem com U - essa é uma restrição da língua - e com U ia ficar QUA; falaram ainda que DATO não existe, mas DATA sim...Ou seja, a atividade favoreceu não apenas a consciência fonêmica em presença da escrita (grafofonêmica), mas outras conversas e aprendizagens muito produtivas sobre a língua, seus aspectos semânticos, morfológicos e ortográficos.  

Bom, mas por que é importante abordar essas comutações de fonemas/letras na alfabetização? Justamente devido ao que falamos antes: o fonema ganha materialidade ao ser observado no contexto da palavra escrita. Ao analisar RATO-GATO-PATO-MATO, os fonemas que as letras R, G, P e M representam, aparecem, ganham corpo. 

O mesmo acontece quando se trata da propriedade da invariância. A invariância diz respeito à identidade do fonema em itens lexicais (palavras) diferentes, ou seja, compreender, identificar e produzir um mesmo fonema em palavras distintas. É um aspecto da consciência fonêmica que, quando se trata do fonema inicial, envolve a aliteração, um nível importante de consciência fonológica, que pode ser considerado também no âmbito da consciência fonêmica. Vou falar sobre isso trazendo um exemplo. Meu filho Joaquim, uma vez indagou: "Ô, mãe, Zi de Ziraldo (estava lendo, a seu modo de menino de 5 anos, O menino maluquinho, de Ziraldo) e Zé (apelido do pai dele)...tem algo parecido e algo diferente..." Ele ficou pensativo. Pedi que pegasse o livro e olhasse o nome do pai dele escrito na geladeira (ele tinha uns imãs de letras e montava nossos nomes lá). E ele disse em tom de descoberta, analisando as duas palavras escritas: Zé e Ziraldo: "Aaaaah, o parecido é o Z e o diferente é o E de ZÉ e o I de ZI... o parecido é esse zzzzz (e fez o som)". Vejam que situação interessante de consciência fonêmica na oralidade, que se ampliou (caiu a ficha!) quando Joaquim foi confrontado com a escrita. É disso que se trata aqui. A observação das duas sílabas orais, analisando-as ainda de forma difusa, com uma sensibilidade fonológica a essa diferença fonêmica, em confronto com a escrita, se completou, apoiando a análise do oral. Ele pôde observar a unidade gráfica que representa uma unidade mínima fonológica, abstrata, que não tem uma realidade sonora de forma isolada, mas que no confronto com a palavra escrita, tomou corpo e se apresentou. Fantástico, não é?

Veja a proposta daquela mesma professora que trouxe a parlenda "Cadê o toucinho que estava aqui?", agora com o trava-língua "O rato roeu", para abordar a invariância do fonema. Depois de brincar de trava-línguas, de observar as aliterações do /R/, pedindo às crianças que prestassem atenção aos sons que travam e atrapalham a pronúncia, com a participação ativa das crianças, ela listou as palavras começadas por R do texto com o objetivo de chamar a atenção, através da aliteração, para a identidade do fonema, sua invariância em diferentes palavras. E isso para que as crianças tomassem consciência do fonema através de sua realização pelo grafema no contexto da palavra.


Em todas essas palavras há "algo parecido" no início, como o /z/ de Joaquim, não é? E esse som parecido é o /R/. Percebe que, nessa aliteração, nessa invariância, as crianças passam a prestar a atenção a esse fone? RA-RO-RE-RU-RI, todas essas sílabas, que de início poderiam lhes parecer muito diferentes (e, por isso, grafadas com caracteres diferentes), podem passar a ser analisadas em unidades menores, chamando a atenção ao fonema inicial. Por isso que argumento que as sílabas também ajudam às crianças chegarem no fonema, elas dão pistas sobre os fonemas que as compõem. Trata-se aí de consciência de aliterações, tanto no sentido dado na poesia - repetição de fonemas consonantais - quanto no sentido dado na psicologia cognitiva da leitura - coincidência de fonemas iniciais em duas ou mais palavras.

É importante dizer, no entanto, que, evidentemente, tanto o caráter distintivo quanto a invariância dizem respeito a fonemas em qualquer posição. Mas, o fonema inicial é muito saliente, chama mais a atenção e, por isso, focá-los já é suficiente para contribuir com a consciência fonêmica. Estudos mostram que essas propriedades podem ser generalizadas e, uma vez descobertas, podem ser aplicadas aos fonemas em geral, não precisando trabalhar isso com todos os fonemas em todas as posições nas palavras. 

Mas é importante chamar a atenção para outras particularidades dos sons menores que as sílabas, as unidades intrassilábicas. Observar que PATO e PRATO ou POTE e POSTE  têm algo de sutilmente diferente no som, apesar de sentidos tão distintos, é fundamental também nesse sentido. Colocar foco em unidades intrassilábicas, que são abundantes nos trava-línguas, além de preparar a consciência fonêmica - a mais difícil de todas, também é muito produtivo para trabalhar as sílabas complexas (o R e S aí configuram sílabas complexas, com encontro consonantal PRA ou travada POS). Quanto a isso, ver o post sobre o jogo Trave o trava-língua.

Uma observação importante quando se fala de invariância, é a questão da variação linguística e dos alofones nesse sentido, por isso retomo aqui esse ponto. O fonema é uma unidade concebida mentalmente, a materialidade do som é o fone. Os fones são os sons que, de fato, ocorrem na fala, inclusive os que estão envolvidos na variação da pronúncia das palavras. Ou seja, é fone que é a unidade sonora. No Glossário Ceale, lemos que "[...] nossa ortografia é baseada na relação fonema/grafema e não na relação som (fone)/letra. Se a ortografia tivesse como referência a relação som (fone)/letra, deveria representar qualquer variação de pronúncia e, consequentemente, de fones". O fonema é uma unidade abstrata, uma representação mental desse som, uma unidade que deve representar qualquer pronúncia regional, social, que possa ser dada a uma palavra. Por exemplo, na Bahia e em grande parte do Brasil, pronunciamos TIA como tchia, um som chiado do T, e em outros lugares, como em outras regiões do Nordeste, como tia. O fonema é o mesmo (não muda a palavra, lembra?), mas o fone sim (são alofones). Foi o que indiquei em relação ao se passa palavra DIA, em algumas regiões pronunciado DI, em outras, algo como DJI. A variação do fone não implica em outro fonema. Mesma coisa quem pronuncia poRta, com o R forte, e quem pronuncia porta, com o r fraco, tremido. O fonema é o mesmo, o fone não – lembra da definição de fonema como unidade distintiva das palavras? Pois é. Agora, nas palavras CARRO e CARO, a unidade aí é distintiva, pois nesse caso, muda-se a palavra. Assim, uma coisa são os fonemas (entidades abstratas da língua), que estruturam o sistema, outra são os fones e alofones de variedades linguísticas falada (entidades concretas da fala). 

Assim, simplificando bem, a propriedade da invariância, é de identidade, mas com essas pequenas variações possíveis, no nível dos fones, dos sons concretos, como nesses casos. Bom, já deu para notar que o conceito de fonema é bem complexo. Ele vem da fonologia, uma área da linguística, mas é um conceito importante para o alfabetizador e, inclusive, para uma abordagem consistente da variação linguística no processo de apropriação da escrita. É preciso diferenciar o que são as relações entre fonemas e grafemas e o que é variação do fone em determinada variedade linguística, não confundindo essas duas coisas, que pode gerar, inclusive, conclusões errôneas que define pronúncias como certa ou errada. Além disso, o sistema de escrita, em última instância, representa arbitrária e convencionalmente a língua falada, não codificam diretamente os sons da fala, senão escreveríamos como se fala, não é?

Tanto a invariância do fonema (sua identidade em diferentes palavras), com “O rato roeu”, quanto o fonema como unidade distintiva, como na situação a partir da parlenda “Cadê o toucinho?”, são propriedades que as crianças podem observar em situações de consciência fonêmica em presença da escrita. E jogos, textos da tradição e a poesia literária podem contribuir com o desenvolvimento da consciência fonêmica/grafofonêmica e a apropriação de conhecimentos sobre o funcionamento alfabético da notação escrita, em contextos lúdicos e letrados. Lembrem que a matéria prima da poesia é também matéria prima da alfabetização. Desde que o texto seja contexto e não pretexto para a análise linguística, podemos aprender sobre a língua ao mesmo tempo em que aprendemos sobre a linguagem poética, seus recursos expressivos, suas belezas.  

É isso, gente!

Observação: pessoal de letras, estudiosos da fonologia. Sei bem que o que tento aqui é uma simplificação enorme da complexidade do conceito de fonema e tudo o que ele envolve. Sei também que há correntes diferentes no âmbito da fonologia tanto na história quanto tomada no campo conceitual atual. Espero que me perdoem a possível heresia, mas preciso tornar um assunto complexo, abstrato, e tão importante, para o alfabetizador, minimamente palatável às professoras e professores, articulando-o também à prática pedagógica. Não me ocupo da fonologia pura, mas aplicada, aos que terão a generosidade de me corrigir por algum deslize grave, aceito contribuições de bom grado. Sou diletante na linguística, mas sei de meu papel como educadora.  

domingo, 12 de agosto de 2018

Faltando Vogais Trava-línguas

Seguindo o post anterior do jogo Trave o trava-língua, que é para crianças que já estão em processo de compreensão do funcionamento alfabético do sistema, sugiro aqui um outro jogo com esse gênero, mas agora para crianças que estão no processo inicial de fonetização da escrita. Como o jogo anterior, esse também está em processo de testagem com as crianças, pode não ser tão simples de jogar, no caso de crianças nesse nível de domínio da língua. Mesmo assim, apresento-o aqui.

O Faltando Vogais original é um jogo em que faltam as vogais nas palavras escritas, para que as crianças preencham a partir de lance de dado de vogais. No caso da versão Trava-línguas do jogo, os trava-línguas apresentados são aqueles que trazem assonâncias (repetições de fonemas vocálicos) ou alternâncias de fonemas vocálicos.

Embora os trava-línguas constituam um gênero da tradição oral muito propício para abordar a consciência fonêmica, a consciência de unidades intrassilábicas e as sílabas complexas, com crianças já em processo de apropriação do princípio alfabético, eles também pode ser produtivos para crianças menores, em processo inicial de fonetização da escrita. Isso porque, em alguns deles podemos também chamar a atenção para os sons das vogais e para a sua representação gráfica. Veja como o trava-língua seguinte chama a atenção para o A: “Iara amarra. A arara rara. A rara arara. De Araraquara”, e esse que embola pelos fonemas vocálicos: “O que é que o eco é? O eco é o que o eco é!” Analisar esses sons vocálicos oralmente e depois ver que letras os representam no texto escrito é muito bom para iniciar a fonetização da escrita. A identificação oral dos fonemas vocálicos é mais direta, pois são fonemas que soam (diferente dos fonemas consonantais que só soam com as vogais), e sua representação gráfica é facilitada pelo próprio nome da letra, que coincide com ao menos um dos sons que representa (as vogais letras são apenas 5, mas as vogais “sons” são 12: 5 vogais orais, 5 vogais nasais e o E e O fechados).  Assim, como dito no início, trata-se de um jogo que pode ser experimentado com crianças no início da fonetização da escrita, quando os fonemas vocálicos e sua representação pelas vogais ajudam a criança a compreender que a escrita representa a fala, e que o que se diz tem relação com a letra que deve ser escrita. Além de contribuir para usarem letras pertinentes (de fato presentes na sílaba que se quer grafar) quando representam segmentos silábicos por uma vogal apenas.

Embora o jogo Faltando Vogais Trava-línguas apresente os trava-línguas por escrito, é essencial brincar com eles oralmente, antes de propor o jogo, como insisto sempre. Isso por que se trata de um gênero de tradição oral, cuja função primordial é brincar com as palavras, travar a língua, se embolar na pronúncia, desafiar os tropeços do texto. Depois, para jogar o jogo, as crianças precisam memorizar os textos e isso é se dá pelas próprias necessidades do brincar.

Assim, depois de fazer um levantamento de quem sabe algum trava-língua e de brincar com eles, passa-se a focar a atenção na memorização do repertório do jogo. Após ouvir a professora dizê-los, pode-se propor memorizar cada um por vez, a partir de algumas estratégias:

- Dizê-los pausadamente, seguindo a enunciação da professora, palavra por palavra;

- Depois experimentar dizê-los baixinho, sussurrando, depois bem alto...com ajuda do(a) professor(a);
- Cada criança, em ordem na roda, ficar responsável por uma parte ou uma palavra do trava-língua e, na ordem estabelecida, dizê-las, sucessivamente, formando o todo;
- Dizê-los falando “pim” a cada palavra enunciada (ex. O pim rato pim roeu pim a pim roupa pim do pim rei pim de pim Roma pim), com a ajuda do(a) professor(a);
- Usar fichas com os trava-línguas com informações figurativas, para apoiar a memória (ver abaixo).
- Etc...


Após a brincadeira oral, a familiaridade e memorização das crianças em relação a esse repertório de trava-línguas, então o jogo pode ser proposto. Esse kit compõe-se de 8 cartelas de trava-línguas, ou seja, podem jogar oito crianças, cada uma com a sua cartela, jogando em pares, ou 16 crianças, jogando em dupla contra outras duplas. Compõe-se também de letras móveis para preencher as cartelas com as vogais faltantes, e 4 dados de vogais. 


Os dados devem conter as cinco vogais, uma em cada face e a face restante equivale ou a perder a vez ou a escolher a letra que precisa – o grupo tem que combinar a regra antes do início do jogo. Pode variar essa regra também em diferentes dias de jogo, experimentando as duas formas. Outra opção é essa face valer também a letra A, pois é uma letra mais frequente.

O kit contém ainda fichas de trava-línguas enigmáticos (com figuras) para ajudar a memorizar os textos (Essas fichas também se constituem, em tamanho maior, em um jogo à parte).

Sugere-se que as crianças joguem em duplas, para se ajudarem, mas se pode também jogar individualmente, a depender do grupo, das possibilidades das crianças. Pode começar em dupla e, quando estiverem familiarizados com o jogo, propor se querem jogar individualmente. Para turmas com uma quantidade de alunos que ultrapassa as cartelas do jogo, o professor deve planejar outros jogos para alternar o uso, ou fazer mais cartelas. Como o uso de jogos na sala de aula deve ser bem planejado, é importante contemplar crianças mais adiantadas com outros jogos que as desafiem em seu nível de domínio do sistema de escrita. Para algumas esse jogo envolvendo fonemas vocálicos pode ser ainda difícil (que não saibam ainda identificar e nomear as letras, por exemplo) e, para outras, muito fácil (crianças avançadas na fonetização da escrita, para as quais o foco nos fonemas consonantais é mais produtivos – pode-se fazer um Faltando consoantes para essas, ou outros jogos).

Cada dupla/criança recebe uma cartela com o trava-língua. Cada dupla/criança joga com outra dupla/criança, cada uma com sua cartela. Não tem importância se um trava-língua é um pouco maior que o outro, pois a sorte no dado também define o preenchimento. Mas é bom equilibrar as escolhas dos trava-línguas que vão ser “oponentes”, quanto a isso.


As letras móveis para preencher os textos ficam no meio, para todos terem acesso. Pode também fazer mais letras e colocar um punhado em cada mesa, com duas duplas ou duas crianças. Cada dupla/criança joga o dado na sua vez e pega a vogal indicada na face, caso precise dela para preencher seu texto. A cada jogada só pode pegar uma letra. Se a letra sorteada não servir, passa-se a vez para o outro jogador. Vence a dupla/criança que preencher primeiro a cartela. Mas como o jogo é de sorte, mais que tudo, as duplas/crianças podem se ajudar na decisão sobre que letra vai onde.

O jogo não é tão simples quanto o Faltando Vogais original, pois além de ter que ir ajustando o oral ao escrito para reconhecer as palavras e encontrar as vogais faltantes, é preciso também gerir várias palavras e vogais ao mesmo tempo. Talvez por isso mesmo, em sua avaliação, seja preciso adequar e, quiçá, até abandoná-lo. O professor pode ajudar a encontrar estratégias para isso – pode pedir que analisem o texto antes, anotando primeiro todas as vogais lacunadas do texto, para consultar durante o jogo, e saber quando cai no dado uma de que precisam. Pode-se, por outro lado, jogar valendo encontrar uma vogal de cada vez, na ordem das jogadas. Só passa à lacuna seguinte após completar a anterior.

Quando demora de sair a letra que precisam, pode jogar valendo lançar o dado 2 ou 3 vezes antes de passar a vez ao outro jogador.

O professor deve circular nas mesas ajudando-os a prestarem atenção no som das palavras para que possam encontrar a letra que deve ser posta em determinado lugar e a gerir as diferentes palavras lacunadas. 

Terminada a partida, as crianças podem trocar as cartelas e recomeçar!

NOTA POSTERIOR:O processo de avaliação, ainda em curso, já mostra que, diferente do Faltando Vogais original, no qual a criança precisa focar em apenas uma palavra ou um grupo pequeno de palavras por vez, indicadas por uma figura, o Trava-línguas faltando vogais, no entanto, pareceu muito complexo para as crianças nesse nível inicial de fonetização da escrita. O contexto textual exige que considerem muitos elementos ao mesmo tempo – texto, palavra, letras –, criando o desafio a mais de acompanhamento do texto e de identificação da palavra visada e um maior controle das palavras, ao tempo que também devem pensar nas unidades vocálicas nelas presentes. Ademais, não sendo compostas apenas de sílabas simples, as palavras do texto dificultam a análise dos sons vocálicos faltantes. Mesmo sabendo a maioria dos textos de memória, apenas algumas crianças (grupo 5 de uma escola privada e do 2º ano de uma escola pública), em níveis iniciais de fonetização da escrita, conseguiram preencher, e com esforço, os trava-línguas mais curtos e menos complexos em termos da presença de desafios articulatórios e de sílabas complexas. Talvez esses possamos considerar em manter numa segunda versão do jogo. Os do 2º ano, uma vez que reconheciam as palavras com o apoio do que sabiam de cor, logo identificavam a vogal faltante sem maiores esforços, mas era um desafio para elas reconhecê-las no texto e considerar todos os elementos ao mesmo tempo. Assim, mesmo com o apoio no texto sabido de memória, o desafio de controlar a palavra, suas partes, e também a palavra no enunciado maior, foi além do que podem dar conta no nível inicial, não atingindo a função didática do jogo. A estratégia de dar um modelo: o r_to r_eu a roup_ do r_i de Rom_ (o rato roeu a roupa do rei de Roma), em algumas turmas, não surtiu efeito facilitador dos desafios referidos, na maioria dos casos, mas esse aspecto merece ainda pesquisa suplementar.

Com isso, não iremos abandonar o jogo, mas reformulá-lo e tentar ver que adaptações podem torná-lo produtivo.

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Trave o Trava-língua

O trava-língua é um gênero da tradição oral que por si só já é desafiante, pois compõe-se de verdadeiros desafios articulatórios, por suas combinações reiterativas de fonemas ou de fonemas e encontros consonantais. A brincadeira provoca a pronúncia, o mais rápido possível, de um texto curto, mas cheio de tropeços.

Utilizando aqui a distinção que faz Rêgo (2008), a partir de Bergson e Bakhtin, entre o rir de, do desvio que expõe ao ridículo, e o rir com, riso espirituoso, corporal e festivo que transgride, que celebra, que nos une por sermos falíveis como humanos e, sobretudo, em que os que riem se incluem no risível, me atreveria a dizer que, com os tropeços do trava-língua, o rir é um rir com. Como todos os jogadores estão “no mesmo barco” das atrapalhações articulatórias, a situação configura-se como um rir de, mas rindo com, riso coletivo sem peso e negatividade, pois todos estão cientes de que terão sua vez de arriscar e se embolar. Travar a língua é lei, e acertar, destravando-a na sucessão rápida da pronúncia das palavras, torna o jogador uma espécie de herói que vence a língua por todos! E nessa brincadeira, até os adultos erram, e na escola, inclusive os professores, aproximando todos em um mesmo time, para vencer os enroscos dos textos.

O trava-língua é, por sua natureza sonora e articulatória, um gênero muito privilegiado para explorar a consciência fonológica e, em especial, a consciência fonêmica. Também é muito produtivo para tornar salientes as sílabas complexas, quando as crianças já têm um certo domínio do funcionamento alfabético. Ainda que questionando o caráter consciente dos jogos de linguagem, Belintane (2013) também enfatiza a oralidade poética como um repertório altamente favorável à alfabetização, reconhecendo o papel dessas sonoridades nesse processo, e o trava-língua, em especial, nessa abordagem das sílabas complexas. 

A reflexão metalinguística, ou consciência fonológica, articulada ao próprio brincar de pronunciar esses textos, pode estar presente em forma de:

- exploração de fonemas vocálicos em assonância, como em “A Iara amarra a rara arara de Araraquara”, ainda com crianças que estão na fase bem inicial de fonetização da escrita. Isso porque chamam a atenção para os sons vocálicos – que soam – e sua representação gráfica, facilitada também, pelos nomes da letras, que coincidem com alguns dos fonemas que representam;

- exploração da consciência silábica, como a repetição da sílaba DI em “quando digo Digo, digo Digo, não digo Diogo...”, das sílabas CA e PA, em “quem a cara paca compra, paca cara pagará” - espécie de aliteração de sílabas;

- exploração das unidades fonológicas intrassilábicas (menores que a sílaba) – sejam elas os encontros consonantais, como /pr/, /tr/ e /gr/ (que correspondem ao ataque/onset da sílaba), em “um prato de trigo para três tigres tristes”, ou as unidades que criam as sílabas travadas, como o S em LUS e LIS, em “Luzia lustrava o lustre listrado” – e que se relacionam também com a consciência das sílabas complexas – note-se a diferença de som e grafia de LU e LUS;

- exploração das repetições de fonemas consonantais em aliteração - consciência de aliterações e fonemas, como o fonema /R/ em “o rato roeu a roupa do rei de Roma”, o /d/ em “quando digo Digo” ou dos fonemas /p/ e /k/ em “quem a paca cara compra, cara paca pagará”. Note-se que a consciência fonêmica não se restringe à capacidade artificial de isolar os fonemas de uma palavra ou segmentá-la em fonemas.

São muitos aspectos possíveis de se explorar nos diversos trava-línguas, seja só por brincar de pronunciar (atividade epilinguística, como define Gombert, em ARAUJO, 2017), seja brincando oralmente, mas analisando metalinguisticamente as dificuldades de pronúncia, seja analisando-as na relação com o texto escrito. Os trava-línguas são tão naturalmente relacionados ao aspecto articulatório da linguagem, que há quem os use como exercício de fala e de leitura – atores, locutores de rádio, fonoaudiólogos. Mas a cultura popular oferece esses exercícios articulatórios brincando!

Antônio Henrique Weitzel, nos seus livros Folclore literário e linguístico e Folcterapias da fala, assim classifica os trava-línguas pelo grau de dificuldade articulatória:

- simples (predomínio de um fonema consonantal): “O pinto pia, a pia pinga. Quanto mais o pinto pia, mais a pia pinga..” (predomínio da bilabial /p/, associada a assonâncias);

- compostos (mais de um fonema e variado ponto de articulação): “é muito socó para um socó só coçar” (alveolar + velar /s/ + /k/). “O sabiá não sabia, que o sábio sabia, que o sabiá não sabia assobiar” (alveolar + bilabial /s/ + /b/). Note-se que o grau de dificuldade aí pode variar, em função da quantidade de fonemas consonantais e a combinação dos pontos de articulação;

- complexos (fonema consonantal + encontro consonantal, /l/, /tr/): “Luzia lustrava o lustre listrado, o lustre listrado luzia...”. Por vezes ficam bem complexos mesmo, com combinação de jogo de mais de um fonema com o encontro consonantal, como em “Pedro pregou um prego na porta preta” e “Caixa de graxa grossa de graça” /k/, /g/, /x/ e /s/ combinadas com /gr/.

É interessante notar, no entanto, que a classificação certamente serve de guia, mas nem sempre garante a complexidade dos jogos de palavras envolvidos nos trava-línguas. Em “Tecelão tece o tecido em sete sedas de Sião. Tem sido a seda tecida na sorte do tecelão”, por exemplo, há o predomínio de três fonemas consonantais (/s/, /d/ e /t/), configurando-o como um trava-língua composto. Entretanto, embora o foco da dificuldade sejam os fonemas consonantais, a ocorrência das assonâncias /e/, /a/, /i/, /ão/, alternadas na sucessão das palavras, também contribui para a dificuldade de pronúncia rápida e para os tropeços em sua enunciação.

A consciência fonêmica se desenvolve, primordialmente, em contato com a escrita alfabética. Os fonemas são unidades abstratas para quem não é alfabetizado, pois não existem na materialidade sonora, já que a fala é co-articulada, ou seja, pronunciamos os fonemas consonantais como uma unidade junto com os fonemas vocálicos, formando sílabas, unidade mínima da emissão sonora. Por isso são consoantes – soam com, com as vogais. É muito difícil e artificial isolar os fonemas na fala, impossível até, principalmente os oclusivos. Os fricativos ainda podem ser “esticados” e pronunciados quase que sem suas vogais correspondentes – como ao pronunciar /xxxxx/, /zzzzz/. Desse modo, é na análise do escrito que o fonema se torna observável como unidade menor que a sílaba, seja como unidade distintiva de duas palavras (GATO-RATO), formando pares mínimos, seja como invariante em diversas palavras, especialmente as iniciadas com um mesmo fonema (RATO-REI-ROUPA-RUA...). Ao ver as palavras escritas, os fonemas ganham contornos, pois se observa graficamente o que diferencia o som da palavra GATO do som da palavra RATO, ou o que tem de parecido e o que tem de diferente em RUA e RIO. O escrito fornece, assim, um modelo de análise do oral, um apoio para analisar a unidade fonêmica, sonora. Observar, na escrita, os jogos de palavras nos trava-línguas pode favorecer tanto a observação da sua invariância como sua natureza distintiva. E isso é fantástico!

Entretanto, mesmo na oralidade apenas, os fonemas podem se tornar salientes, observáveis, em sua repetição, sua aliteração, nos trava-línguas (repetição de sons consonantais). As aliterações dos fonemas consonantais nos trava-línguas chamam a atenção para aquele fone que se repete e que trava a língua, embolando a pronúncia. Mesmo os fonemas oclusivos, bem mais difíceis de serem observados e pronunciados isoladamente, sem apoio da vogal, podem ser observados. Em “quando digo Digo, digo Digo, não digo Diogo”, esse /d/, /d/, /d/, que se repete não chama a nossa atenção por sua reiteração? E vendo-o escrito, não indica que esse som é representado pela letra D? Não é uma letra que, por sinal, tem um nome que dá pistas desse som? Pois então... é assim que a consciência fonêmica vai se desenvolvendo, em presença do escrito.

O jogo Trave o trava-língua é um jogo de trava-línguas para brincar e desenvolver a consciência fonológica. O jogo se constitui de cartelas com trava-línguas com níveis diferentes de desafio articulatório e, no verso, comandos para dizê-lo de outros jeitos, travando ainda mais essas fórmulas já bem cheias de pronúncias tortuosas. A ideia é brincar mais ainda com um texto que, em si, já é para brincar com a língua – por isso “Trave o trava-língua” – desafio em cima de desafio.


O jogo pode ser proposto para quem já sabe ler, pois, de todo modo, coloca-se novos desafios orais e de leitura. O jogador deve tentar dizer oralmente o texto com a modificação solicitada no comando, mas pode se apoiar no texto escrito. Mesmo para quem já lê, e lendo-o, há as sílabas complexas, há o jogo entre os tipos de articulação envolvidos, há vários aspectos que se configuram como desafios orais, de leitura e de análise linguística. 

Já aqueles que não sabem ler, mas que estão familiarizados com os trava-línguas, e os sabem de memória, terão novos desafios orais a partir dos comandos, que podem ser lidos pelo professor ou por algum colega. Mas não é fácil. O professor pode iniciar, exemplificar. Com as crianças ainda no processo inicial de fonetização da escrita, sem nenhum domínio do funcionamento alfabético, os trava-línguas com assonâncias (repetição de sons vocálicos), são mais indicados, tanto para brincar oralmente, quanto para observar na escrita. Mas brincar oralmente de tentar pronunciar, podem brincar também com os mais desafiantes.

Por trazer outros desafios de pronúncia a um gênero já desafiante nesse sentido, o jogo Trave o Trava-língua favorece, assim, a reflexão fonológica, fonêmica, sem e com presença da escrita, chamando a atenção para os sons menores que as sílabas. O apoio na escrita amplia essa reflexão, mas se pode também explorar o jogo oralmente – o desafio é até maior sem o apoio no texto. Mas para isso o jogador precisa saber o texto de memória.

O que está em jogo nos comandos são substituições ou subtrações de letras/fonemas, vocálicos e consonantais, substituições de palavras, ou dizê-lo ainda mais rápido, ou com algum complicador, dentre outras indicações, que mobilizam a reflexão fonológica, em especial a consciência fonêmica e de unidades intrassilábicas (como os encontro consonantais), bem como chamam a atenção para as sílabas complexas.


No versos da cartela, cada comando está marcado por um numeral, para jogar com um dado. Cada jogador escolhe ou sorteia uma cartela, lança o dado na sua vez, confere o numeral na face do dado, e lê/ouve o comando correspondente. Cada cartela tem 5 comandos, pode-se combinar que, caindo o 6, o jogador lança novamente o dado ou escolhe o comando, ou até pode trocar de cartela (combinar a regra antes do início do jogo). Se alguém não conseguir fazer, pode escolher outro comando ou cartela. O desafio do jogo é dizer o trava-língua, não há vencedores, o propósito é todos terem sua vez de tentar, de ser desafiado, de brincar, de acertar, de se embananar.

Como a cada jogada apenas um comando é lido, as cartelas devem ser usadas várias vezes no mesmo jogo. Alguns trava-línguas são mais fáceis, outros mais difíceis, alguns têm comandos mais complexos e outros mais simples. Em contexto escolar, professores podem fazer e distribuir as cartelas de acordo com o grau de dificuldade dos comandos e dos trava-línguas (conforme a classificação de Weitzel).

O jogo é de consciência fonológica, mas a ideia é não perder o caráter de brincadeira. Assim, o professor pode avaliar as dificuldades e retomar em outros momentos, e deve sistematizar apenas depois os aspectos linguísticos, como a escrita de sílabas complexas, os “sons” das letras, a análise das unidades intrassilábicas que tornam a sílaba complexa (S em LUS de lustre, ou R de PRA em prato)... No entanto, no momento do jogo, ressaltar o que gera a dificuldade de pronúncia no trava-língua, analisar junto essas dificuldades e as “saídas” das crianças para conseguirem pronunciar, faz parte da dinâmica do jogo, e são bem vindas. Embora favoreçam reflexões e até mesmo a habilidade metalinguística de pensar sobre o que torna o texto difícil de se dizer, a brincadeira está preservada. E a ideia é essa, equilibrar a função lúdica e a função educativa, como ressalta Tizuko Kishimoto (2013), garantir a brincadeira, mas também as aprendizagens.

Gente, para finalizar, lembrando que jogos e materiais se constituem em recursos didáticos quando articulado aos objetivos de aprendizagem, a outras estratégias didáticas, outros materiais e repertórios, tudo isso envolvendo planejamento e contextualizado por uma concepção de alfabetização. Nesse sentido, indico que a literatura tem muitas brincadeiras semelhantes, como essas dicas aqui, bem ao gosto desse jogo:

O rato, o pato, o gato e o Nonato

O rato roeu a roupa do rei de Roma,
O pato poeu a poupa do pei de poma,
O gato goeu a foupa do guei de goma
E o Nonato noeu a noupa do nei de noma.

TRAVATROVA, da Ciça (Ed. Nova Fronteira)


Errata
O ato oeu a oupa do ei de oma.
O rato roeu a letra do meu poema!
O rato inventou outro idioma? 
Ê, rato,
     pra que tanta
errata?


Léo Cunha, LÍNGUA DE SOBRA, Ed. Cortez

E isso sem contar o vasto mundo dos textos poéticos da literatura infantil, que flertam com os trava-línguas. São muitos!
  E para saber mais sobre fonemas e sua abordagem na alfabetização, veja aqui em outra postagem do blog.

Referências

ARAUJO, Liane Castro de. Textos da tradição oral: reflexão fonológica e cultura lúdica infantil. (No prelo), 2018.

______. Reflexão fonológica em contextos lúdicos e letrados na Educação Infantil e no Ciclo de alfabetização. In: VIEIRA, Juliane Ferreira; YAMIN, Giana Amaral. Um olhar para a sala de aula: reflexões e práticas de linguagem. São Carlos: Pedro & João Editores, 2017, p. 11-49.

_______. Quem os desmafagafizar bom desmafagafizador será: textos da tradição oral na alfabetização. Salvador: EDUFBA, 2011. Disponível em: https://www.slideshare.net/Licaraujo/textos-da-tradio-oral-na-alfabetizao. 

BELINTANE, Claudemir. Oralidade e alfabetização: uma nova abordagem da alfabetização e do letramento. São Paulo: Cortez, 2013.

KISHIMOTO, Tizuko Morchida. O jogo e a educação infantil. In: KISHIMOTO, Tizuko Morchida. (Org.). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. 7ª ed. Cortez: São Paulo, 2003, p. 13-43.

RÊGO, José Carlos. Lugares do riso na escola e no currículo. Presente! (Centro de Estudos e Assessoria Pedagógica), Salvador, p. 29 - 31, 31 mar. 2008.

WEITZEL, Antonio Henrique. Folclore literário e linguístico. Juiz de Fora: EDUFJF, 1995.

______. Folcloreterapias da fala: breve estudo dos trava-línguas e da linguagem secreta. Juiz de fora: UFJF, 2002.