quinta-feira, 10 de outubro de 2019

POST 0 - Sobre a PNA – alguns apontamentos


A Política Nacional de Alfabetização (PNA) foi lançada por decreto (isso diz o que sobre tal política), em abril de 2019. Totalmente construída com base na perspectiva da abordagem fônica, referenciada em pesquisas da ciência cognitiva da leitura e em programas levados a cabo em outros países, importa, junto com a supostamente neutra ciência cognitiva, um viés altamente instrumental de alfabetização, alinhado à perspectiva das avaliações, testagens, da eficiência, eficácia, em um arcabouço semântico e discursivo que reduz a educação a uma instrumentalização técnica dos sujeitos numa sociedade mercantil, meritocrática e neoliberal. A educação em seu sentido “essencial”, social e humanista, visando à formação de sujeitos pensantes, críticos, e a alfabetização e letramento vinculados às oportunidades desses sujeitos em lidar com as diversas práticas sociais de leitura e escrita da sociedade em que estão inseridos, parece bastante ameaçada – sabemos disso. Com isso, minimiza-se o papel da escola, numa sociedade com tamanhas desigualdades sociais, e em um tempo em que descobrimos que os ideias de justiça social, respeito à diversidade e aos direitos humanos não estão garantidos. O liberalismo deu lugar ao neoliberalismo predatório, e à mercantilização da educação, impulsionada ainda lá nos anos 90 – mas que vem agora a rodo, passando por cima de tudo. O neoliberalismo na educação e a instrumentalização técnica dos sujeitos andam de mãos dadas, e essa perspectiva da PNA, no seu modo de se apresentar, também. Quanto a essa questão, sugiro que assistam ao vídeo com a fala do francês Christian Laval, sobre a temática de seu livro, “A ESCOLA NÃO É UMA EMPRESA: o neoliberalismo em ataque à educação pública”, traduzido para o português pela Boitempo. Dá um panorama do contexto no qual toda essa discussão se insere.

Esse contexto maior não pode ser negligenciado ao analisarmos a PNA e sua implantação no Brasil atual. Disfarçados de conhecimento universal, neutro e contra a ideologia, o referencial científico e a política pública que defendem no MEC, hoje, traz a retórica de salvacionismo político e pedagógico. Fosse apenas divergências teórico-metodológicas... Mas... Não podemos esquecer, no entanto, que as políticas públicas constituem uma instância que se articula de modo dinâmico e complexo às instâncias das teorizações e das concretização de ambas nas práticas, bem como com os interesses mercantis articulados às escolhas no âmbito das políticas. Aguardemos como será sua implementação, mas o modo como sua instituição tem se efetivado, desde o tal Decreto, não nos dá motivos para esperar boa coisa, não, nem em termos políticos, nem pedagógicos.

Mortatti (2000; 2010) fala das dinâmicas relações entre tematizações, normatizações e concretizações nas concepções de alfabetização e, por isso, falar de políticas também envolve falar de concepções de alfabetização e de sua concretização pedagógica. E o campo das concepções de alfabetização é, e sempre foi, um campo de conflitos e de disputas sobre quem está com a verdade sobre o que é alfabetizar e como se alfabetiza, e de luta pela hegemonia em dizê-lo, com alguns diálogos possíveis. E isso tanto no passado, como no momento atual. É da própria dinâmica do campo, como argumenta Mortatti (2000), que se move, historicamente, na dialética entre o novo e o antigo, o tradicional e o inovador, o novo tornando-se antigo e o inovador, tradicional, nos discursos que se sucedem. Dinâmica com suas mudanças e continuidades, permanências e rupturas que operam, simultaneamente, articulando teorizações, normatizações das leis e políticas públicas, e concretizações de ambas na prática pedagógica. Sugiro o post sobre o campo da alfabetização, com muitas indicações de leitura sobre a temática.

Entretanto, talvez jamais tenha se verificado, como agora, um achatamento do campo, a tentativa de validar uma voz única, o desrespeito à diversidade de concepções, o uso de falácias e premissas equivocadas para ganhar a argumentação e impor uma perspectiva – ainda que, por vezes, com uma retórica mansa de que não é imposição. Querer fechar o diálogo – e, para tal, dar às “palavras”, aos discursos, outros sentidos que eles não têm – é, inclusive, um estratagema fascista...e assim o fazem em relação às perspectivas que querem criticar (considerando aqui os equívocos conceituais e premissas equivocadas que os defensores da perspectiva fônica usam para se referir, por exemplo, a “letramento”, “construtivismo”, “função social” etc). E para tal, buscam meios de impor um suposto discurso de autoridade. Na forma como estão agenciando a PNA e a abordagem que a fundamenta, com metadiscursos que supostamente lhes dariam autoridade, e colocando-se como campo neutro, universal, negam sua natureza de concepção, negam-se como representantes de UMA perspectiva assumindo-se como representantes DA única perspectiva que seria legítima. Mas, para quem varre para debaixo do tapete a natureza sociopolítica inerente da linguagem, é como se fosse possível adotar um discurso objetificado, neutro, fora da ideologia, fora de um ponto de vista, de um lugar de onde se fala... Mas é bem assim:


Diversas perspectivas e pesquisadores do campo da alfabetização, que possuem diferentes bases epistemológicas, seguem debatendo, com entraves também, por vezes, e luta por hegemonia, mas sabendo-se concepção. E tendo espaço no debate, essas concepções seguem nos interpelando quanto aos diferentes aspectos, facetas, dimensões envolvidas, contribuindo para que não percamos de vista a complexidade que é ensinar e aprender a língua escrita (SOARES, 2004, 2016). Precisamos seguir, ainda que, por vezes, com divergências inconciliáveis, labutando pela melhoria das condições de formação inicial e continuada de professores, sem sectarismos, e as condições do trabalho docente em nosso país, pois sem isso, não há abordagem, método ou concepção que dê jeito. Só assim, podemos assegurar que a dimensão técnica, didática, metodológica, se articule à dimensão humana e política, conforme discute Candau (2013). Mas, no caso deles, há animosidade, desrespeito e cinismo no trato com o campo da alfabetização, e podemos duvidar se buscam mesmo esses princípios quanto ao papel da educação e da alfabetização. 

Não é de hoje que a perspectiva fônica busca representatividade nas políticas nacionais, estaduais e municipais no Brasil, envolvendo, inclusive, articulações “lobísticas” com os governos e a mídia, interesses editoriais e benefícios políticos a seus propositores. No atual governo, cavam seu lugar e se apresentam com a retórica da alternativa única de concepção válida de alfabetização, achatando, como já dito, a complexidade do campo e suas diversas concepções, que focam, muitas vezes, diferentes facetas da apropriação de um objeto de conhecimento – a linguagem escrita – que é complexo e multifacetado. Para eles, diversidade é dejeto, doença a ser superada com conceito e metodologia única.

Se a ciência cognitiva da leitura tem coisas a nos ensinar sobre a alfabetização – e tem sim – e se a abordagem fônica precisa também ter seu espaço no debate entre concepções de alfabetização, ela não pode ser a referência única para determinar os rumos da alfabetização no país. O problema maior dessa abordagem teórico-metodológica, então, é o como ela se apresentou ao conseguir o espaço tão almejado no MEC, se apresentando, por decreto, como única perspectiva válida para referenciar uma política pública, operando um apagamento de toda a diversidade de concepções desse campo. Única vertente válida e validada para gerir os rumos da alfabetização, tentando silenciar todas as outras abordagens – seja as desqualificando, seja numa tentativa mal amanhada de cooptá-las, com uma retórica mansa que tenta apagar as divergências enormes de princípios em questão.

Devem estar bem bastante satisfeitos e se sentindo “por cima da carne seca”, já que finalmente ganharam esse espaço, e assim, com esse respaldo político, tentam sobrepujar-se a todo o campo da alfabetização no Brasil, com um aparente ressentimento – que aparece na linha argumentativa em diversos momentos – a verdade última que eles têm o privilégio (!!!) de portar não era ouvida! (Ironia detectada).

O problema maior, então, é achar-se no direito de determinar, impor e “fechar questão” de que uma determinada abordagem teórica e/ou metodológica pode ser a única legítima e que, sozinha, resolveria todas as questões que envolvem o ensino e a aprendizagem da língua. Nenhuma abordagem dá conta, sozinha, de todas as facetas da apropriação da linguagem e da cultura escrita, muito menos de todos os problemas de alfabetização do país. Considerar diferentes áreas do conhecimento, diferentes perspectivas é, geralmente, fundamental para dar conta de um objeto complexo e multifacetado como é a linguagem escrita. Ademais, os problemas que envolvem a alfabetização no Brasil não são estritamente didático-pedagógicos. Nenhum método ou abordagem, isoladamente, dá conta desses problemas, que envolvem a melhoria das condições das escolas públicas, a valorização profissional dos docentes, o combate à desigualdade social, dentre outros.

Como objeto multifacetado, a linguagem escrita exige diferentes focos. Pensar a alfabetização, hoje, exige atenção a diferentes perspectivas, advindas, muitas vezes, de diversas áreas do conhecimento, campos de estudos diversos, com suas contribuições específicas – mas sem esquecer a Pedagogia, a interpretação pedagógica dos conhecimentos produzidos pelas diferentes áreas do saber. Pedagogia à qual eles torcem o nariz,  colocando-se num lugar superior numa suposta hierarquia de saberes mais valorizados. Determinada perspectiva, qual seja, embora possa ser considerada fundamental ao campo, não dá conta de todas as facetas da apropriação da linguagem escrita (SOARES, 2004, 2016), demandando que o campo pedagógico possa articular diferentes perspectivas de modo coerente e produtivo. E tem muitos pesquisadores da área de educação discutindo alfabetização, e considerando estudos dessas diversas áreas de conhecimento.

Mortatti (2015, p. 119) alerta, no entanto, quanto ao “ecletismo teórico-conceitual”, ao silenciamento das tensões no campo, que a autora denuncia, como a “tentativa de imposição de falso consenso, por meio da homogeneização de pluralidade de pontos de vista e posições teóricas e políticas, sabidamente em disputa.” Assim, é preciso ter atenção aos ecletismos desavisados, claro, não dá para apaziguar as divergências com combinações e bricolagens aleatórias e simplórias. Por outro lado, é preciso atentar, como afirma Belintane (2006, p.273), à necessidade de consensos mais amplos e diversificados, que considere o movimento dialético que é típico do conhecimento científico contemporâneo em que se busca a interdisciplinaridade, se respeita a heterogeneidade e se considera a complexidade dos processos e das diversidades culturais. E, no meu entendimento, a questão das diferentes facetas das quais fala Magda Soares, completa bem essa ideia. Também no campo da Didática, Candau (2013, p. 35) sublinha que o grande desafio é "assumir que o método didático tem diferentes estruturantes" e que o importante é articula-los e não "exclusivizar qualquer um deles, tentando considerá-lo como único estruturante".

É importante achar um equilíbrio entre as facetas, e ter em mente diferentes pontos de vista sobre como abordá-las metodologicamente, sem pretender uniformizar ou acabar com as diferenças de perspectivas, que sempre nos interpelam – e é normal que seja assim, no campo da construção de conhecimentos científicos na área das ciências humanas. As contribuições dos diversos campos ora se combinam para dar conta da complexidade da prática pedagógica, ora se apresentam em disputa, havendo, assim, tendências, mas também tensões no campo das concepções de alfabetização. Essa é uma dinâmica própria ao campo. 

Mas vem uma perspectiva que, parecendo não se saber perspectiva, se apresenta como verdade, apoiando-se no discurso de autoridade e da validação científica – e ainda assim, amaciando com a retórica do diálogo e da adesão voluntária (voltaremos a isso adiante). Convoco Mortatti (2010, p. 339), para nos lembrar que a “verdade científica do momento” pode ser considerada como uma “semimercadoria” que “circula no simbólico mercado científico”.

Considerando o campo da ciência cognitiva da leitura, referência básica, única, da PNA, e a própria PNA, que também faz escolhas de perspectivas dentro desse vasto campo da ciência cognitiva – sim, também tem isso! Há recortes nada neutros –, há três aspectos que é preciso considerar: os aspectos que não podemos negligenciar, que são apontados e/ou enfatizados pela abordagem cognitiva; os que são apresentados com certo ar de novidade na PNA, quando, em verdade, já estão aí, de algum modo; e os aspectos que a PNA traz que são inegociáveis no âmbito das concepções que defendemos (e nem sempre são imperativos para todos os autores da ciência cognitiva). Além disso, há esse fato de que nem tudo que a PNA escolhe como foco é ponto pacífico entre os pesquisadores desse referencial, vale também ressaltar que as pesquisas são dinâmicas, o conhecimento construído muitas vezes é circunstancial, a ciência é dinâmica – ou seja, há diferentes modelos em disputa, mesmo dentro de uma mesma abordagem. Há coisas que a PNA assume que muitos pesquisadores da ciência cognitiva ponderam ou até discordam. Ou seja, os autores dessa política também selecionam o que querem focar, pois há muitos autores que relativizam certas verdades que eles apresentam como ponto pacífico nas pesquisas estrangeiras, há muitos pesquisadores que reconhecem outros aspectos que não os cognitivos – e esse pedaço os autores da PNA silenciam, porque convém. Ou seja, esse referencial da ciência cognitiva - já limitado a aspectos cognitivos - é apresentado como um conjunto uniforme, homogêneo, com conhecimentos dados, fechados, imunes a problematizações. E não é bem assim...

Mas voltemos aos três pontos que quero considerar nessa introdução.

Quanto ao primeiro aspecto, como tenho insistido, afinada com outros pesquisadores da área, lembro que há resultados de pesquisas da ciência cognitiva, em especial da psicologia cognitiva da leitura, que precisamos considerar ao pensar em metodologias de alfabetização. São aspectos que não podemos negligenciar, como, por exemplo, a importância do desenvolvimento da consciência fonológica, o ensino sistemático do funcionamento alfabético e o processamento da leitura automática, que vai da decodificação fonológica à identificação lexical automática das palavras. Mas isso não resolve TODAS as questões envolvidas na alfabetização e no letramento. A PNA traz apenas esse referencial, embora os autores dessa política digam por aí que não há a indicação de método único. Ok, não de método único, creio não teriam a petulância de fazê-lo, mas indicam uma abordagem única sim! Baseiam-se na abordagem fônica, que privilegia não apenas a relação fonema-grafema, como preconiza também que ela seja o ponto de partida da alfabetização. A relação fonema-grafema é da estrutura do sistema, não dessa abordagem, o diferencial dessa abordagem é a ênfase dada a esse aspecto e o fato de ser esse o ponto de partida. Assim, um outro problema aí é que, mesmo sendo aspectos a considerar, do ponto de vista de outras concepções não o são, necessariamente, com os mesmos princípios adotados na PNA. Voltaremos a isso quando falarmos dos próximos itens destacados nesse debate, especialmente sobre os componentes essenciais da alfabetização. Vamos ao segundo ponto que quero discutir.

A PNA traz, por outro lado, também aspectos já presentes em outras abordagens e mesmo em outros programas do MEC, mas que são, de certo modo, aspectos apresentados como novidade. É o caso da dimensão fonológica da notação da língua e do ensino sistemático do sistema de escrita. Eles se acham “donos” do princípio alfabético! O princípio, no entanto, é do sistema, não é de um método específico. A linguística já aborda essa questão do princípio alfabético, da importância de se apropriar desse funcionamento na alfabetização, há muito, muito tempo – muito antes de esses pesquisadores arrogantes que escreveram a PNA nascerem e acharem que são os iluminados pela ciência. Quanto à consciência fonológica, há pesquisadores da área da psicologia e da educação que a tematizam há muito tempo, como Artur Gomes de Morais – e no PNAIC ela foi amplamente considerada ao lado das práticas de leitura e escrita. Magda Soares vem, há muito tempo, insistindo na necessidade de colocarmos foco na especificidade da alfabetização, na abordagem dos aspectos especificamente linguísticos – fonológicos e notacionais – da apropriação da escrita. Mas tudo isso é apagado, porque para eles, só serve o pacote completo!

Cabe ressaltar que, nesse ponto, podemos também referir ao fato de apresentarem procedimentos antigos, que já se revelaram infrutíferos no passado, como “novidades”, agora referendadas na ciência. Quanto a isso, sugiro a leitura do artigo de Mortatti e seu posicionamento quanto à PNA. Um artigo fantástico e necessário da autora foi publicado recentemente sobre a PNA, intitulado "Brasil, 2091: notas sobre a 'política nacional de alfabetização'”.

E nisso, chegamos a aspectos que a PNA traz, mas que são aspectos inegociáveis, do ponto de vista de outras concepções. A consciência fonológica é reduzida na PNA à consciência fonêmica. Quando discorrem sobre a Educação Infantil, embora citem, brevemente, a consciência fonológica de unidades mais holísticas – como a sílaba, a rima e as aliterações – o fazem rasteiramente, bem en passant, sem a devida importância e apenas citadas para logo chegar à consciência fonêmica. E esta, é proposta desde o início do processo, como pré-requisito para todo o resto. Ou seja, o que, do ponto de vista da aprendizagem, da apropriação do princípio alfabético é o ponto de ponto de chegada – o princípio alfabético –, é tomado pela PNA como ponto de partida – o que implica em treinar meninos pequenos a pronunciar fonemas isolados, ensinar previamente os “sons” das letras, provavelmente, inclusive, fora do contexto das palavras – o que é absurdo até mesmo para pesquisadores da ciência cognitiva que dizem abraçar – e, mais, implica em tomar a decodificação como condição para qualquer outra aprendizagem relativa à língua escrita.  Mas antes da consciência fonêmica as crianças pensam sobre a pauta sonora da língua e a segmentam em unidades mais holísticas - porque esses saberes são desconsiderados no ensino e aprendizagem? Por que o sistema não se estrutura assim, não é? Ou seja, o foco é o  ensino e o objeto de ensino - o sistema - não a criança que aprende... Retomaremos essa questão quando falarmos dos componentes essenciais da alfabetização, segundo a PNA, no Post 2 dessa série. Mas cabe ressaltar que, mesmo que vislumbrem procedimentos fônicos analíticos, em contexto de palavras e de brincadeiras, há aí um pressuposto de pré-requisito complicado em termos de conciliar com a perspectiva da aprendizagem das crianças, que não inicia com o mais abstrato. Sem contar que há as diferenças relativas à concepção de  infância e de cultura lúdica quando o brincar é tomado, nessa perspectiva, apenas para motivar as crianças ou disfarçar o treinamento. 

Com isso tudo, quero questionar essa imposição de política pública que se decreta baseado em premissas equivocadas – a de que o campo da alfabetização e as políticas anteriores ignoraram os estudos da psicologia cognitiva da leitura até aqui; a de que considerar a consciência fonológica seja enfatizar apenas a fonêmica; a de que a abordagem fônica é a única que considera o ensino sistemático para mobilizar a apropriação do princípio alfabético e esse princípio como aspecto fundamental na alfabetização. Destaco um trecho da PNA que diz que:

Referenciando-se, com completa reverência, aos documentos estrangeiros filiados a suas perspectivas, desprezando todo o conhecimento produzido no Brasil (salvo os que se filiam à concepção que abraçam) ou mesmo no estrangeiro, de outras perspectivas, o Caderno da PNA faz um histórico que desconsidera os programas das políticas anteriores e todo o campo da alfabetização. É mentira que as políticas públicas de alfabetização ignoram pesquisas da ciência cognitiva da leitura. O PNAIC, por exemplo, programa de formação de professores do MEC de 2012 até agora, vinha trazendo uma perspectiva conciliadora que incorporou aspectos que estavam esquecidos ou minimizados em programas anteriores, relativos aos aspectos linguísticos da alfabetização, e contribuiu para que fôssemos colocando, nas práticas docentes, foco nas diversas facetas da apropriação da escrita, inclusive aspectos enfatizados pela psicologia cognitiva da leitura (e pela linguística, não nos esqueçamos!!!). A consciência fonológica, o ensino sistemático do funcionamento alfabético – tudo está lá, e de forma bem enfatizada. Mas não com os mesmos princípios defendidos por eles – eis a questão! Mas a mentira se expõe: não ignoram! A questão é que para eles só serve o pacote todo, só serve abordar esses elementos com as mesmas premissas e princípios que defendem. Mas esse programa anterior, e os autores que o construíram e que discutem essas conciliações, não adotaram essas pesquisas cognitivas como referencial único nem verdade última.

Além dos programas e políticas, pesquisadores de outras concepções tampouco têm ignorado as pesquisas cognitivas como é insinuado pela arrogância dos defensores da PNA. Artur Gomes de Morais, por exemplo, vem pesquisando e publicando sobre a consciência fonológica desde o final dos anos 80, bem como Terezinha Carraher, hoje Terezinha Nunes, que atualmente, inclusive, escreve sobre a área da leitura e escrita, junto com Peter Bryant, renomado pesquisador americano, também referenciado no campo da ciência cognitiva. Artur, inclusive, faz um histórico dessas pesquisas em seu novo livro “Consciência fonológica: na Educação Infantil e no Ciclo de alfabetização”, além de ter outro livro especificamente sobre o sistema de escrita alfabética, suas propriedades e seu ensino sistemático. Magda Soares, por sua vez, vem insistindo, há tempos, na necessidade de voltarmos o foco aos aspectos linguísticos – notacionais e fonológicos – da apropriação da língua escrita, após termos focado nos aspectos sociais do letramento e nos aspectos psicolinguísticos, com as perspectivas construtivistas e sociointeracionistas de alfabetização. Ela chamou  de “reinvenção da alfabetização” (2003) essa retomada dos aspectos propriamente linguísticos do processo de ensinar a ler e escrever, mas em outras bases – sem perder de vista a linguagem escrita como prática social e a construção ativa de conhecimento pelos sujeitos.

Observem, nesse breve esquema, como essa premissa é equivocada:



Do mesmo modo, também a Linguística, há muito tempo, já enfatizava diversos aspectos que a PNA parece querer inaugurar, relativo ao princípio alfabético, ao ensino das letras, à base fonológica do sistema de escrita. Linguístas – a exemplo de Luiz Carlos Cagliari, por exemplo - discutem questões gráficas e fonológicas do processo de alfabetização faz muito tempo no Brasil. Cagliari tem uma vasta obra, publicando, desde os anos 80, livros articulando alfabetização e linguística. Mas o crédito que a PNA dá é apenas a pesquisas estrangeiras, que escolhem também, ou às que, aqui, seguem a linha dessas referências. É preciso saber que eles selecionam, no campo de estudos estrangeiros, aqueles que lhes servem bem. Mas também lá, há um campo de conflito de concepções teórico-metodológico que eles querem silenciar, apagar, não mencionar, para dar peso a seu discurso colonialista de autoridade.

Ou seja, diante desse histórico feito no Caderno da PNA, nota-se que essa política desconsidera completamente o campo da alfabetização no Brasil, as discussões que temos feito aqui, também alinhadas a estudos - de outras perspectivas - estrangeiras e, com sua retórica de evidências científicas, alinhamento estrangeiro (!!!) e adesão voluntária, tenta convencer os incautos de que, instituída por decreto, não é uma imposição desrespeitosa ao campo teórico da alfabetização e ao campo escolar (sobre adesão voluntária – essa outra retórica – falaremos no Post 4).

De 22 a 25/10 ocorreu a CONABE - Conferência Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências, na qual insistem nessa perspectiva de verdade única, última, científica, neutra, universal. Acompanhemos! Como se pode ler no site do MEC, foi criado um Painel com 12 especialistas que irão “elaborar, de forma imparcial, um relatório que ajudará a formular políticas públicas daqui para frente”. De forma imparcial??? E continuam:

A criação de um painel de especialistas foi utilizada em diversos países como uma forma não de confirmar pontos de vistas previamente adotados, mas sim para se obter uma revisão sistemática de literatura seguindo critérios científicos e oferecendo, portanto, sínteses de evidências robustas e imparciais.

Eles acreditam nisso de serem imparciais!!!??? De que todas as outras perspectivas que não seguem esse parâmetro das “evidências científicas” é “ponto de vista previamente adotado”???!!! É muita arrogância! Nesse governo eles não acreditam (acreditam?) que estão fora da ideologia? Pois...Será que acreditam nessa imparcialidade também pelo fato de estarem se alinhando às perspectivas estrangeiras, como se, elas mesmas, também fossem neutras e universais, e não fruto de escolhas em um campo de conflitos? O objetivo da CONABE, segundo afirmação de Carlos Nadalim registrada no site mencionado, seria alinhar a estratégia do MEC, no Brasil, àquelas de “autoridades educacionais” de países como o Reino Unido, EUA, França. Quem as intitulou como autoridades e, especialmente, as únicas autoridades a se considerarem validadas a terem hegemonia nas políticas públicas e nas práticas educativas? Bom, para conferir autoridade discursiva e aparente neutralidade no posicionamento, citam os documentos “Estratégia Nacional de Leitura” (Reino Unido, 1998); o Painel Nacional da Leitura  (EUA, 2000); o Observatório Nacional da Leitura (França, 1998) – os mesmos documentos citados e reverenciados no Caderno da PNA.

O documento francês citado, o Apprendre à lire, do Observatoire national de la lecture, não é tão reducionista quanto a PNA. Aliás, segundo Magda Soares, tampouco o é o relatório americano, o National Reading Panel. Referindo-se a esse dois documentos, a autora já denunciou, desde 2004 no artigo “Letramento e alfabetização: as muitas facetas” (2004, p. 14), que

[...] a concepção de aprendizagem da língua escrita, em ambos, é mais ampla e multifacetada que apenas a aprendizagem do código, das relações grafofônicas; o que ambos postulam é a necessidade de que essa faceta recupere a importância fundamental que tem na aprendizagem da língua escrita; sobretudo, que ela seja objeto de ensino direto, explícito, sistemático. 

E isso Magda vem defendendo, Artur Gomes de Morais vem defendendo e muitos outros pesquisadores brasileiros vêm defendendo. Só que não da forma radicalizada que tomou o “back to phonics”, não da forma que a PNA postula. Como Magda bem previu, na época, as coisas se colocaram aqui (como nos EUA), em termos de antagonismo, enfatizando que a tendência a esse tipo de radicalismo torna perigosa a “necessária reinvenção da alfabetização”, que ela mesma defende. E esse antagonismo, ela já apontou, desde aquele ano, que é mais político que propriamente conceitual. Voltamos, então, agora, ao radicalismo das polarizações?

Ocorre que, no Brasil, o cenário agora é esse mesmo, de radicalização, apesar de ter havido uma tendência crescente a se considerar a especificidade da alfabetização ao lado do letramento, como era o caso, por exemplo, do PNAIC, e de nessas perspectivas mais conciliadoras, a escrita alfabética e sua base fonológica serem, sim, foco de atenção.

E para mostrar que há essa grande falácia nos argumentos que eles constroem em torno desses documentos, para validarem a PNA, tomarei aqui o Apprendre à Lire, que li quando estudei na França no final dos anos 90, início dos anos 2000, junto com outras referências francesas, para ressaltar que aqui eles focam no que bem querem focar, para justificar tomar a alfabetização numa visão tão simplória e instrumental.

Embora o documento francês traga o referencial cognitivo para mostrar a importância do ensino sistemático do funcionamento alfabético da escrita e da consciência fonêmica, dão bastante ênfase aos aspectos socioculturais e semiológicos da escrita. O documento indica expressamente, referindo-se às crianças pequenas, que vale muito mais as sensibilizar para as implicações e as funções da língua oral e escrita, para os desafios da comunicação linguística, do que as treinar precocemente e sistematicamente à decodificação do escrito (1998, p. 32-41), pois “escrevemos sempre para dizer alguma coisa” (p. 42). Para que serve a escrita? O que ler quer dizer? Essas são questões ressaltadas como fundamentais. Mesmo quando referem à língua em si mesma, referem outros aspectos, que não exclusivamente os fonológicos, afirmando-se que a escrita pode se fazer por entradas diversas, ressaltando-se sua forma, seu sentido, suas finalidades (p. 44). E a PNA? Vai fazer o que com nossas crianças da Educação Infantil, se mesmo em termos de consciência fonológica, prioriza a fonêmica em detrimento das unidades mais holísticas, que poderiam ser exploradas na continuidade das práticas brincantes (a partir, por exemplo, das sonoridades do repertório lúdico dos textos tradicionais da infância?).

Na etapa da alfabetização propriamente dita, ainda que o foco do documento francês seja a abordagem fônica, também consideram muitos procedimentos condenados pelos que só veem a consciência fonêmica no horizonte e a alfabetização como uma questão meramente técnica. Por exemplo, o documento francês defende a decodificação, mas também que as crianças tenham um repertório de palavras estáveis, modelo de escrita convencional, para apoiar a leitura inicial, cotejando decodificação e reconhecimento mais global de algumas palavras; o documento dá ênfase aos processos de tratamento dos sentidos, e a seu papel na compreensão dos textos, articulando a necessidade dos processos de decodificação aos processos de compreensão. Ou seja, não tem isso de primeiro a decodificação e só depois compreensão, esta como uma consequência do domínio daquela, como a PNA parece sugerir: “a compreensão de textos, por sua vez, consiste num ato diverso do da leitura. É o objetivo final, que depende primeiro da aprendizagem da decodificação e, posteriormente, da identificação automática de palavras e da fluência em leitura oral” (BRASIL, 2019, p. 19).

Outros livros, como o “L’Apprenti lecteur”, organizado por Rieben e Perfetti (1989), com textos de vários autores da ciência cognitiva, bem como o “De l’illettrisme em général et de l’école em particulier”, de Alain Bentolila (1996), autor envolvido no documento do Observatório francês – do qual assisti algumas aulas na Université Paris IV –, também trazem uma visão de linguagem escrita muito mais ampla do que a trazida na PNA. No próprio livro “A Ciência da leitura” (2013), mais atual e bem considerado por eles, há autores com discursos bastante conciliadores nesse sentido. Mas eles escolheram o sectarismo.


Podem dizer que as novas-novíssimas referências da neurociência cognitiva, após esses livros, é que trazem resultados que validam esses reducionismos, ao que digo: resultados de pesquisas, contemporaneamente, parecem (e só parecem, pois entre pesquisas e aplicações práticas e éticas, há uma distância) validar um mundo instrumentalizado, mercantilizado e desumanizado. Mundo de racionalidade técnica levada ao extremo. Resta-nos saber o que restará de humanidade nisso tudo! Resta saber se queremos apostar num mundo assim. Em todo caso, o que quero ressaltar aqui é que os autores dessa PNA trazem as referências a documentos estrangeiros de modo bem enviesado, falacioso, pois eles recortam dali o que bem interessam para propor uma política altamente instrumentalizada, sectária e reducionista de alfabetização.

Me respondam: se pesquisas mostram ou mostrassem, de fato, que procedimentos fônicos dos mais sintéticos e descontextualizados dão melhores resultados no treinamento fonêmico e na habilidade de decodificação, então, automaticamente validamos esses procedimentos que retira da linguagem todo contexto, todo o sentido? O que e quem definem que aprendizagens importam mesmo? Porque essa primazia da técnica em relação aos aspectos semânticos e semiológicos da escrita? Essas indagações definem respostas que temos que problematizar, respostas que definem valores, concepções de mundo, de educação, de linguagem. Não definem respostas únicas, automáticas. Se pesquisas mostrassem que se cada cidadão matasse uma pessoa por ano, a violência diminuiria, automaticamente validaríamos a matança institucionalizada? Discutiremos mais sobre “evidências científicas” no Post 3.

Dito isso, vamos adiante. Proponho analisar aqui alguns pontos da PNA, considerando o que temos até agora – o Decreto  Nº 9.765, de 11 de abril de 2019, o Caderno da PNA, de 15 de agosto de 2019 e outros referencias que porventura circulem na mídia. Minhas reflexões aqui e nos posts seguintes consideram e dialogam com textos, manifestos, matérias, entrevistas e vídeos que circulam ou venham a circular na mídia, seja em defesa da PNA, sejam críticos a ela. Vamos estudar! Vou me concentrar, inicialmente, em discutir quatro pontos:
  • o uso do termo literacia e silenciamento sobre o letramento, conceito utilizado e tematizado no campo desde meados dos anos 1980;
  • a escolha do que sejam os componentes “essenciais” da alfabetização e a questão da abordagem única;
  • a insistência na questão do ensino baseado em “evidências científicas” e a consideração exclusiva da ciência de perspectiva cognitiva;
  • questões de implementação da política, como a retórica da "adesão voluntária" e ressonâncias nas redes e na formação docente e etc. 

Os posts seguintes a esse vão abordar cada um desses aspectos. Contribuam, vamos refletir em muitas vozes! Junto aqui, nos textos dessa série, várias postagens minhas no Facebook, em que abordei a questão, e os desdobramentos delas nos comentários, trechos inspirados em outras postagens do blog, na entrevista que dei ao CENPEC, em apontamentos de minhas falas em Santa Catarina e em outras oportunidades que tive de abordar a PNA, inclusive reflexões advindas de conversas com outros colegas alinhados a mim nessa trincheira. E de leitura, muita leitura.

Assim como eu, outros pesquisadores estão aguerridos a discutir a PNA, e vale também divulgar. Os indicarei aqui, sempre! Precisamos multiplicar e unir vozes! Sugiro as demais entrevistas dessa série que o CENPEC está promovendo, abordando a PNA. A primeira foi com Magda Soares e Maria Alice Junqueira, a segunda a minha, à qual se seguiu, até agora, a de Antônio Gomes BatistaCarlota Boto, Isabel Frade, Sônia Madi e Clécio Bunzen, que nos fala, particularmente da questão do letramento/literacia. Outras vozes serão convocadas, vamos acompanhar aqui. A Faculdade de Educação da USP fez um evento, no início de outubro, que foi gravado – quando disponibilizarem os vídeos, divulgo o link, agradecendo a Claudemir Belintane pela confirmação de que estará disponível em breve. O próprio Claudemir já se manifestou algumas vezes sobre essa querela de métodos também e pode nos ajudar a pensar: aqui. Sugiro também assistirem ao Educação 360, Painel5: “Alfabetização: A guerra dos métodos”, com a participação de Artur Gomes de Morais (da UFPE), Renan Sargiani, coordenador-geral de Neurociência Cognitiva e Linguística da Secretaria de Alfabetização do MEC, além de Guilherme Cardozo, Doutor em Estudos da Linguagem e PhD em Estudos Sociais. Reparem, principalmente, na fala do professor Artur (2:23:20 a 50:35). A Abalf - Associação Brasileira de Alfabetização também tem divulgado posicionamentos de diversos pesquisadores do campo, de diversas concepções, sobre a PNA.  Esses posicionamentos terminaram por constituir um conjunto que foi publicado na Revista Brasileira de Alfabetização, aqui. Ressalto o texto de Clécio Bunzen, dentre esses, que tematiza a questão do uso de "literacia" no documento, discussão que será o foco do Post 1 dessa série aqui, em breve. O incentivei a escrever, pois sabia que seria uma contribuição enorme a essa discussão. Agradeço-o pela oportunidade de dialogar com ele a partir do texto, ao que ele retribuiu fazendo uma menção à minha leitura, anterior a sua publicação. Valeu, colega! 'Tamos juntos!

E, para finalizar esse post, lembro, mais uma vez, que é preciso fazer essa ressalva, para refletirmos sobre tudo isso na instância das concretizações nas práticas escolares: precisamos ter clareza de que a alternativa à negligência ou a uma abordagem casual, vaga, não explícita e pouco sistemática do sistema de escrita e de sua base fonológica, que traz equívocos quanto ao processamento da leitura e do reconhecimento das palavras -negligência essa em função de um discurso pedagógico marcado pela hegemonia da didática construtivista e de certas vertentes sociointeracionistas - não é, necessariamente, a abordagem fônica posta na PNA. A alternativa não é necessariamente essa! Temos alternativas potentes de abordagem da faceta linguística em situações significativas e reflexivas, no contexto da linguagem viva, das práticas de oralidade e letramento, da cultura lúdica, unido as diversas facetas da apropriação da linguagem e da cultura escrita e considerando o sujeito como sujeito de cultura, de linguagem e ativo em seu processo de aprendizagem.

Inúmeras pesquisas e registros de práticas no âmbito do PNAIC e da experiência do projeto de Magda Soares em Lagoa Santa/MG, por exemplo, mostram resultados muito positivos de práticas fundadas em concepções mais conciliadoras que envolvem a apropriação da escrita alfabética e a fluência de leitura, as habilidades que compreensão leitora e produção de textos, e a ampliação da participação em práticas letradas. São evidências que não podemos desconsiderar (Mas, para eles só servem as evidências de laboratório). É ainda preciso avançar muito no entendimento de como fazer esse ensino com esses princípios, entender sobre esse referencial? Sim, muito! Mas o caminho estava aberto. Não deixemos ele fechar! Nem nós, nem os professores, que, felizmente, não fazem apenas o que é orientado pelas políticas, ainda mias pelas que desconsideram toda a sua trajetória docente até aqui.

Esse aqui é o POST 0 dessa série, introdutório: Sobre a PNA – alguns apontamentos. Seguem os próximos:

POST 1 – Literacia e letramento
POST 2 – Componentes essenciais da alfabetização e abordagem única
POST 3 – Evidências científicas apenas de perspectiva cognitiva
POST 4 – Questões de implementação

O POST 4 incluirá minhas considerações sobre pontos de fuga, formação docente e um fechamento da discussão, possivelmente indicando outros aspectos a continuar discutindo... Porque esses 4 pontos são apenas alguns deles...e do lado de cá ninguém quer fechar questão!

Sugiro, por ora, também a leitura do Caderno, para que essa discussão considere suas próprias impressões sobre a PNA.


Seguimos com Post 1 - sobre literacia e letramento. Em breve!

Adendo de fevereiro de 2020 - Quer dizer... "em breve".... se eu me reanimar... Ando muito muito desanimada, sem iniciativa para seguir aqui e em lugar algum. Mas vamos ver. Se não, de cada ponto desse que me comprometi a discutir, indico a leitura de discussões de outros pesquisadores, certo? 
2021 - enjoei tanto que nem terminei...

Referências
BELINTANE, Claudemir. Abordagem da oralidade e da escrita na escola a partir da tessitura interdisciplinar entre a psicanálise e a linguística. In: Psicanálise, Educação e Transmissão, 6., 2006, São Paulo.
BENTOLILA, Alain. De l'illettrisme en général et de l'école en particulier. Paris: Plon, 1996.
BRASIL, Decreto nº 9.765, de 11 de abril de 2019. Institui a Política Nacional de Alfabetização. Diário Oficial da União, Atos do Poder Executivo, Brasília/DF, 11 abr. 2019. Edição: 70-A, Seção: 1 – Extra, p. 15.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação. PNA: Política Nacional de Alfabetização/Secretaria de Alfabetização, Brasília: MEC, SEALF, 2019.
CANDAU, Vera Maria. A Didática e a relação forma/conteúdo. In: ______ (Org.). Rumo a uma nova didática. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 29-37.

MORTATTI, Maria do Rosário L. Os sentidos da alfabetização: São Paulo – 1876/1994. São Paulo: Editora Unesp, 2000.
______. Alfabetização no Brasil: conjecturas sobre as relações entre políticas públicas e seus sujeitos privados. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44 maio/ago. p. 329-410, 2010.
______. Essa base nacional comum curricular: mais uma tragédia brasileira? Revista Brasileira de Alfabetização – ABAlf. Vitória/ES. v. 1, n. 2, jul./dez. p. 191-205, 2015.
OBSERVATOIRE NATIONAL DE LA LECTURE. Apprendre à lire. Paris: C.N.D.P/Odile Jacob, 1998.
RIEBEN, L; PERFETTI, C. (Ed.). L'apprenti lecteur. Recherches empiriques et implications pédagogiques. Neuchâtel et Paris: Delachaux et Niestle, 1989.
SNOWLING, Margaret J.; HULME, Charles. A ciência da leitura. Porto Alegre: Penso, 2013
SOARES, M. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2016. 
______. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação. Jan-Abr, 2004, nº 25, p. 5-17.


segunda-feira, 30 de setembro de 2019

PNA - Política Nacional de Alfabetização

Gente,


Sei que prometi, mas ainda não dei conta...
Mas prometo, em breve, postar minhas reflexões sobre a PNA, por ora esparsas nos posts do Facebook, nas falas em eventos, entrevistas...

Mas vou juntar tudo isso e postar aqui, ok?
É a correria...

Só uns ignorantes para acharem que a gente trabalha pouco na Universidade!

Por ora, que ler o Caderno para dialogarmos depois?

Acesse aqui

Aqui também há uma entrevista minha em que faço uma análise breve que envolve a diferença entre o que propõem a PNA e a perspectiva que defendo de abordar a reflexão fonológica, metalinguística, as sonoridades dos textos poético-musicais da tradição oral.

Por ora é isso...depois tem mais! 
Mas tem várias postagens no Facebook sobre a PNA, certo?

domingo, 4 de agosto de 2019

SOBRE O MÉTODO DE 20 PÁGINAS E 5 PASSOS – Parte 3

Voltamos, então, à análise do Guia Definitivo (sic!!!), do nosso atual Secretário de Alfabetização, lembrando que, evidentemente, ele não está trabalhando sozinho, senão, além de um visão equivocada, seria uma vergonha nacional. Lembro que já estão postadas, nesses links, a Partes 1 e a Parte 2 de análise desse Guia, aqui é a continuação.

Os partidários do método fônico estão em êxtase agora, tendo vez e voz para visões reducionistas da alfabetização. Reducionistas também porque sem diálogo com o campo de outras concepções no Brasil, e pior, com muito desrespeito às pesquisas de outras perspectivas epistemológicas e ao campo pedagógico. Em 2003 fizeram tanto barulho com o Ciclo de Debates da Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados, visando à mudança nas políticas públicas de alfabetização, e com a construção do relatório  do “Alfabetização infantil: os novos caminhos”. Mas prevaleceu a perspectiva construtivista e sociointeracionista. O desrespeito era tanto que acirrou a rivalização entre essas perspectivas, dificultando algum diálogo e, portanto, continuou como força contra-hegemônica sectária. Agora que estão “por cima”, a revanche deverá fechar ainda mais o diálogo, já que, para conseguir estar nessa posição, precisaram estar ladeados com esse governo que ataca a educação, o conhecimento, as perspectivas socialmente referenciadas. Se concepção de alfabetização e escolhas epistemológicas nada teriam a ver com concepção política, digo apenas que, se pesquisas cognitivas são importantes e devem ser levadas em consideração, por outro lado, no campo pedagógico, investir em habilidades cognitivas individuais e minimizar a dimensão social das práticas de leitura e escrita combina muito bem com uma perspectiva corporativa e meritocrática de mundo e de educação.

De todo modo, mesmo a questão sendo muito mais complexa – complexidade que Nadalim não acompanha, e ele não é peça-chave no campo das tematizações – ele hoje está “por cima” no campo das normatizações e o consequente favorecimento ao campo das concretizações. Resistiremos, lutaremos, desobedeceremos, mas não podemos deixar de constatar que é essa a perspectiva que vai pautar o financiamento na área da alfabetização, a formação docente, a distribuição de material, o apoio institucional, TUDO. Se individualmente poderemos seguir com nossas práticas mais amplas de alfabetizar e letrar – no sentido amplo, sociocultural do termo – coletivamente não será fácil. E o conhecimento é importante para fundamentar as nossas lutas.

Por isso, continuo firme nesse propósito, e ainda acho que vale a pena “matar dois coelhos” analisando esses materiais toscos de nosso secretário, ao tempo que vamos discutindo sobre o campo da alfabetização, sem sectarismos.

E chegamos à parte do Guia que trata de aspectos diretamente relativos à apropriação do funcionamento da escrita. Como sinalizei antes, a simplificação ignorante, os equívocos conceituais e a “démarche” associacionista continuam fortemente aqui também.
Vamos a elas: às etapas da consciência silábica e da consciência fonêmica. Não, não melhora...

4ª etapa – Consciência silábica
A etapa silábica, no Guia Definitivo, embora assinalada como uma etapa, é totalmente menosprezada, tratada de forma aligeirada, incompleta e rasa. É como se ele nem soubesse porque seria uma etapa a ser considerada, apenas segue o que outros dizem, porque o que ele diz lá, a torna algo sem nenhuma importância. A primeira constatação que podemos fazer é essa: uma unidade extremamente importante na nossa língua e na alfabetização e, para ele, nesse Guia, apenas dois breves parágrafos, 10 linhas, e um vazio enorme... Dá até para reproduzir tudo aqui:

Tratarei agora de uma realidade que está dentro de cada palavra, a realidade silábica. Pois seu filho precisa entender que as palavras são formadas por sílabas. A quarta etapa, portanto, é a da consciência silábica.
A atividade desta etapa é bem simples. Você deve segmentar palavras batendo uma palma para cada sílaba ao pronunciá-la, e a criança terá de ser capaz de dizer o número de sílabas da palavra. Use palavras que sejam familiares ao seu filho, como nomes de pessoas da sua família. Por exemplo, “Carlos”: Car (uma palma) -los (outra palma). (NADALIM, 2015, p. 25)

E isso é tudo! Cadê a sílaba na alfabetização? Silêncio total! Como e porque a consciência silábica contribui para a apropriação do princípio alfabético? Onde está a explicação para a relação entre fazer isso e aprender a ler e escrever? Ele diz? Mas não é justo isso que está em jogo nessas etapas: compreender como esses aspectos ajudam na alfabetização? Só que...silêncio total! Reduzir a “entender que as palavras são formadas por sílabas” é uma simplificação sem par. Até porque, na cabeça dos pais, separar sílabas não é algo da dimensão sonora, é algo da escrita, com regras próprias no âmbito gráfico (por exemplo, separar os dígrafos RR, SS, e não separar ditongos, como ÃO, por exemplo, situações que não têm nenhuma realidade sonora).

Consciência silábica é, para ele, só contar a sílaba (mas que sílaba? Porque repare: MA-CA-RRÃ-O – para a criança, quantas sílabas tem aí?). Mas ele lá está preocupado com o que pensa a criança? Não, né? Eis a questão... A orientação única e aligeirada que é dada, é o adulto demonstrando, e pronto...cadê o sujeito que pensa, que aprende?  Cadê a criança segmentar as palavras em sílabas oralmente? E do jeito dele, separando os SONS... Cadê a exploração da segmentação natural que elas fazem, por exemplo, ao brincar com a linguagem? Cadê identificar e produzir sílabas semelhantes em diferentes palavras? Nada é dito sobre prestar atenção em como a criança segmenta – e aliás, isso seria uma orientação vaga (para ele), né? O que fariam os pais com isso? Diriam aos filhos, não filho, não é A-VI-Ã-O, mas A-VI-ÃO... numa explicação que, do ponto de vista da criança, que segmenta as unidades sonoras ouvidas, isso seria quase chinês! Por isso também é que as orientações têm que ser chulas e simplórias, não é? Para não complicar...só que aí resta o que? Resta o que esse silêncio denuncia: simplismo que não vai servir para nada! Nem para pais que não sabem nada de alfabetização, e vão continuar sem saber.

Acho, sinceramente, que, como ele enfatiza por demais os fonemas, a consciência fonêmica, ele minimiza a sílaba como unidade fonológica importante. E mais, como ele meteu o pau no método silábico, como diz que o fonema, e não a sílaba, é que é importante, com certeza não tem ideia da importância da unidade fonológica sílaba na alfabetização, com certeza acha que não há nada mais a dizer do que vagas 10 linhas, 93 palavras, pouco mais que 500 caracteres...num Guia que se pretende definitivo. Não tem! Por isso, silencia...será melhor o silêncio a dizer bobagem? Sim, porque falar da importância da sílaba seria, de certo modo, entrar em contradição com o que ele afirma na parte dos “métodos inimigos” (claro que considerar a consciência das sílabas não é o mesmo que defender o método silábico, mas ele teria que enfrentar essa discussão, ao menos...). E desconsiderá-la seria entrar em desacordo até mesmo com o campo da ciência da leitura que ele defende. Ou seja, na situação de contradição, de complexidade, o que é que a mente simplória faz? Fala qualquer coisa, rasa, e passa adiante...Foi o que ele fez aí, vocês hão de convir.

Pois bem, mas eu esclareço...
A consciência de sílabas, diferente da consciência sintática que ele desenvolveu bastante (embora falando besteira), é um dos aspectos fundamentais no processo de alfabetização. Primeiro, porque poder se alfabetizar implica em focar os significantes das palavras e não os significados. Para as crianças saírem do que Piaget chamou de realismo nominal – ou seja, a característica do pensamento infantil em que a criança expressa dificuldades em dissociar o signo da coisa significada (referente) – ela precisa, justamente prestar atenção no tamanho da palavra oral, pela segmentação silábica. Assim, embora o animal boi seja maior que o animal formiga, a palavra BOI é menor que a palavra FORMIGA. Sem isso, não há alfabetização, pois, seja na leitura, seja na escrita, a criança que não sai do realismo nominal vai tentar corresponder a escrita às características físicas do objeto representado.
A segmentação silábica trata-se de uma habilidade que as crianças adquirem quase que naturalmente, mas nem por isso, pode-se dizer que limita-se a “contar sílabas” e, muito menos, numa situação de demonstração. Há aí a tomada de consciência de que a língua oral é segmentável em unidades destituídas de sentido e poder representá-la como uma sequência de unidades sonoras. E é isso que, em contato com a escrita, vai levá-la a entender a escrita como uma representação simbólica de segunda ordem, como nos ensina Vygotsky, ou seja, um sistema de notação que representa não o real diretamente, mas a língua falada.  E isso é fundamental e de ordem sociocognitiva, conceitual, não de ordem da mera transmissão de informação.

Há atividade metalinguística envolvida aí, que quer dizer re-fle-xão, e não uma mera transmissão de informação. Cadê as crianças, meu Deus? Cadê a apropriação de conhecimento? Está reduzida ao ensino transmissivo – mas, sim, essa é a base epistemológica dele... Aliás, a própria escansão das sílabas nas segmentações que as crianças fazer brincando de, por exemplo “Lá-vai-a-bo-la-a-gi-rar-na-ro-da...”, “Uni-du-ni-tê, as-la-mê-min-guê...”, favorecem, posteriormente, a consciência de sílabas, pois se constituem em atividades epilinguísticas, como ressalta Gombert (2013). 

A consciência silábica é quase naturalmente adquirida pelas crianças (e quanto mais expostas a brincadeiras com a linguagem, como parlendas, cantigas, mas também as brincadeiras não codificadas), justamente porque,  como discutido na Introdução, diferente do fonema, a sílaba é uma unidade natural da língua!!! E isso a torna mesmo muito importante para a alfabetização. Não à toa as crianças, bem cedo, começam a, naturalmente, pronunciar palavras segmentando-as em pedacinhos, e não à toa também, em um determinado momento de sua reflexão sobre a escrita, grafam uma letra para cada emissão sonora que escutam. Isso porque se trata da unidade mínima da emissão sonora, unidade que tem realidade sonora efetivamente, elas se pronunciam numa única emissão de voz, devido à co-articulação da língua: os fonemas consonantais sempre vêm com os vocálicos. As unidades fonêmicas não são produzidas como unidades isoladas, mas sim em um fluxo contínuo.

Ou seja, por definição, a sílaba é uma fusão de fonemas que segmenta naturalmente as palavras quando pronunciadas e, por ter essa realidade física são mais perceptíveis pelas crianças, do que os fonemas, que, no caso dos consonantais, não são exatamente um som, mas unidades abstratas. O fonema é uma representação mental, não tendo realidade física isoladamente, pois os fones não são pronunciados e percebidos isoladamente (mas é justo isso que ele orienta a fazer, como vimos nas partes anteriores do Guia e veremos na 5ª etapa). O próprio José Morais, que ele tanto idolatra insiste muitíssimo nesse ponto.

Reparem que Nadalim o critica o método silábico não por sua “démarche” mecânica, como nós criticaríamos, mas pelo fato de que a unidade que estrutura o sistema não é a sílaba, mas o fonema. Está certo, o sistema é estruturado pelos fonemas, mas, do ponto de vista de quem não é alfabetizado, os fonemas não são analisados naturalmente, não preexistem ao entendimento do funcionamento do sistema.

E ainda tem a questão da língua, que precisa ser considerada. A unidade sílaba, na na língua portuguesa, é muito saliente e, portanto, favorável ao estabelecimento da relação entre escrita e pauta sonora. Isso não significa defender os procedimentos de memorização de famílias silábicas, do ensino pelo ba-be-bi-bo-bu – por isso mesmo que tenho insistido que usar procedimentos fônicos não é adotar método fônico, e usar procedimentos silábicos não é adotar método silábico. Os fonemas – unidade que estrutura o sistema alfabético – se reorganizam em unidades silábicas pronunciáveis e, portanto, é uma unidade importante para a alfabetização, sim, para o estabelecimento de relação entre a língua escrita e a língua oral. Como diz Frade (2007), referindo-se ao método silábico, “o acesso direto à sílaba e não ao fonema, pode ajudar a concretizar mais rapidamente a relação de segmentos da fala com segmentos da escrita. Nele a principal unidade a ser analisada pelos alunos é a sílaba”. E é por isso mesmo que procedimentos  silábicos foram amplamente utilizados tanto em métodos sintéticos quanto analíticos e mistos, que, partindo de que unidades fossem – unidades menores que as palavras, as próprias palavras ou unidades maiores que a palavra – chegavam às sílabas, para, em processos de análises e sínteses, compor e decompor palavras.

É digno de nota que, mesmo pesquisadores da área da ciência da leitura, indicam que a análise silábica favorece a tomada de consciência do fonema, pois refletindo sobre essas unidades, suas semelhanças e diferenças, vão recortando o fonema como unidade distintiva e sua invariância em palavras iniciadas com um mesmo fonema. Ou seja, confrontadas com palavras que trazem sílabas que combinam um mesmo fonema com diversas vogais, como por exemplo, RA em Raíssa, RE em Regina, RO em Roberto, Ri em Rita, Ru em Rute, por exemplo, ajuda a observarem essa invariância (há algo parecido e algo diferente em todas elas, não é?). Confrontadas, por sua vez, com palavras como RATO – PATO – MATO – GATO, podem refletir sobre o que muda nessas palavras – e o que muda é, justamente, o fonema, pois isso diz respeito a sua própria definição: ser uma unidade distintiva que diferencia unidades lexicais (as palavras). E isso, evidentemente, não precisa ser feito de forma mecânica, mas em contextos reflexivos, lúdicos e letrados.

Assim, sendo, mesmo sendo uma habilidade desenvolvida quase naturalmente, a consciência silábica é uma etapa da consciência fonológica importantíssima, que conduz à consciência fonêmica, e que merecia mais que dois parágrafos.

Volto, assim, a chamar a atenção, novamente que nem José Morais é tão radical como Nadalim. Embora em sua perspectiva fônica Morais dê ênfase à consciência fonêmica (que, para ele se dá concomitantemente à aprendizagem do sistema alfabético e não previamente, como Nadalim), ele também destaca que para que seja possível ler tudo o que aparece, conhecido ou não conhecido, embora o conhecimento do phonics seja superior, a análise silábica funciona, pois a língua é formada também por sílabas. E afirma, então que é claro que a criança pode conseguir ler bastante coisas por meio do método silábico.

Por tudo isso, o método silábico, sintético, e os métodos analíticos que, ao chegarem na unidade sílaba e trabalhar a análise e síntese silábica como estratégia de alfabetização, apesar de seus questionáveis procedimentos mecânicos, repetitivos e pouco significativos, não podem ser tachados de métodos ineficazes, inadequados e negativos, como faz Nadalim. 

Agora, além da segmentação silábica – único aspecto vagamente referido nessa etapa, no Guia, e mesmo assim, sem explorar todas as habilidades aí envolvidas, como identificar, produzir (ele refere apenas a contar sílabas) – há outros aspectos e habilidades envolvidas na consciência silábica, que favorecem a alfabetização, como, por exemplo, analisar palavras com as mesmas sílabas, especialmente, mas não apenas, as sílabas iniciais. Reconhecer as sílabas de uma palavra, identificar a produzir palavras que contenham uma determinada sílaba em diversas posições na palavra (início, meio e fim. Ex. BA em barata, em cabaça, em taba), juntar sílabas embaralhadas para formar palavras, como LIPITORU para montar PIRULITO, achar a resposta a uma adivinha com sílabas embaralhadas em fichas, dentre muitas outras possibilidades, são algumas, dentre muitas outras, situações valiosíssimas de consciência silábica que contribuem, e muito, para a consciência fonêmica. A qualidade, diversidade e a progressão na abordagem das unidades fonológicas é um aspecto fundamental no planejamento da alfabetização. No processo de apropriação inicial da língua escrita, a qualidade, diversidade e progressão na abordagem da unidade sílaba é também importante, pois, embora seja uma unidade natural de emissão da língua, não é evidente que as crianças prestem atenção, deliberadamente, de forma consciente e sistemática, aos constituintes sonoros da linguagem. Em grande medida, a capacidade espontânea de análise silábica, que vemos nas crianças pequenas, resulta de uma sensibilidade pré-consciente, epilinguística, e abordá-la de forma mais sistemática favorece a reflexão metalinguística. Como a escola ainda não consolidou essa abordagem de forma efetiva, então as criança também não estão familiarizadas a fazer reflexões mais elaboradas nesse sentido. Entretanto, a diversidade e continuidade de situações de reflexão que podem ser, em grande medida lúdicas, em contexto de jogos, de textos poéticos-musicais – e, de todo modo, reflexivas, mesmo quando atividades mais sistematizadas – vão permitir que elas se familiarizem com as consignas próprias a essa dimensão sonora, dar sentido a elas, torná-las conscientes, para que  suas aprendizagens possam ser consolidadas e plenamente mobilizadas em outros contextos.

A progressão tem relação com os padrões silábicos trabalhados, já que o padrão canônico consoante-vogal é mais acessível inicialmente, do que os CCV ou CVC; com as habilidades envolvidas: escandir, segmentar, contar, identificar uma sílaba inicial em uma palavras são habilidades mais acessíveis, inicialmente, do que comparar palavras com sílabas semelhantes, identificar sílabas em diversas posições nas palavras, produzir palavras com sílabas semelhantes...Sugiro aqui o novo livro de Artur Gomes de Morais, Consciência fonológica na Educação Infantil e no ciclo de alfabetização (Autêntica, 2019), que aborda as habilidades envolvidas em diversas unidades fonológica, sua hierarquização e sua abordagem numa perspectiva que considera os processos de construção e apropriação dos conhecimentos pelas crianças.

Importante mesmo, nessa tal “pré-alfabetização” – como ele denomina – é a pré-história da língua (no sentido de Vygotsky e Luria), brincar com as sonoridades da língua, em uma caminho que vai do epi ao metalinguístico, e participar intensamente das práticas letradas, de situações de leitura e escrita.

Essa artificialidade, ainda mais assim, para pais, com uma “pegada” escolarizada, tô fora! Os pais podem muito mais e coisas muito mais importantes do que isso!!!!
Bom, e chegamos à última etapa, aos fonemas...dos quais já falamos muito. Mas vamos lá!

5ª etapa – Consciência fonêmica

O parágrafo introdutório dessa parte do Guia indica a consciência fonêmica como a etapa mais importante. É fato que é a etapa que se relaciona com a estrutura do sistema alfabético, mas qual a necessidade de estabelecer essa hierarquia de valor? Mais importante de que ponto de vista? Do conteúdo. Mas se considerarmos o ponto de vista das construções infantis, vimos o quão importante é a consciência silábica e de todas as unidades fonológicas mais holísticas para chamar a atenção tanto para a dimensão sonora da língua quanto para o perfil analítico em relação às palavras.  Sempre isso, muito sistema, pouco a criança, a aprendizagem... Enfim, mas vamos lá!

O segundo parágrafo ok, tem tudo o que venho dizendo, justamente, sobre o fonema ser uma unidade abstrata não isolável. É a unidade intrassilábica (menor que a sílaba) que está na base da organização da escrita em um sistema que se estrutura, em parte, pela relação entre fonemas e grafemas, e que representa, em parte, os padrões articulatórios da fala. Até aí, tudo certo. O problema é que essa constatação do autor se desdobra em defender a análise em fonemas na oralidade, previamente à escrita, e ao tomar o sistema de escrita como sendo só isso – relação fonema-grafema –, sua aprendizagem torna-se uma mera transmissão de informações sobre os fones que representam as letras. E assim chega-se ao absurdo de propor aos pais de ficarem repetindo /ppppppp/ para a criança perceber o fone /p/ e depois, automaticamente, entender que o /p/ é o som da letra P. Já comentei isso nos posts anteriores, da Introdução, na parte sobre os “métodos que funcionam”.

Depois desse parágrafo, claro, seria importante, mesmo para pais, discutir porque isso é importante para o desempenho das crianças na leitura, porque fica um tanto misterioso para quem não é da área. Mas daí ele já parte para as propostas rasas de atividade que os pais, supostamente, poderiam fazer, sem nem discutir a importância delas no desenvolvimento da consciência fonêmica. Altamente vago, lacunar e vira uma lista de receitinhas, que ele mesmo valida e sem base alguma. Afinal, não é para todos os autores que a consciência fonêmica é tomada como pré-requisito para a alfabetização, como Nadalim defende, nem mesmo para a grande maioria. Bem ao contrário. Há aqueles que defendem que, em vez de pré-requisito, a consciência fonêmica é a consequência de compreender o funcionamento alfabético (a escrita é que fornece um modelo de análise para o oral, já que o fonema é abstrato), e aqueles que acham que é uma relação de causalidade recíproca, ambos se influenciando mutuamente, sendo algumas habilidades necessárias para compreender o sistema e outras se desenvolvendo justamente devido à compreensão de seu funcionamento. Pois até José Morais, que ele idolatra, defende essa última perspectiva! Longe dessa coisa rasa de pré-requisito que Nadalim defende sem conhecimento nenhum de causa.

A habilidade de manipular explicitamente os fonemas (consonantais) não é desenvolvida espontaneamente, ela se desenvolve em consequência da aprendizagem da leitura em sistemas alfabéticos, paralelamente a essa aprendizagem, pois, para ler e escrever, é preciso entender como os sons da fala (as palavras, formadas de sílabas) se segmentam em suas partes menores constituintes. Essa segmentação fonêmica oral prévia é de um artificialismo sem tamanho – mas é como ele interpreta: se o fonema é artificial, vamos isolá-lo para se fazer observável. Como eu disse, baseada em autores diversos – sejam autores da perspectiva que defendo, como Magda Soares e Artur Gomes de Morais, sejam autores que ele defende, como José Morais – algumas habilidades de consciência fonêmica são necessárias para compreender o funcionamento do sistema e, outras, só se desenvolvem mesmo após a criança entender o princípio alfabético. Assim, certamente isolar fonemas de uma palavra, segmentando-a de forma artificial, sem nenhuma relação com a emissão sonora, ou pronunciá-los isoladamente (ou seja, pronunciar os “sons” das letras separadas), não são habilidades prévias à escrita, como ele faz parecer. Como aliás ele afirma e enfatiza. Que disparate! Não são nem mesmo necessárias para se alfabetizar, como Artur Gomes de Morais (2019) bem argumenta em seu último livro. Analisar palavras que começam com os mesmos fonemas (vela-vaca-vida-vulcão-volante) ou observar os fonemas como unidades distintivas (pato-rato-mato-bato-gato) é suficiente para as crianças compreenderem o princípio alfabético, no contexto da análise de palavras, segmentações menos artificiais, e em presença da escrita (para apoiar a reflexão fonológica). As habilidade de segmentar VELA em /v /e/ /l/ /a/ é questionada por muitos autores como necessária à alfabetização, bem como ficar repetindo o “som” de letras isoladas. Ainda mais “sons” sem as letras, como quer Nadalim. Um disparate total!

Seria bem providencial, para não “teorizar”, ele justificar porque é conteúdo e orientação para pais, né? Mas o problema aí é outro, ao que parece: falta de fundamentação sólida (preciso todo dia me lembrar que ele não está trabalhando sozinho na Secretaria de Alfabetização... Ao menos, tendo pesquisadores de verdade lá, teremos divergências teórico-metodológicas, mas não deverá ser o reinado da "toscolândia"...).

Bom, e vamos para as atividades propostas. Melhor dizendo, à atividade! Só tem uma! Ele diz “Entre inúmeras atividades...ensinarei uma”... Para um Guia que se auto-intitula “definitivo” é bem parco e limitado, não? Deve ser porque para acessar as “outras”, tinha que fazer o curso, não é? O link para a inscrição vem no final do E-book...

Pois bem. A atividade proposta, oralmente, é de “perceber” a invariância do fonema inicial de palavras escritas com mesma consoante inicial: mala, mola, mula...Tá certo que observar essa invariância, essa aliteração desse fone /m/ nessas palavras é um aspecto importante da consciência fonêmica. Foi o que falei acima com o exemplo da vela-vaca-vida... Mas está longe de ser o único aspecto, além do que, o modo de propô-la é totalmente descontextualizado. E quem garante que os pais vão focar mesmo o fone e não a letra inicial? Ou na sílaba? (e observar as sílabas aí, VE-VA-VI, já seria também bem bacana para ajudá-los a abstrair o fonema, essa partezinha “parecida” em todas elas). Quem disse que os pais saberão pronunciar o impronunciável? Quem disse que não enfatizarão as sílabas? (que dá no mesmo, mas não é o que ele está propondo...). Pois a orientação dada é a de “corrigir”, dando também orientações assim: “Ao pronunciar os sons, não se esqueça de enfatizá-los bem” (p. 27). Notem que os exemplos que ele dá nem são dos fonemas que são mais salientes, como os fricativos e vibrantes, pois podemos “esticá-los!” na pronúncia do fone (do fone, não do fonema, veja bem!), como em xxxxxxxale...Mas que coisa mais artificial ficar tentando pronunciar /mmmm/... ou /pppp/ ou /ttttt/. Faz muuuuuita diferença abordar fonemas oclusivos e não-oclusivos.

Ele não faz nenhuma distinção entre esses fonemas, não indica começar pelos fricativos... Em geral, nem precisa mapear todos os fonemas, porque as crianças “pegam” a lógica do princípio alfabético com alguns casos, e generalizam, como ressalta, por exemplo Snow e Juel (2013, p. 537), autores do campo da Ciência da leitura. Então, para que sugerir pronunciar logo esses oclusivos, os mais artificiais de todos? Para que começar pelos fonemas mais impronunciáveis????? E o que é isso, “pronunciar os sons” do /m/, /f/? Sempre que pronunciamos fones isolados, há um som vocálico, mesmo que átono, que vem junto, devido a tudo que já falei sobre a co-articulação da fala, sobre a unidade mínima de emissão de voz ser a sílaba, não o fonema. E o que garante que a criança vai prestar atenção ao fonema mesmo? Como já citei, ela pode, simplesmente, a partir da consigna, prestar atenção às sílabas iniciais – muito mais naturais para ela: MAla, MOla, MUla... Artur Gomes de Morais (2019) discute algumas pesquisas que confirmam que as crianças focam, muitas vezes, na sílaba quando solicitada quanto a determinadas habilidades fonêmicas.

Enfim, é tudo abordado de forma muito superficial. Mesmo com a pretensão a ser o “definitivo”. E orientações é de perspectiva associacionista, reprodutivista, mecânica. Aos pais cabe “corrigir” (sic!) se os filhos não acertam. Mas também, o que mais estão capacitados a fazer, não é? Sim, teriam muita coisa a fazer aí, inteligentes, não reprodutivistas, interessantes e não meros treinamentos. Se fosse fácil assim, de fato, para que precisaríamos de professores, não é? Mas lembrem...está na base dessa proposta de pais ensinarem essas coisas aos filhos uma completa desqualificação da especificidade da função docente. E, pasmem! Muitos professores acham esse Guia o máximo!!! É triste mesmo...
Não há tampouco, nessa etapa do Guia, indicações de abordagens mais significativas, lúdicas, muito mais condizentes com as crianças pequenas e com as situações interativas entre pais e crianças. E, sim, é isso que ele chama de Guia Definitivo. Qualquer manual mequetrefe de consciência fonológica é mais completo que isso!!!

Nem vou voltar à preocupação também com a variação linguística, absolutamente desconsiderada nessa perspectiva fônica adotada por ele. Mas, claro, né? Ele está pensando nas famílias de classes privilegiadas, privilegiados também em termos linguísticos, pois se utilizam de uma variedade de linguagem bem mais próxima daquela legitimada socialmente e validada pela escola, mais próxima (mas nunca espelho dela) da escrita. “Fácil” corresponder sons e letras assim, né?

Agora, o mais grave de tudo é considerar, nessa etapa da consciência fonêmica, apenas orientações a focar nos fonemas na oralidade, sem presença da escrita. A consciência fonêmica se desenvolve mesmo é em presença da escrita, analisando as palavras gráficas para ampliar a análise fonológica. E isso, justamente, porque o fonema é uma unidade abstrata, não uma realidade sonora. Como já mencionei, as habilidades de consciência fonêmica, mais artificiais, não são prévias à abordagem do sistema de escrita, como segmentar fonemas de uma palavra e tratar isoladamente os fones relativos às letras, bem ao gosto de Nadalim. Isso não apenas Artur Gomes de Morais (2019) aborda tão bem, como o próprio José Morais, que Nadalim adora, chamam a atenção. Assim, insisto, não só não é caso de serem abordadas previamente à escrita, em situações orais, nem necessariamente precisam ser abordadas para se compreender o princípio alfabético. Dessa forma, não é necessário pedir às crianças que, absurdamente, segmentem palavras em fonemas /b/ /o/ /n/ /e/ /c/ /a/ - que artificialismo! Pesquisas mostram que essa é uma tarefa muito difícil para quem não é alfabetizado e até desnecessária para quem já é. Ou seja, quem faz isso é quem já entendeu o princípio alfabético...então...para quê? Não se justifica a tortura, a um só golpe, às crianças e à língua! Quanto a identificar e pronunciar fones isolados, pesquisas mostram que as crianças usam os nomes das letras como pistas para identificar segmentos nas palavras, desde as primeiras oportunidades, ou seja, isso de abordar “sons” de letras soltas, antes das próprias letras – como ele propõe enfaticamente na Introdução – tampouco tem fundamento.

O importante da consciência fonêmica é confrontar as crianças com palavras iniciadas com o mesmo fonema (invariância, aliteração), especialmente em presença da escrita e, mais importante ainda (e totalmente silenciado por ele), levá-las a entenderem o fonema como unidade distintiva. Assim, confrontados com a escrita de palavras como GATO-MATO-PATO-RATO, podem refletir sobre o pedacinho semelhante que todas essas palavras têm em comum. A escrita fornece um modelo de análise para o oral, ver as palavras gráficas permite analisar a pauta sonora dessas palavras, favorecendo tanto a abstrair o fonema nessas diversas palavras semelhantes que se diferenciam apenas por esse fonema (gato-mato-pato-rato), quanto a analisar as sílabas em constituintes menores ao observarem o que tem de semelhante e o que tem de diferente: mula-mala-mola...E tudo isso pode ser feito com jogos, brincadeiras, textos da tradição oral, analisando palavras escritas, tentando ler e escrever... Na oralidade, vale abordar fonemas nas situações com trava-línguas, por exemplo, que são ótimos textos para chamar a atenção para os fonemas – e nesse caso, até mesmo os oclusivos, por sua aliteração, sua repetição, que põe foco neles. E aí, observar no texto escrito que segmento provoca esse desafio articulatório na oralidade, pode se constituir em uma situação altamente favorável, significativa, lúdica, reflexiva. Com os fricativos e vibrantes até dá para brincar mais na oralidade, como, por exemplo, achar palavras orais ou figuras que as representam começadas igual a CHAVE, esticando o /xxxxxx/ (e aí vale xale, chocalho, chuva, xícara)... Brincar de “Lá vai a barquinha carregadinha de...” com foco nesses fonemas fricativos e vibrantes. Mas, como eu disse, o grosso do trabalho com a consciência fonêmica é em presença da escrita.

Por fim, além da não referência à aliteração, ressalto também a total ausência nesse Guia de abordagem das rimas, das unidades intrassilábicas outras, de outras sonoridades que contribuem para chamar a atenção para a dimensão fonológica da língua. A ênfase é toda na unidade fonema – e, de todo jeito, tratada igualmente de forma absolutamente superficial, rasa, mecânica e imprecisa.

Enfim...mas já estou me repetindo, portanto, remeto a outros escritos. Se quiserem continuar essa prosa sobre consciência fonêmica e tudo o mais, vão no post no blog em que discuto mais sobre isso, fonemas, consciência fonêmica, e sobre a abordagem reflexiva,  significativa, lúdica e letrada, não mecânica da consciência fonêmica. Sugiro fortemente a leitura do livro novo de Artur também, “Consciência fonológica na Educação Infantil e no ciclo de alfabetização”, fresquinho, de 2019. Lá ele indica meu blog também! O que muito me honra.

Fechando...esse Guia...para todo o sempre...
Bom, gente...é isso. Para fechar, ele afirma: “Seguindo essas etapas com cuidado e atenção, seu filho não enfrentará problemas no momento da alfabetização e se tornará um leitor hábil e eficaz”. Tão fácil, né? Tão mágico. Na loucura dele, acho que ele acredita mesmo que a alfabetização se reduz a isso.

Ele diz ainda, nesse final: “Não tenho a pretensão de ser o guru da educação brasileira”, mas pedindo pra ser, não é? A megalomania começa no título do Guia. Guru? Alguém cogitou isso? Meu Deus!  E completa: “Muitas pessoas me perguntam por que ofereço essas dicas gratuitamente no blog ‘Como Educar seus Filhos’. A razão é simples. Temos de fazer alguma coisa para reverter a situação atual da educação brasileira”. O salvador da pátria!!! Que vai nos salvar do que a escola não faz, do que a universidade não faz.

Em um outro vídeo, em que foi entrevistado em 2017, dentre as muitas pedradas, Nadalim diz, com sarcasmo, que o analfabetismo funcional é, de certo modo, positivo, pois ao menos as crianças não estão compreendendo as bobagens dos materiais didáticos ideológicos, doutrinadores, que circulam por aí, devido a essa outra “absurdidade” (sic!!!) que é o construtivismo e o letramento...Bem doutrinado pelo guru dele, Olavo de Carvalho.
Vergonha alheia é pouco! O manicômio do qual saiu nosso presidente deixou a porta aberta, saiu foi muita gente...

Mas, enfim, nosso país virou esse misto de piada e demência, em todos os setores, não podia ser diferente no campo da alfabetização. Juro que acredito que mesmo pesquisadores defensores da abordagem fônica estão com vergonha desse representante na Secretaria de Alfabetização. Precisam engoli-lo, para dar seguimento a seus planos de instaurar o método fônico no MEC, então aguentam...

Desse “Guia Definitivo”, é o que eu tinha que dizer. Me abstenho de comentar os depoimentos de pais laudatórios e mais laudatórios, que fecham o Guia, da página 28 a 32 (bem mais do que as que tratam de aspectos fundamentais da alfabetização), pois me causam apenas mais vergonha alheia. Além de para, supostamente, validar o blog “Como educar seus filhos”, os depoimentos entram no Guia para provar que pais podem alfabetizar e que não é preciso ser especialista para fazer isso. Gente, seria piada se não fosse preocupante. Ele diz, textualmente: “E a prova são os depoimentos de diversos pais e futuros pais que têm obtido excelentes resultados seguindo e aplicando as dicas do blog ‘Como Educar seus Filhos’ e do curso ‘Ensine seus Filhos a Ler - Pré-alfabetização’. Seguem-se abaixo apenas alguns desses depoimentos”.

Nesse mesmo vídeo citado, como em outros, Nadalim recorre a José Morais para validar sua defesa dos pais alfabetizarem em casa, do papel dos pais na alfabetização, mas é notório o quanto ele distorce o que está em jogo. Na entrevista que fez com Morais, nota-se que ele conduz a resposta ao que ele quer, quando pergunta sobre isso, bem como enfatiza trecho de livro para interpretar o que ele quer. Os pais não têm esse poder todo que ele quer, para validar seu blog, seu curso, seu Guia! Morais defende que os pais alfabetizem, sim, que não precisa de curso de pedagogia para isso, mas quando vai exemplificar, o que ele fala é de leitura de livros, dos livros circularem em casa, nas interações, não se refere a nenhum exemplo de ensino sistemático do sistema alfabético. Ou seja, como os outros representantes desse governo, o que vale são os estratagemas para mentiras virarem verdades de tão repetidas.

A quantidade de pais e de professores que vejo idolatrando esse cara como a salvação da educação me assusta mais do que ele mesmo. O importante é nos informarmos bem, para não cairmos na tentação desses argumentos falaciosos e para enfrentarmos com fundamentos o que vem por aí. E é isso que tenho tentado fazer, contribuindo com essa discussão nessas postagens.

Se você chegou aqui hoje, e quer acompanhar a discussão, veja aqui a Parte 1 e a Parte 2 dessas outras postagens sobre esse Guia, e no marcados “políticas públicas”, as postagens analisando o Guia e o vídeo de Nadalim, elencadas aqui: “Letramento é o vilão da alfabetização”.

Mais adiante, as postagens sobre esse cenário serão sobre a Política Nacional de Alfabetização. Quando der...