segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Quadrinhas lacunadas Troca rimas

As quadrinhas populares constituem um gênero oral da tradição, muito recorrente também em brincadeiras diversas. 

A quadra é uma poesia de forma fixa que compõe-se de quatro versos (daí quadra) e com rima obrigatória geralmente entre o segundo e o quarto verso. A métrica é o verso de sete sílabas, ou seja, a redondilha maior. A contagem de sílabas poéticas, ou sílabas métricas, no entanto, não é igual à contagem de sílabas escolares, relacionadas à escrita. Trata-se de uma contagem que tem relação com o ritmo, uma escansão pela contagem dos sons dos versos até a última sílaba tônica. Além de ser uma forma poética em si mesma, a quadrinha também é uma estrutura que pode estar presente em vários outros gêneros, como cantigas, parlendas, canções, poemas, adivinhas (as quadras-adivinhas).

As rimas entre palavras são apreciadas pelas crianças desde cedo. As sonoridades dos textos poéticos, e no nosso caso, das rimas constituem, ao mesmo tempo, em matéria da poesia e em matéria da alfabetização. A rima é um recurso poético, mas também de uma unidade fonológica. Na poesia, a rima é jogo de sonoridade que traz graça e musicalidade ao texto, e na alfabetização, é uma unidade fonológica global que contribui para chamar a atenção para a dimensão sonora da língua, e tudo isso brincando e refletindo sobre a oralidade e sobre as palavras escritas, na continuidade das práticas brincantes.

Como toda abordagem da tradição oral na alfabetização, é fundamental explorar as quadrinhas oralmente, memorizar algumas, brincar com elas, para refletir sobre as rimas na alfabetização. Assim, trata-se de refletir sobre aspectos fonológicos e notacionais da escrita na continuidade da exploração lúdica e da fruição dos textos poéticos. Podemos brincar oralmente, e depois por escrito, de encontrar novas quadrinhas substituindo os pares que rimam. Vamos ver um exemplo?

Eu sou pequenininha 
Do tamanho de um botão 
Carrego papai no bolso
E mamãe no coração.

Depois de algumas quadrinhas serem conhecidas, o professor fala as quadrinhas (é bom que saiba umas de memória) trocando a última palavra do segundo verso, para que as crianças encontrem outra que rime com essa, no quarto verso. Ora, para fazê-lo, precisarão produzir palavras rimadas. É um jogo de consciência fonológica (produção de rimas), mas também para dar risada, pois as quadrinhas formadas com novas palavras muitas vezes trazem graça, especialmente quando o sentido fica engraçado, nonsense, surreal. Vamos à quadrinha:

Eu sou pequenininha 
Do tamanho de um DEDAL 
Carrego papai no bolso
E mamãe no _________ 

As crianças podem dizer: AVENTAL, MILHARAL, BORNAL, VARAL...Podem dizer coisas engraçadas também, como NATAL, LAMAÇAL...que fazem graça com o sentido. Além da consciência de rimas, trabalha-se aí a consciência sintática e semântica, pois explora-se, respectivamente, tanto a habilidade de manipulação da estrutura das frases e a consciência gradual da unidade palavra, quanto o sentido (que inclui a graça do nonsense) das palavras. Claro que dependendo do nível do grupo em relação à consciência de rimas, ou à familiaridade com a reflexão sobre o segmento final das palavras, as crianças podem sugerir palavras que não rimam, e aí, cabe ir mostrando as rimas, para que se apropriem dessa habilidade. Identificar e produzir rimas, pareando as palavras por suas semelhanças sonoras são situações de consciência fonológica de rimas.

Dependendo do grupo, das possibilidades das crianças, podemos até mesmo explorar a noção intuitiva da métrica, pois para o ritmo dos versos, talvez sintam falta de algo a mais (mais uma sílaba poética, para ficarem 7). É o caso de BORNAL e VARAL, NATAL, que pede mais uma sílaba, e que pode ficar assim: “MEU BORNAL”, MEU VARAL”, "LÁ EM NATAL", com "LÁ NO" no lugar de apenas "NO".

Para fazer a atividade por escrito, as crianças observam não apenas os sons finais das palavras, mas seu registro escrito, apoiando a reflexão sonora, já que a escrita permite uma materialização das semelhanças entre segmentos, ampliando a consciência fonológica. Numa atividade de quadrinha lacunada, pode-se misturar no banco de palavras palavras rimadas e não rimadas, para escolherem as que podem caber no texto. De preferência, usar palavras mantendo a métrica: SACOLÃO, CELULAR, LÁ NO ALTAR, CACHECOL...

O kit de quadrinhas Troca-rimas, que vou apresentar aqui, traz, justamente, esse tipo de proposta. E é para usar apenas depois de brincar muito, na oralidade, de trocar os pares de palavras que rimas em quadrinhas diversas já memorizadas. Brinquei muito disso com meu filho, com meus alunos e alunas, até que me veio a ideia de fazer um kit, para brincar também em presença da escrita.

A consciência fonológica sem presença da escrita, na continuidade das brincadeiras com as quadrinhas, é uma fase muito importante, mas, a depender do contexto, é também fundamental trazer a reflexão para um nível mais explícito, consciente, deliberado, sistematizado, ainda na oralidade e também articulado à escrita. Observar oralmente todas as semelhanças sonoras que cabem como rima e as que não, já é uma análise oral mais refinada. Listar por escrito todas as rimas que encontrarem, por exemplo, já trás para a reflexão por escrito. A consciência fonológica de rimas (como de qualquer unidade, principalmente os fonemas) se amplia quando confrontamos as unidades fonológicas observadas com suas formas gráficas, como já discutido.

No planejamento de situações de apropriação da escrita, é preciso provocar a reflexão deliberada, consciente e explícita – oralmente e, principalmente, em presença da escrita, aproveitando, desde a Educação Infantil, a disposição lúdica das crianças em relação às sonoridades da língua. Observar a semelhança sonora de dedal, avental, milharal, varal, oralmente, identificando que a semelhança é no segmento final das palavras, e que essa semelhança sonora implica também em semelhança gráfica, no final dessas palavras grafadas, favorece o estabelecimento da relação entre pauta sonora e gráfica e a apropriação gradativa dos valores sonoros das letras - aspectos essenciais na alfabetização inicial.

O kit de quadrinhas lacunadas chamada Troca Rimas apresenta seis quadrinhas, mas pode ter muito mais. É só um kit inicial. As palavras em laranja no kit abaixo são as do texto original, e as pretas, novos pares. Ampliar o kit com palavras sugeridas pelas crianças é bem bacana também.


O material serve para brincar só de quadrinhas originais lacunadas ou de inventar novas rimas para as quadrinhas. Pode brincar com o material coletivamente na sala, todos opinando sobre as palavras que cabem nas quadrinhas, reconhecendo palavras, encontrando as palavras rimadas, comparando sua grafia final semelhante, associando-as aos textos. Pode também dar as quadrinhas a uma mesa com 4 ou mais crianças para elas montarem a original e depois as inventadas, enquanto outras jogam outros jogos, ou fazer quadrinhas suficientes para as várias mesas ter seu kit ou mesmo ampliar o número de quadrinhas. Caso necessário, pode dar somente os pares correspondentes, próprios à quadrinha entregue, para colocarem no lugar certo do texto. Pode também já dar montada originalmente, e pedir só para encontrarem os pares que podem encaixar e colocá-los em cima das palavras laranjas (originais). A ideia é, depois achar as palavras que completam a quadrinha original e colocar nos espaços lacunados, encontrar também o outro par que pode caber no texto no lugar do laranja. É importante ir observando como vão descobrindo os pares de palavras e escolhendo os textos em que cabem. Para os que ainda não leem com autonomia, precisam saber a quadrinha de cor ou o professor lê-la para eles, sempre que precisarem. Mas é preciso que eles mesmo tentem explorar os pares de palavras, ao menos encontrando as de grafia semelhante, mesmo que o professor precise, depois ler  também as palavras.

A situação que o material propõe é de reflexão sobre rimas – consciência fonológica de rimas, em presença do escrito. Brincando oralmente é de produção de rimas e brincando com o kit, de reconhecimento de palavras rimadas, ajustando o oral ao escrito e identificando grafias semelhantes. Também demanda a compreensão do texto, para que ao mesmo tempo que se produz situações engraçadas, como “te dou o meu pescoço”, em vez de “te dou meu coração” – que já garante risadas – também exige que busquem algum sentido, alguma coerência no texto, mesmo que a lógica seja um tanto comprometida (dê uma volta no colchão [...] está escrito numa folha de mamão”!). Trata-se aí de brincar também com outras formas de consciência metalinguística, como a consciência sintática e e semântica. Buscar sentido e burlar o sentido implicam, ambos, na consciência semântica. Desse modo, embora cada par de palavra seja pensado para cada quadrinha, considerando esse jogo entre sentido e não-muito-sentido, nada impede que as crianças experimentem usar pares diferentes, criando novos textos engraçados e bem nonsenses. Esses pares foram pensados para essas quadrinhas nesse kit. Mas nada impede de deixar livre para se fazer outros arranjos. Ex.: “Quem me dera ser agora/um cavalinho de caroço/para dar um galopinho/onde está o seu pescoço”... Bacana também é as próprias crianças inventarem outros pares de rimas e elas constarem no material - um material feito a partir das criações da própria turma! Entre tradição, renovação e invenção, a regra é se divertir, refletindo sobre rimas. Com isso, vão, ao mesmo tempo, memorizando as quadrinhas originais.

Para as crianças do grupo que já leem e escrevem com autonomia, para as quais a atividade, embora divertida, não desafia em termos da língua escrita, a atividade pode ser escrever novas quadrinhas com outras rimas engraçadas, ou apenas escrever novos pares de rimas para uma das quadrinhas – anotando todas as possibilidades encontrarem. Depois, podem ler para o grupo, e as que o grupo achar mais bacanas, podem até entrar para o kit de jogos. As crianças adorarão ter suas produções fazendo parte do kit.

É isso, gente! Inventar quadrinhas é muito bacana também! Depois de familiarizadas com o gênero, as crianças poderão experimentar fazer suas próprias quadrinhas.