domingo, 28 de abril de 2019

LETRAMENTO, O VILÃO DA ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL? POST 3 – Para aprofundar...


Post 3 – O que dizem mesmo os experts; Predição ou decifração OU predição e decifração?; ler é decifrar? Ler é compreender? Ler e compreender? Leitura: conceito polissêmico; modelos de processamento da leitura.

Esse post é um crocotó, um apêndice, uma barriga, um adendo, um “a mais”, que continua o post anterior, o POST 2, e é meio pretensioso, eu confesso. Mas não resisto a fazer esses comentários elucidativos, que reforçam os equívocos conceituais do vídeo.

No vídeo “Letramento, o vilão da alfabetização”, além de igualar letramento e construtivismo, e essa “dobradinha” à whole language, Nadalim iguala tudo isso também a método global, a método ideovisual, forçando caber na perspectiva do letramento a ideia de leitura por predição e do “jogo psicolinguístico de adivinhações”, procedimentos defendidos pelo aporte da whole language (um dos principais teóricos da estratégia de predição é Goodman em “Reading: a Psycholinguistic Guessing Game”, 1985). Quando chegamos a essa parte do vídeo, vemos que a mistureira é sem fim. E o saco está ficando grande demais, não acham, não? Nada mais equivocado...pra variar. Isso tudo se configura, no entanto, como uma estratégia bem montada de generalizar bem o lado do adversário, cabendo tudo ali, para, então, apresentar o seu antídoto. Aliás mais do que uma estratégia, é um estratagema, por seus componentes: astúcia, subterfúgio, ardil, sabotagem.

No post 0 argumentei sobre isso das propostas atuais de alfabetização em contexto letrado não ter nada a ver com método global, muito menos com propor que o reconhecimento de palavras se dê por sua configuração, seu desenho gráfico, sua identificação ideovisual. Mas não bastasse isso, mais adiante no vídeo, voltando a esse amalgama mal amanhado de construtivismo-letramento (e multiletramento ele inclui aí também) com a perspectiva da whole language, ele diz que “um dos grandes erros dessa perspectiva é acreditar que as crianças podem aprender a ler e a escrever por meio de um ‘jogo psicolinguístico de adivinhações’, a partir do levantamento de hipóteses e predições sobre os textos, estabelecendo elas mesmas, autonomamente, as relações entre grafemas e fonemas, descobrindo os significados das palavras por meio do contexto”. Volto a dizer que, se isso poderia até ser atribuído a algumas estratégias defendidas pela didática construtivista, que investe na leitura por predição, sem considerar intervenções intencionais e planejadas sobre unidades sublexicais (unidades menores, fonológicas e gráficas, constitutivas das palavras, como morfemas, sílabas, fonemas, letras...), não tem, no entanto, nada a ver com o letramento, como já argumentado  – e é ele que é atacado como vilão da alfabetização (“invenção do construtivismo”, lembram?).  E a didática construtivista, como argumentei no post anterior, de fato se aproximou da perspectiva da whole language...

Mas de todo modo, nem a didática construtivista ignora as reflexões sobre as relações entre partes do oral e do escrito. Não as aborda de modo sistemático no ensino, mas pressupõe que as crianças usem seus conhecimentos sobre a escrita para tentar decifrar e escrever. É importante ressaltar que as situações de pesquisa inteligente das crianças sobre o escrito, suas reflexões a partir da análise de diversos aspectos do texto e das palavras, não podem ser vistas como da ordem da adivinhação. E, desde que entre nessa pesquisa inteligente também as informações sublexicais, rumo à crescente possibilidade de decifração precisa das palavras, esse “ler sem ainda saber ler”, usando informações contextuais, fazendo predições e usando, ao mesmo tempo, informações sublexicais para decifrar as palavras e partes das palavras, pode ser produtivo, sim. Produtivo para os aspectos textuais, a compreensão do texto, os processos descendentes (top-down) da leitura. 

Mas é fato: não podemos deixar de considerar que as informações fonológicas, fonográficas e ortográficas têm um papel preponderante na leitura propriamente dita. A leitura por predição, ou seja, o uso do contexto do texto, da semântica, para ler, ajuda no desenvolvimento da capacidade de inferência, de construção de sentidos, mas para a identificação das palavras, os processos sublexicais, as informações gráficas e sua relação com a pauta sonora da língua são imprescindíveis. O que diversas pesquisas mostram hoje é que para o reconhecimento e identificação de palavras na alfabetização inicial, a predição é um procedimento não produtivo. Mas não quer dizer que não seja produtivo de todo tampouco. A leitura precisa, fluente e autônoma de textos não é precisamente um processo de predição contínuo e de elaboração de hipóteses sobre as palavras que o compõem. Envolve o processamento das letras e das unidades da estrutura fono-ortográfica de cada palavra, que conduz ao seu reconhecimento ou à sua identificação e, depois torna-se um processo automático complexo. A decifração é um passo importante na conquista da identificação automática das palavras que é, sim, necessária à meta de ler de forma fluente, automática, por via lexical, ortográfica, sem decifrar letra por letra, ao lado dos processos mais amplos de compreensão textual.

A leitura lexical, ou seja o reconhecimento ortográfico que permite a automatização da leitura, ou seja, a leitura eficiente sem ter que decifrar letra por letra, no entanto, depende da leitura pela rota fonológica, no aprendizado inicial da escrita alfabética, em um processo ainda bem misterioso para os pesquisadores da ciência cognitiva. Ou seja, para ler de forma automática, pelo reconhecimento ortográfico das palavras é preciso passar, na aprendizagem, pela decifração, pela rota fonológica. Esse domínio não vem pela predição sobre a escrita das palavras na alfabetização inicial. Ler e aprender a ler são dois processos diferentes, se ler envolve reconhecimento automático, aprender a ler envolve também a decifração. Penso que esses são aspectos da ciência cognitiva que, sim, é preciso levarmos em consideração para pensar nas propostas alfabetizadoras. Então, nem tanto, nem tão pouco. 

A fluência da leitura será alcançado por meio da prática frequente da leitura, após vencer essa etapa fonológica, que promoverá o reconhecimento automático, e possibilitará a leitura eficiente, que implica o jogo entre processos ascendentes e descendentes e entre as duas rotas de leitura – fonológica (para palavras desconhecidas ou pouco frequentes) e lexical (para as já firmadas no léxico mental). 

Agora, não podemos aceitar que associem a defesa da exposição das crianças aos textos a um ensino por predição. Além da justificativa do letramento, colocar as crianças na alfabetização inicial, bem no início da sua formação leitora e escritora, em contato com a leitura e escrita de textos, antes mesmo de chegarem a ler com autonomia e escrever de forma convencional, tem relação com o fato de que a se considera a alfabetização como um processo que vai além do ensino da decifração do sistema alfabético. Aposta-se que as crianças se perguntam sobre a escrita – desde que tenham oportunidade para tal – e vão formulando hipóteses sobre seu funcionamento, argumentando sobre suas ideias, mesmo que ainda distantes da leitura autônoma e da escrita convencional. É isso e não exatamente e necessariamente, porque creem que a leitura por predição e a imersão na cultura escrita bastam para, efetivamente, se alfabetizar.  Isso porque olham pelo ponto de vista da aprendizagem e não apenas do ensino, apostando no pensamento das crianças, em sua capacidade de indagar ativamente o objeto de conhecimento. E aqui é uma diferença epistemológica de base em relação à perspectiva que só considera o objeto e o ensino, sendo a aprendizagem apenas um resultado desse ensino. E essa é uma lição do construtivismo e do socioconstrutivismo (ou sociointeracionismo) que é inegociável.

Mas, dito isto, precisamos reconhecer o que nisso tudo dá brecha a essas interpretações equivocadas. A questão é que a, ainda que a didática construtivista preveja princípios e estratégias para provocar a reflexão sobre o princípio alfabético,  apostam muito alto na leitura por predição (sem incluir nessa pesquisa os elementos sublexicais de forma sistemática) e negligenciam as reflexões sistematizadas e provocadas coletivamente pelo professor, sobre a dimensão sonora da escrita. E isso por acreditar que as próprias crianças constroem os procedimentos de análise necessários para que a alfabetização se realize, deixando a mediação docente um tanto casual nesse aspecto. Tanto é que Telma Weisz (2016, p. 17) afirma que “nas atividades de ‘leitura’, o aluno precisa analisar todos os indicadores disponíveis para descobrir o significado do texto e poder decidir o que está escrito (e onde)”. E isso, conforme a autora, pode ser feito de duas formas: pelo ajuste dos segmentos do texto falado, memorizado, aos segmentos escritos, e por estratégias de antecipação pelo contexto verbal ou extraverbal. Não nego nada disso. Mas esses procedimentos não devem implicar em negligenciar a decifração, e nem se opõem a ela, como tentarei argumentar mais adiante. Decifração, consciência fonológica, fonema, sílaba, por vezes são termos quase proibitivos a essa didática – como já argumentado. Eis a porta que se fecha, também aí, para dialogar mais produtivamente com a perspectiva da ciência da leitura. Diálogos, no entanto, apesar de epistemologias diversas, são possíveis, saindo, em ambos os casos, das perspectivas polarizadas, sectárias.

Uma coisa é opor completamente decifração a predição pelo contexto, como se só houvesse a possibilidade de um ou outro processo, outra é reconhecer a leitura como um processo cognitivo complexo, que envolve processos ascendentes (ou botton-up, foco na decifração) e descendentes (ou top-down, foco na produção de significados, na compreensão, na formulação de hipóteses sobre o texto, inferências, antecipações, predições). A leitura eficiente envolve procedimentos textuais, lexicais e sublexicais. Um modelo interativo, também teorizado nesse campo de pesquisas cognitivas, prevê um papel importante, mas diferenciado, de ambos os processos. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra!  

O simples convívio com textos escritos e a leitura por predição não garante a apropriação do princípio alfabético – ao menos Magda nunca defendeu que garante. Ler é também decifrar.  Esse é um procedimento fundamental, mas não é só decifrar, haja visto que decifrar não garante a compreensão do que se lê, os processos inferenciais que o texto exige, a apropriação dos discursos em suas complexidades diversas. Ler é um termo polissêmico e, essa leitura que permite a interação plena com o escrito, não é só decifrar. Isso já sabemos, aliás, o analfabetismo funcional é justo isso – a falta de competência de uso do conhecimento da decifração e do domínio da escrita alfabética e ortográfica para compreender e produzir textos, interagindo na cultura escrita. Agora, a leitura que garante a autonomia em relação à notação alfabética é, sim, sobretudo, decifrar o escrito. E isso Magda mesma fala, apesar de ser a ela dirigida a crítica do vídeo, não a outros que, inclusive, dão menos ênfase à decifração do que ela. Ou seja, essa briga sobre se ler é decifrar ou não, se é decifrar ou compreender, é contraproducente, pois se fala aí de sentidos diferentes de leitura. O próprio campo da ciência da leitura conclui essa querela, defendendo, em geral, um modelo interativo que envolve ambos os processos – ascendentes e descendentes – ou ao menos boa parte dos autores desse campo. O modelo interativo de leitura é mais amplamente aceito na comunidade científica do que o modelo ascendente que Nadalim defende. Novamente, precisamos ressaltar que, nem com o campo que ele mesmo abraça, ele dialoga bem para fundamentar seus argumentos. Pelo visto, nem ao menos as obras clássicas da ciência cognitiva da leitura, perspectiva à qual ele diz se filiar, ele de fato leu. Existem pesquisas, nesse campo, que indicam a importância tanto dos processos ascendentes quanto descendentes na aprendizagem da leitura, e que coadunam com a ideia da importância de ler em busca do significado, em práticas e textos significativos e reais. Para uma visão mais nuançada e lúcida da perspectiva da ciência da leitura, ver Snow e Juel (2013). Mas eles silenciam sobre isso, não é? Porque não interessa abrir brechas para o diálogo, interessa tensionar ao extremo! E porque? Em nome da ciência é que não é – essa é mais uma falácia!

Nesse campo, encontramos também autores ponderados, que discutem no nível científico e acadêmico sobre suas divergências, achados e interpretações diferentes, pois sabem que a ciência tem também perspectivas – não é ciência exata aqui. E autores que sabem que pesquisa não se aplica diretamente às práticas pedagógicas, que têm, essas, de dar conta de exigências diversas, diversos fatores intervenientes. Mas o problema é que Nadalim se baseia em autores sectários, cujos argumentos são também carregados de viés ideológico e posicionamentos inflamados. Essas posições, mais dogmáticas do que propriamente científicas, que criam estratagemas para fechar o diálogo com outras perspectivas, revelam também o enorme interesse editorial com investimentos do dinheiro público – ficarão felizes quando essa concepção basear os documentos oficiais, não é? Só isso consegue explicar a tomada de um partido tão radical e “cego”, sem ponderações no campo das teorias, ciências de diversas perspectivas, e diferentes concepções de alfabetização.

Afinal, não nos esqueçamos, tampouco, que a compreensão leitora, nessa perspectiva, toma a decifração pela via fonológica e a posterior automatização do reconhecimento lexical como elementos fundamentais para a posterior compreensão de textos. Ora, está certo que ao automatizar o processo de ler palavras, o sujeito fica com a atenção liberada para os processos superiores de compreensão. Até aí, tudo bem. Só que os processos de compreensão não decorrem apenas de uma boa decifração ou da leitura automática das palavras do texto, exigem muito mais, exigem processos cognitivos complexos e relação com conhecimentos que vão para além do texto concreto. Assim, aguardar o domínio da leitura, em seu sentido mais restrito, para trabalhar a leitura em seu sentido mais amplo, achando que isso é que vai resolver o problema de alfabetização e letramento (de literacia funcional, eles dizem na PNA) é dar um tiro no pé. Por isso, cuidado com cair na argumentação de que a compreensão leitora não existe antes de ler propriamente, pois as estratégias, procedimentos e comportamentos leitores que contribuem muito na compreensão leitora, quando as crianças tiverem autonomia de leitura lexical, podem e devem ser trabalhadas desde sempre, e não apenas ao já se saber ler. Isso é, de longe, a ideia mais perigosa e ideológica dessa perspectiva: esperar as crianças aprenderem a ler para investir na compreensão de textos. Por isso, insistamos no letramento antes da alfabetização! Nas facetas sociocultural e interativa do letramento, que inclui também os processos leitores e produtores de textos.

De todo modo, também quanto a essa história do reconhecimento das palavras nos textos, a birra de Nadalim, embora ele não saiba, continua sendo com a didática construtivista, não tanto com a perspectiva do letramento – ah, esqueci que para ele é tudo a mesma coisa! Mas é Magda, ela mesma, que é atacada e, já que são ataques destituídos de argumentos sólidos, são ataques “ad hominen”...Aliás...ataques a uma mulher, não é? Só por isso deve merecer todo esse desrespeito, mesmo descabido, de quem não se deu nem ao trabalho de estudar suas obras. Ora, bolas, mas para quem só liga para as tutelas estrangeiras, pra que ler autoras tupiniquins, não é?

Bom, gente, é certo que essa polêmica sobre ler ser decifrar ou compreender é vasta, não daria aqui para explorar essa seara aprofundadamente, e sei também que algumas perspectivas, de fato, enfatizam apenas o pólo da compreensão – o que para mim, também é equivocado – assim como a abordagem à qual Nadalim é afiliado enfatiza apenas a decifração. Compreender, diz ele, é algo para depois, é a finalidade da leitura, não leitura. Mas nem todos estão situados nesses pólos extremos, como já discutido anteriormente. Tudo depende do conceito de leitura que se considera.

Nadalim tem outro vídeo em seu canal que fala, justamente, sobre isso. É um vídeo curto, vale a pena assistir para continuar a discussão.


Quanto a esse vídeo, ele segue a argumentação capciosa, polarizando dois componentes da leitura, separando-os, e prioriza apenas a decifração no processo complexo de leitura.

Afirmar que as crianças só se apropriam da leitura se for de forma mecânica é uma afirmação irresponsável. Além disso, diferente dele, não queremos formar apenas leitores hábeis, mas leitores inteligentes, críticos, sagazes.

Sobre sobrecarga cognitiva – será que sabe mesmo o que é? Duvido muito. Afinal, dizer que tem experiência nesse ramo: quá quá quá...é tudo que tenho pra dizer.

Mas vamos comentar, mesmo assim. Entendo que quando se fala que ler é compreender  refere-se a esse sentido mais amplo de ler, não à capacidade de transformar a notação em sentido, via reconhecimento das palavras (por via fonológica ou lexical), porque é óbvio que é possível ler (decifrar) sem compreender (analfabetismo funcional é bem esse caso), e compreender sem ler (no sentido de decifrar), como no caso de compreender uma história lida por outro ou qualquer outra situação. Trata-se aí da leitura como um processo interativo, reflexivo, ativo, em que o leitor não é mero receptor das informações linguísticas do texto. Trata-se de um leitor ativo que constrói sentidos na interação com o texto. Ângela Kleiman, Ingedore Koch, Isabel Solé, e tantos outros autores e autoras já nos deram régua e compasso nesse departamento aí... É dessa leitura mais ampla, que envolve a compreensão, a produção de sentidos, o processo inferencial, de que se trata. Ler é polissêmico! Mas – e isso é que importa sublinhar – também é equivocado dizer que compreender é apenas a finalidade de ler, porque se fosse assim, bastava decifrar bem para compreender os textos, e a realidade nos mostra que isso não é assim, não é? Leitura (decifração) literal não garante a leitura (compreensão). Há diferentes habilidades envolvidas na leitura, não apenas a decifração. É esse entendimento que estamos tentando defender diante dos rumos das propostas do MEC quanto às políticas de alfabetização. E não defender que ler seja prever o escrito. Essa é mais uma argumentação falaciosa que, repetida à exaustão, se pretende tornar verdade. Não deixemos! E aliás, essas diversas habilidades não precisam ser abordadas sequencialmente, uma depois da outra, mas sim simultaneamente. Até porque, aprender a ler sem pensar no sentido, sem  compreensão é muito chato! Subestima-se as crianças achar que não dão conta e, a língua sem vida torna a aprendizagem mecânica, sem sentido para elas. Nem sempre o que é bom no âmbito da ciência é bom no âmbito social e, nesse caso, no âmbito das práticas pedagógicas, que precisam dar conta de um objeto de conhecimento que é multifacetado. Num país que as crianças, aliás, não têm garantidas as ricas experiências com o mundo letrado, é até perverso sentenciá-las a um ensino instrumental (ou é isso mesmo que querem, né?). Como argumenta Magda Soares (2016) e Isabel Frade (2007), as várias aprendizagens que envolvem a apropriação da leitura e da escrita exigem diferentes metodologias. 

Rebatendo outro argumento do vídeo, afirmar, peremptoriamente, que o convívio com textos não permite que as crianças construam hipóteses sobre o funcionamento da escrita, que pesquisem inteligentemente sobre como a escrita funciona, sobre como se lê ou escreve uma palavra, sobre o que diz um verso, um texto, está baseado em quê? Ele fez pesquisas quanto a isso? Citou alguma? De novo ele mistura coisas diversas. Uma coisa é fazer hipóteses sobre o funcionamento da escrita – e muitas pesquisas, mesmos de perspectivas da psicologia cognitiva da leitura que ele assume, indicam, assim como outras tantas pesquisas, de outras perspectivas, também válidas. Outra coisa é fazer hipóteses e predições no reconhecimento de palavras no texto. Ele  parece misturar isso tudo numa coisa só, alertando quanto ao perigo dessa perspectiva. Perigo de as crianças refletirem sobre a língua? Perigo de pensarem sobre os textos mesmo sem saber ler? Perigo de pensarem? É isso?

Bom, mas sei que tudo isso é muito complexo, não cabe, em um post, entrar em detalhes sobre essas questões. Mas são temas a estudar, a debater, a trazer para essa discussão, contribuições do campo da ciência cognitiva da leitura das quais devemos nos apoderar e passar pelo crivo da interpretação pedagógica. Mas, para quem quiser se aventurar nesse estudo, sugiro para começar o capítulo do livro de Micotti, de 2012 (minha versão é 2017), com um resumo dessa questão. Para aprofundar mais, podem consultar o capítulo introdutório do livro "Aprendizagem da leitura e da escrita: o papel das habilidades metalinguísticas", de Sandra Regina Kirchner Guimarães.

Deixo, entretanto, registrado o achatamento – mais um achatamento – da questão, quando Nadalim silencia, ou melhor, elimina, outras perspectivas, para colocar de forma impositiva – postura nada científica – a sua própria posição. O que importa é que o nosso secretário da alfabetização coloca sua posição unilateral como verdade última e fechada, enquanto o campo da ciência da leitura – o campo que ele mesmo valida – diferente desse sectarismo, segue debatendo, pesquisando, ponderando, divergindo – nem eles fecham questão assim. Ao atribui um caráter incontestável às pesquisas cognitivas em leitura, silenciando sobre discordâncias nesse próprio campo, negando cunho científico às perspectivas científicas de outras linhas, atribuindo-lhes o valor de ideologias, e desconsiderando a necessária interpretação pedagógica dos resultados de pesquisa (já que na prática, o que temos que dar conta é de um objeto multifacetado e de realidades não consideradas), Nadalim – como outros dessa vertente mais sectária – fecha o debate.

Toda a complexidade do campo se esvai em fórmulas simplificadas e binárias frequentes em seus vídeos. Ou seja, o que podemos concluir aí é que seus argumentos de ataque, aparentemente bem construídos, escondem uma miscelânea de diferentes perspectivas atacadas malandramente como se fossem uma coisa só e a adesão a uma única perspectiva como se fosse a única válida no campo científico – o que não é verdade – reduzindo um campo complexo a um binarismo simplório. Engodo para os pais e para os professores desavisados.

Se defender o convívio com a cultura letrada e aprender o sistema no contexto do uso da língua nas práticas de leitura e escrita, tem aproximações com o que a marcha analítica defendia, confundir isso com método analítico e com leitura por adivinhação, colocando o letramento como vilão, é muita má fé. Mas é fato que esse não é um equívoco só dele. Vários comentadores, que se acham “educadores” de última hora, divulgam suas opiniões na mídia baseados em premissas equivocadas, tratando da atual querela como se fosse a velha querela entre método sintético (fônico) X método global, analítico – que associam ao que há hoje nas políticas de alfabetização. E os jornalistas que escrevem as matérias, ainda que trazendo as duas visões, ainda que, por vezes, bem intencionados e mesmo críticos da perspectiva do governo, partem também dessas premissas equivocadas, que é o modo deles (de Nadalim, de muitos defensores do método fônico) de colocar a questão (ver aqui, aqui e aqui, exemplos). Quanto a isso, ver também o post 0, com o panorama sobre o campo da alfabetização no Brasil, e as duas entrevistas que já indiquei, com Magda Soares, a esse propósito, aqui e aqui.

Vamos dar uma pausa para o refrigério, mas ainda tem mais a analisar nesse vídeo. Na próxima postagem, seguirei apontando e discutindo sobre equívocos conceituais e afirmações que não se sustentam, mas em posts mais breves, já que o essencial já foi discutido. Comentarei absurdos que extrapolam as questões relativas ao processo linguístico de alfabetização, sobre ideologia, fazendo, também, algumas considerações sobre os argumentos de Nadalim quanto à formação de professores e o homeschooling.  Sim, tem mais...Em breve...

Por ora, lembro que no meu acervo de jogos e materiais há muitas propostas que implicam em reconhecimento de palavras quando ainda não se sabe ler decifrando. Quero lembrar que, embora baseadas em propostas caras à didática construtivista, minha visão sobre elas é de que precisam incluir - nessa pesquisa inteligente que as crianças fazem sobre a escrita das palavras - os aspectos sublexicais de forma menos casual. Ou seja, trata-se de provocar as crianças, explicita e intencionalmente, a considerarem em suas reflexões também os aspectos sonoros: sons iniciais de sílabas ou fonemas salientes, rimas, relação entre as letras e os fonemas vocálicos que, por soarem, e seus nomes coincidirem com seus sons, facilitam a identificação das palavras. Fatiados, lacunados, textos enigmáticos (como os provérbios e Trava-línguas do acervo), as Adivinhas 4 opções ou o Minhas Adivinhas, são kits com essa proposta. Não se trata de contar apenas com a predição, com o que sabem oralmente sobre os textos e com estabelecimentos casuais de relação entre a dimensão sonora e gráfica. 

Nota de esclarecimento: a Ciência Cognitiva da Leitura consiste em um conjunto de pesquisas produzidas em áreas diversas, tais que a Psicologia Cognitiva, a Neurociência Cognitiva e a Linguística Cognitiva.

terça-feira, 9 de abril de 2019

LETRAMENTO, O VILÃO DA ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL? – POST 2


Post 2 – Miscelânea conceitual: letramento, construtivismo, whole language, método global, ideovisual ... tudo num saco só? Letramento e/ou literacia? Consciência fonêmica: pré-requisito e/ou consequência?

Introdução

Aos desavisados, que possam reclamar do textão, volto a esclarecer: trata-se de textos para estudo, cujos interlocutores são, em geral, estudantes, professores do ensino básico, buscando relacionar os estudos do campo da alfabetização ao panorama atual das políticas públicas em nosso país, e especialistas, aos quais junto minha voz para contribuir com esse debate – propósitos enunciados no início da série. Portanto, o texto é “explicudo”, tem glosas necessárias ao estudo, ao aprofundamento necessário para compreender a seriedade das distorções perpetradas pelos que atacam concepções sem fundamento e com muita desonestidade intelectual. E, por vezes, tem também alguns juízos quanto ao que se diz, ao como se diz e a quem – de que lugar –  diz, para rebater juízos que não se sustentam, o que revela minhas indignações, indignações que cabem nesse gênero de texto – postagem de blog. De todo modo é contrapondo-se a argumentos, não à pessoa, embora, por vezes, seja difícil mesmo separar isso, nesse momento, não é? Ademais, refletir não apenas sobre o que se diz, mas como se diz e o próprio processo de dizer do enunciador e as condições de sua produção, também faz parte do campo de estudos da linguagem. Aqui é um blog, não um periódico científico, nos qual teço minhas considerações a partir de outras organizações discursivas e linhas argumentativas.  

Lê quem quer e quem precisa. Se você quer comentários mais breves, sínteses e estudar não é bem o que procura, o lugar é o Facebook, lá teço minhas considerações também. Aqui sou eu, indignada, perplexa, em luta! E o estudo compartilhado é um modo de lutar! Porque por trás dos discursos há um problema de fundo que diz respeito aos usos do dinheiro público para livros e materiais didáticos, e todo o movimento de mercantilização da educação. Desconstruir esses discursos nos ajudam a pactuar com o que realmente importa!

Vamos lá, continuando e aprofundando...

1. Miscelânea conceitual
Continuando...vamos seguir na argumentação sobre o vídeo “Letramento é o vilão da alfabetização”, iniciada no Post 1 dessa série que discute o vídeo. Os argumentos de Nadalim, nesse vídeo, seguem com outros tantos equívocos conceituais. Falaremos, nesse post, de outros equívocos relacionados aos já enunciados. São tantos, que só textão mesmo para dar conta!

Como ele confunde letramento e construtivismo, colocando tudo no mesmo saco – ou acredita que  o letramento é a aplicação da teoria construtivista na alfabetização (sic!!!), como discutimos no post anterior – ele acha, igualmente, que “o letramento é também uma espécie de ambientação latino-americana, especialmente brasileira, do whole language” – nas palavras dele. Nada mais incorreto! O whole language, ou linguagem integral, é uma perspectiva psicolinguística holística dos anos 1970, cujos representantes são Ken Goodman e Frank Smith, e faz parte das querelas dos métodos nos Estados Unidos, se contrapondo à perspectiva fônica. 

O whole language gerou, nos EUA, propostas pedagógicas em que as relações fonema–grafema não são objeto de ensino direto e explícito, sua aprendizagem decorreria de forma natural da interação com a língua escrita, com os textos. A aprendizagem sobre a notação da língua se dá, nessa perspectiva, na imersão na linguagem escrita, sem investimento no ensino sistemático do funcionamento alfabético da notação da língua. A decifração era evitada ou adiada. Embora vejamos hoje os limites dessa proposta, ela também traz uma importante contribuição no sentido de cuidarmos de, na abordagem das unidades que estruturam o sistema para aprender sobre seu funcionamento, não nos descuidarmos da linguagem significativa, das próprias particularidades sonoras quando se analisa os fonemas no contexto das palavras, das variedades linguísticas - aspectos muito importantes, dentre outros, que Goodman sinaliza.

Agora, a pergunta é: onde é que a perspectiva do letramento, defendendo a interação com as práticas letradas, implica em não ensinar a notação alfabética? Onde é que falar em inserir as criança na cultura letrada implica em ensinar a ler pelo todo sem abordar o funcionamento do sistema, sem ensinar os procedimentos de decifração? Onde ele viu isso? Em que livro de Magda Soares? Esse “livro” não existe!!! A perspectiva do letramento, ainda mais a de Magda, que é diretamente atacada no vídeo, enfatiza tanto a faceta sociocultural e interativa da língua e de sua apropriação, quanto as aprendizagens relativas ao sistema de escrita alfabética. Não há negligência com essa faceta linguística, referente à notação alfabética da língua, sua base fonológica, os procedimentos de decifração. Não necessariamente e, categoricamente, não na perspectiva da autora que ele critica abertamente no vídeo. Aliás, é justamente a isso que Magda Soares se refere quando fala de alfabetizar letrando e letrar alfabetizando, defendendo a especificidade da aprendizagem do funcionamento alfabético na apropriação da língua escrita. É o que ela chamou de “reinvenção da alfabetização”, em um artigo de 2003!!! Mais de 15 anos! Então...o que você acha? Ele leu Magda Soares? Reinventar a alfabetização é, segundo a autora, justamente voltar a colocar foco nessa especificidade do processo de alfabetização, do ensino do funcionamento alfabético, que foi um tanto negligenciada pelo foco nos aspectos psicogenéticos e socioculturais da apropriação da escrita – que ela denominou de “desinvenção da alfabetização”. Justo ela – que embora seja uma voz importante no campo dos estudos do letramento, defende tanto esse ensino explícito do sistema – sendo atacada por algo completamente dissonante em relação ao que defende. Ele com certeza não leu Magda Soares! Letramento não tem nada a ver com whole language, Sr. Nadalim!!!

Numa postagem no blog de Nadalim, há um texto de um professor, Luiz Carlos Faria da Silva, adepto do homeschooling, que, após juntar Vygotsky, Luria e a neuropisicologia, também nesse mesmo saco, diz: “Aprender a ler com base em textos, aprender a ler privilegiando as habilidades cognitivas superiores, aprender a ler do todo para a parte, aprender a ler dando valor à função social da linguagem, tudo isso é whole language, tudo isso é construtivismo aplicado à alfabetização, tudo isso é letramento” – atestando, ele também, a sua miscelânea completa. Quanta asneira! Quanta desconsideração por tantos campos de conhecimento! E Vygotsky, diga-se de passagem, entrou de gaiato no saco apenas por defender o óbvio, de que o ensino da língua deve se dar no uso vivo da linguagem – coisa que até hoje, ainda nem conseguimos, de verdade, garantir. Na certa, para esse professor, validado por Nadalim, construtivismo também é uma etiqueta que cobre a perspectiva histórico-cultural, sociointeracionista, e um monte de coisa mais. Dizem que “construtivismo” é vago, porque há tantos conceitos de construtivismo quanto autores que o defendem (segundo Luiz Faria, no Blog Como educar seus filhos), mas eles mesmos fazem uma mistureira sem fim. Sim, o construtivismo terminou por agregar diversas referências e ajustes são necessários para entender as nuances entre teorias e discurso pedagógico e político-pedagógicos. Mas daí a desqualificar as perspectivas contrárias aos ideais deles e igualá-las todas é muita desonestidade... Em outro texto, esse mesmo professor diz: “aplicado ao ensino de leitura e escrita, o construtivismo ganhou no Brasil o nome de letramento”. Então, finalmente, entendi de onde Nadalim tira essas afirmações esdrúxulas e a empáfia de dizê-las com tanta convicção. Esses caras são loucos!

Agora, para não ficar apenas na perplexidade, vamos tentar entender... É fato que essa perspectiva do whole language se aproxima de como, no Brasil, o construtivismo foi didatizado na alfabetização (o construtivismo, não o letramento. Lembram? Não é a mesma coisa!).... E isso a própria Magda Soares afirma, reconhecendo as aproximações. As próprias Emilia Ferreiro e Ana Teberosky (1985) abordaram, em seu livro sobre a pesquisa psicogenética, os princípios de Goodman e Smith, se alinhando a eles e abrindo a brecha para tal aproximação. A didática de cunho construtivista, no Brasil – estabelecida na alfabetização, principalmente, com o PROFA no início dos anos 2000, a partir dos PCNs, segue fundamentando projetos municipais e é bastante presente no discurso pedagógico, com propostas didáticas que se aproximam daquelas do whole language. A hegemonia do discurso pedagógico construtivista e suas concepções sedutoras quanto à aprendizagem das crianças, de fato favoreceu o tensionamento com a perspectiva fônica, pois, bem ao contrário da ênfase exagerada na relação fonema-grafema no método fônico, a didática construtivista é pouco intencional e efetiva quanto às estratégias didáticas de ensino explícito do sistema alfabético. E, de fato, adota-se aí princípios e procedimentos (como a leitura por predição), que se aproximam muito de princípios ose procedimentos da perspectiva do whole language, que julga produtiva a leitura por predição e não por decifração. Propondo um ensino do funcionamento alfabético mais casual, incidental, deu espaço para se pensar que as crianças devem descobrir quase que por si mesmas o princípio alfabético, as relações fonema–grafema, na interação com material escrito em diversas práticas de leitura e de escrita.

Ao defender que a criança é capaz de descobrir por si mesma as relações fonema–grafema, na interação com o material escrito e nas práticas de leitura e de escrita, sem investir nos procedimentos de decifração, é como se, então, priorizasse o que se denomina como letramento. Ah...o letramento... E aqui chegamos a um ponto importante. Talvez seja por isso que Nadalim e seus gurus se acham no direito de colocar esses conceitos – letramento e construtivismo – no mesmo saco. Percebem? Só que precisa forçar bem a barra para concluir, então, que o letramento é o mesmo que whole language. E também para jogar fora, de forma desrespeitosa e autoritária, toda a perspectiva construtivista, em função de certos equívocos que sua didatização e hegemonia nos discursos e políticas operaram no campo da alfabetização. A sabedoria de aparência de Nadalim é quase sofismática. Como lembra Artur Gomes de Morais (2006), o debate já se originou, no Brasil, de forma inadequada, pois importou a antiga discussão entre “método global” e “método fônico”, ‘whole language’ e ‘phonics’ em outros países, tomando a premissa equivocada dos partidários do método fônico de que a didática construtivista de alfabetização se igualaria ao método global.

Mas continuando... Sabemos que Emilia Ferreiro, ela mesma, não criou nenhuma didática, apenas estabeleceu princípios a partir da pesquisa e da teoria, que foram didatizados com pouca ênfase no ensino do funcionamento alfabético. Nem na perspectiva psicogenética, nem na perspectiva do whole language, nem na didatização  do construtivismo, no entanto, ignora-se os aspectos fonológicos e notacionais da escrita alfabética. A própria Telma Weisz (2004), representante maior dessa didática no Brasil  afirma – assim como Goodman (1997) – que não se pode negar o processo de tomada de consciência dos aspectos fonológicos da língua no processo de alfabetização. Goodman (1997)  afirma que essa abordagem não ignora a fônica, apenas a coloca na perspectiva da leitura e escrita reais. Mas é fato que as propostas baseadas nessa abordagem não se ocupam e até negligenciam aos procedimentos didáticos sistemáticos de tais aspectos, dando margem à polarização em relação à perspectiva fônica. Embora a didática dita construtivista não ignore as relações da escrita com a pauta sonora da língua falada – inclusive, nem poderia, já que a perspectiva psicogenética busca, justamente, compreender como as crianças vão construindo essas relações – as aprendizagens nesse sentido, especialmente no que se refere à apropriação do princípio alfabético, são mais incidentais do que resultado do ensino sistemático e explícito do funcionamento da notação da língua. Como a própria Telma Weisz (2016, p. 18) afirma, “desde que haja informação disponível e espaço/condições para a reflexão sobre o sistema de escrita, os alunos constroem os procedimentos de análise necessários para que a alfabetização se realize”. Ao professor, nessa perspectiva, cabe organizar a atividade e agrupamentos produtivos, colocar as “boas perguntas” nos pequenos grupos ou duplas, que orientem as análises das crianças, orientar a busca por fontes de pesquisa (ex. modelos estáveis de escrita convencional, como os nomes próprios), oferecendo informações específicas apenas quando necessário. Ora, precisamos mais do que isso. E esse “mais do que isso” não precisa ser, necessariamente mecânico, desconsiderando como a criança pensa, como alguns defensores também sectários dessa didática argumentam por aí também.

Ou seja, da perspectiva de alfabetização à qual me alinho, a crítica de Nadalim, sobre o whole language, teria algum sentido se direcionada a esse aspecto da didática construtivista – crítica que eu também faço. Mas não, ele direciona sua crítica à dobradinha construtivismo-letramento, ao construtivismo em geral e ao letramento como sinônimo de construtivismo no Brasil. E, ao que parece, o faz “fundamentado” (com aspas mesmo!) nesse Luiz Faria – e, com uma ênfase ainda maior no letramento e em Magda Soares. A birra maior dele parece ser o letramento, Magda, tudo volta para isso, com distorções argumentativas. E justo ela que não pertence a uma perspectiva de letramento que se ocupa mais da imersão na cultura letrada do que dos processos de alfabetização propriamente dita. Justo ela, que, como já dito, fala na necessidade de recolocar foco na especificidade das aprendizagens relativas ao funcionamento alfabético do da notação da língua e sua relação com a base fonológica da língua falada. Justo ela que escreveu o último livro justamente sobre a especificidade da alfabetização.

Nadalim aproxima construtivismo e letramento da abordagem do whole language devido a essa perspectiva se preocupar com as práticas reais de leitura e escrita, mas desconsidera completamente o que de fato está em jogo na discussão sobre letramento (não sabe o que, lembram?) e ignora desonestamente o fato de que, na perspectiva da alfabetização em contexto de letramento da qual fala Magda, não há a negligência com o ensino do sistema de escrita alfabética – muito pelo contrário!  Ou seja, ou ele parece ignorar completamente a perspectiva da autora, pois a critica por falta de algo que ela, justamente, faz tão bem, ou ele é muito má fé mesmo! Ou os dois, provavelmente os dois.
Além da má fé, mostra desconhecimento mesmo, deve se basear em discussões de segunda ou terceira mão. Mesmo sem conhecer a obra da autora, sua perspectiva, se arvora a criticá-la e de modo tão tosco e fraudulento. Ele não sabe o que é letramento e se arvora a misturar tudo numa argumentação frágil com ares de sabido que teria descoberto a falha do outro, distorcendo, mal intencionadamente, a perspectiva da autora, para caber em sua argumentação raivosa, arrogante e desrespeitosa, para validar sua retórica e “vender” a sua própria perspectiva, o seu “milagre”, em cima de uma grande desonestidade intelectual (e vender aí também no sentido literal, seu curso on-line "Ensine seus Filhos a Ler - Pré-Alfabetização" custa quase 3 mil reais!!!). Mal sabe ele que os defensores mais sectários da didática construtivista – que, inclusive, associam procedimentos fonológicos a perspectivas epistemológicas positivistas e posições políticas conservadoras – criticam Magda e a abordagem da consciência fonológica (com premissas equivocadas também), e atribuem quase um valor de “palavrão” a unidades da língua como fonemas e sílabas, associando-as a procedimentos, necessariamente, mecânicos e não significativos. Ou seja, tão sectários quanto, criticam Magda justamente pelo contrário do que Nadalim critica: por ela defender aspectos que, ele, por outros caminhos e com outras ênfases, defende. Curioso não é? Muito curioso...

2. Letramento, práticas sociais e literacia
Há, visivelmente, nesse vídeo, um birra com o letramento. Outras perspectivas também relativizam a necessidade desse conceito, inclusive a própria Emilia Ferreiro, mas num outro tipo de argumentação. A questão é se há necessidade dessa separação entre letramento e alfabetização e o que estaria implicado nisso. Mas nenhuma dessas perspectivas desconsideram a escrita como uma prática social, seja referindo-se a letramento, seja referindo-se a cultura escrita ou a alfabetização como englobando tanto isso quanto o sistema notacional. Mas reparem que, nesse governo, vão tentar abolir das políticas públicas o termo letramento. Tanto nos anúncios da mídia sobre os planos do governo, quanto no próprio Decreto n.9.465 de 2 de janeiro de 2019 do MEC, nos artigos 28 a 31, que tratam da instituição da Secretaria de Alfabetização e das três diretorias que ela engloba, observa-se o uso do termo literacia em vez de “letramento”, ambos importados do termo literacy, usado em referências anglo-saxônicas. Usam aqui literacia – como em Portugal –, para não usar o termo letramento em uso no Brasil – o que diz muito sobre as rusgas com o campo e os rumos do que pretendem. O pesquisador da ciência da leitura e neurocientista português, professor emérito da Universidade livre de Bruxelas, José Morais, usa preferencialmente esse termo, mesmo referindo-se ao Brasil, e um de seus argumentos é que letramento traz uma dimensão social nem sempre existente nos textos que circulam – como diários íntimos! Ao que remeto a minha argumentação no primeiro post da série. Outro argumento que já ouvi a esse respeito é de que letramento seria mais a apropriação inicial, enquanto literacia não – argumento que não se sustenta. Essa aprendizagem inicial é referida por eles como reading acquisition, reading instruction, beginning litteracy, enquanto literacia seria, segundo José Morais (2013, p. 4), o “conjunto das habilidades da leitura e da escrita (identificação das palavras escritas, conhecimento da ortografia das palavras, aplicação aos textos dos processos linguísticos e cognitivos de compreensão).” Ou seja, a dimensão sociocultural é que parece ser problemático para eles, que focam apenas a dimensão individual, autônoma, da literacy/literacia/letramento, e não sua dimensão social. Enfim...Brian Street neles! Agora, percebam que o que eu ressalto aqui não é o uso do termo, em si, pois se usassem "letramento" nesse sentido restrito aí, de habilidades cognitivas, escolares, seria pior ainda. Seria reduzir o letramento ao letramento "autônomo", como nos ensina Street. Assim, nesse caso, usar outro termo, como literacia, é até mais coerente. A despeito de nem literacia, em Portugal, nem literacy terem um único sentido, também sendo usado (menos) em sua perspectiva mais sociocultural, "literacia" combina melhor com essa visão da PNA. A questão é, para onde jogaram o letramento? E essa é uma escolha motivada, nada neutra.

No blog “Como educar seus filhos”, de Carlos Nadalim, o professor Luiz Faria diz, com a mesma empáfia e equívoco que “o termo “letramento” foi inventado no Brasil e tem sido empregado como substituto do termo ‘literacia’”. Ora, tanto “literacia” quanto “letramento” são termos que derivaram do inglês “literacy”, neologismos que surgiram em função de necessidades de ampliações conceituais no campo e, como é normal em toda língua e todo campo científico, novos termos podem ser criados e, por vezes, a partir de termos usados em outras línguas. Mas o professor comete nessa breve oração dois pressupostos equivocado e eivado de preconceitos. Primeiro, quando usa o termo “invenção”, como se o termo letramento não fosse válido, por ter sido “inventado”, e pelo fato de ter sido inventado no Brasil – porque, se é assim, “literacia” também foi “inventado”. Só que por ter sido inventado na Europa (Portugal usa “literacia” para “literacy”) tem valor, não é? O fato de sonoramente se assemelhar mais importa? É tão bandeiroso que diz que usamos “letramento” como SUBSTITUTO de “literacia”!!! Não, querido, ambos os termos foram gerados do termo literacy e, no campo das teorizações conceituais, tomaram conceitos diferentes. Quanta síndrome de colonizado,  de vira-latismo, my god! Na verdade, tem ainda isso: o termo literacy, usado com referência a um letramento autônomo (Brian Street), escolar, teve uma tradução brasileira como alfabetismo. O termo letramento, no Brasil, ganhou um sentido mais amplo, vinculado aos estudos dos New literacy studies, que expandem esse conceito para os aspectos sociais, os letramentos críticos, letramento no plural! E nesse caso, se usar letramento com esse sentido expandido de literacy fosse invenção do Brasil, que bom seria, não é? Nosso crédito!

Mas ainda além disso, como já mencionei, o termo literacia também tem, em Portugal, diferentes sentidos, a depender da perspectiva considerada. Também lá, como no Brasil, o conceito está em processo de construção no campo, e é heterogêneo, múltiplo, plural, embora haja a tendência ao seu uso mais restrito, ligado a perspectivas da educação mercantilizada, da testagem, das habilidades cognitivas - já que esse é um movimento mundial, não brasileiro. Mas é fato que o campo de estudo das culturas escritas é complexo e não unificado, como já argumentaram Maurizio Gnerre (1985) e o próprio Brian Street (2014). Faz parte da pluralidade de áreas do conhecimento, ver os conceitos sob óticas diversas. Mesmo o fato de ser ainda impreciso e controverso, tem relação com a dinâmica do campo. A imprecisão conceitual do termo letramento referida por esse professor no blog “Como educar seus filhos” existe também em outros lugares, porque faz parte do processo de constituição de novos conceitos, porque implica os usos diferentes que são dados a eles em diferentes perspectivas, diferentes visões de mundo e, aliás, porque é da dinâmica da própria linguagem. Como podemos ler no editorial da revista Escrita, do Ceale/UFMG, a apropriação do termo literacy, na França, tem se deu por meio de três formas: littéracie, littératie, litéracie. Alguns autores parece que resolveram adotar os três, justamente em função das diferenças conceituais entre eles. Percebe? Outros autores, da perspectiva de alfabetização como processo discursivo, a exemplo de Cecília Goulart, problematizam o conceito justamente por motivos opostos, por enfatizar a dimensão social e discursiva da própria alfabetização. Vale a pena a leitura de artigo da autora nesse sentido. Os conceitos estão sempre submetidos a serem esgaçados, ampliados, reduzidos, reconfigurados, isso não é obra de desarranjos tupiniquins, não, certo? É produção de conhecimento! Além disso, depende também da perspectiva que se adote: antropológica, linguística, psicológica, pedagógica. Não é coisa do Brasil, não, Luiz Faria! Desonestidade é querer fazer parecer que aqui é tudo mal-amanhado e que só a perspectiva de vocês é que vai salvar o campo dessa “bagunça”. Tem dó! A necessidade do conceito pode até ser circunstancial, negociável, como podemos ver no próprio Glossário Cealemas não pelos argumentos postos pelos senhores. 

Em Portugal, tampouco todos o conceituam literacia como José Morais, pelo contrário, há pesquisadores que o conceituam muito mais próximo do conceito brasileiro de letramento – inclusive os processos que engendraram tal conceito – enfatizando um significado mais amplo, que se refere à capacidade de utilização da língua escrita em contextos sociais. Aliás, também lá há instabilidade no uso do conceito, uns o associam às competências de leitura e escrita, outros a sua utilização social. Mas é enorme a capacidade desses caras de serem desonestos a ponto de achatar também os usos dos conceitos e todo o campo científico estrangeiro, além do brasileiro... Se quiser ver um panorama histórico do conceito de literacia, em um trabalho acadêmico de mestrado na Escola Superior de Educação de Coimbra, fique à vontade. Nas páginas 21 a 24. Nessa entrevista esse conceito também aparece aproximado do que entendemos como letramento.

A simplificação da linguagem, para esses caras, que parecem não saber que os conceitos são historicamente determinados (é muita ideologia para eles isso, né? Ironia localizada), que não dão conta da linguagem viva, com seus conceitos que ganham novos sentidos a depender do contexto de uso, reduz a dinâmica dos sentidos, dos usos dos termos da língua a um dicionário onde só se encontrasse palavras com uso objetivo, literal, denotativo. Eita mundo chato!

3. Considerações sobre a consciência fonêmica
Mas sigamos com os problemas conceituais presentes no vídeo, saído do letramento e indo à especificidade do sistema de escrita e do papel da consciência fonêmica nessa apropriação. A certa altura do vídeo, Nadalim usa uma citação do pesquisador José Morais para “provar” (sic!!!) que a tomada de consciência dos fonemas não é automática, que depende do ensino explícito do “código” (sic!) alfabético. E ele cita o trecho abaixo do livro “Os neurônios da leitura”, de Stanislas Dehaene, da Artmed.
                                                              

Ora, é isso mesmo que afirmam vários autores e, pasmem, inclusive Emília Ferreiro diz algo semelhante. Embora a autora, adequadamente, não chame o sistema alfabético de “código”, ela defende que a consciência fonêmica se dá, justamente, a partir da compreensão do funcionamento alfabético. Ela, inclusive, usa esse argumento para criticar que se deva trabalhar com os fonemas na oralidade, previamente à escrita, já que são unidades altamente abstratas, sem realidade sonora. Para ela, uma vez que vão aprendendo o funcionamento alfabético, no contexto de palavras que se põem a ler e a escrever, e não a partir de relações soltas de grafemas e fonemas, é que a consciência fonêmica se desenvolve. Essa aliás, é uma perspectiva quanto à relação entre consciência fonêmica e leitura. Há quem pense, como Nadalim, que a consciência fonêmica é pré-requisito à leitura, há quem pense, como Emilia Ferreiro, que é uma consequência de ter aprendido a escrita alfabética (ou seja, a consciência fonêmica não é automática, ela depende da compreensão do sistema, como diz Morais aí – a diferença é que Emilia coloca foco na aprendizagem, não no ensino), e há que pense, numa via em meio termo, que há uma causalidade recíproca, alguns aspectos da consciência fonêmica (que não é um bloco homogêneo, mas composta de várias habilidades) são necessários para compreender a escrita alfabética e outras habilidades se desenvolvem com a compreensão do princípio alfabético. Essa perspectiva interativa é a que José Morais (2013) admite hoje aceitar. E mesmo antes disso, enfatizava que a consciência fonêmica se desenvolve com a apropriação da escrita alfabética – exatamente como defende Ferreiro –, incluindo-se aí a apresentação das letras e a descoberta do que elas notam. Embora eu ache que o contexto das palavras seja importante na consciência dos fonemas (e não de letras isoladas), vale lembrar que, em seu livro "A arte de ler", José Morais afirma que a análise da fala em fonemas é pouco eficaz sem que sejam tornadas explícitas as suas relações com os signos escritos, que a consciência fonêmica não precede a aprendizagem do funcionamento, ainda que parcial, do sistema alfabético. Ou seja, surgem simultaneamente - o que revela a ideia da causalidade recíproca e não da consciência fonêmica como pre-requisito para aprender o sistema. Ele cita, inclusive, um estudo em que o autor diz que os fonemas se tornam "audíveis" apenas com o alfabeto, a consciência do fonema se dá quando assumem uma forma visível, nas letras. E Nadalim, em seu Ebook fala de apresentar os fonemas antes das letras, pasmem! Conclusão: já sabem, né? José Morais é tido por Nadalim como uma referência...mas... Acho até que dá sim para brincar com fonemas - os fricativos, por exemplo, que podemos esticar e os oclusivos em sua repetição em trava-línguas - chamando a atenção para esses sons menores em atividades epilinguísticas, que podem se desdobrar em atividades metalinguísticas, mas é no confronto com as palavras escritas que as crianças tomam verdadeiramente consciência dos fonemas como unidade distintiva. Para discutir mais sobre isso, ver post aqui no blog.

Todas essas três perspectivas têm defensores e detratores, mas, ao que parece, nosso secretário só conhece e admite uma delas, ou melhor, nem sabe o que defende, pois se contradiz. Parece que nem entende bem o que José Morais argumenta aí, pois, em seu e-book, Nadalim fala claramente em treinar as crianças nos sons isolados das letras previamente à apresentação das letras, da escrita, que é uma perspectiva didática que supõe que a consciência fonêmica é pré-requisito para aprender o princípio alfabético. Percebem a contradição em relação ao que defende José Morais? Pois é! Nem os autores que ele refere como pares nas suas argumentações, ele parece, de fato, conhecer. Pega trechos descontextualizados de livros, de vídeos, sem consideração do todo da obra dos autores, dá nisso!

Ou seja...quem é mesmo que acha que a consciência dos fonemas se dá de forma automática? Está dialogando com Smith e Goodman? Certamente não é com Emilia Ferreiro, nem com Magda Soares, que enfatiza, inclusive, a natureza grafo-fonônica da consciência fonêmica, preferindo, inclusive, falar em consciência grafo-fonêmica, justo porque as vê de modo integrado, não os fonemas previamente às letras, às palavras.

Isso para vermos o tanto de equívocos, de desconhecimento dos autores que ataca e mesmo dos autores aos quais se alinha. 

Bom, na continuidade da conversa sobre decifração e predição abordada aqui, seguiremos no POST 3, falando um pouco mais sobre o processamento da leitura. Esse assunto tem um crocotó, um apêndice, uma barriga, um adendo, um “a mais”, que não podia ficar de fora dessa análise. Então, se você quiser encarar um pouco mais de aprofundamento no assunto das misturas e imprecisões conceituais de Nadalim e seus pares, siga adiante...  Assunto árido...mas completa esse estudo. Ficou grande...por isso, fiz o crocotó...o POST 3! J


Referências
Obs.: As referências bibliográficas usadas em todas essas postagens da série, salvo os artigos indicados nos links, virão ao final do estudo.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

LETRAMENTO, O VILÃO DA ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL? – POST 1

POST 1 - Introdução - análise inicial das premissas do vídeo; concepção de letramento, de funções sociais e práticas letradas; letramento é uma invenção do construtivismo?


O ponto de partida dessa e das próximas postagens, que fazem parte da série sobre a situação das políticas de alfabetização nesse governo, é a análise do vídeo do canal de Youtube “Como educar seus filhos”, de Carlos Nadalim, o nosso atual secretário de alfabetização no MEC, que tem como título “Letramento, o vilão da alfabetização no Brasil”. Essa é a primeira postagem da série, após a de  contextualização, que chamei de POST 0. Há um post com o "sumário" dessa série, para ajudar a "se achar" nos textos. Pode procurar também no marcador "Políticas públicas de alfabetização". Todas as postagens dessa série estarão lá. Para saber mais sobre Carlos Nadalim, ver aqui.

Mas vamos ao vídeo. O título do vídeo, afirmativo – diferente do título dessa postagem, interrogativa –, já causa bastante estranheza...estranheza essa que se confirma ao assisti-lo. Claro que o vídeo é anterior a seu posto na pasta do Ministério e ele fala aí de outro lugar, teremos que esperar para ver o que e como ele falará e encaminhará as questões, efetivamente, como secretário no MEC. Mas é importante entendermos o que ele pensa, o chão que ele pisa, para vislumbrarmos o que esperar dessa gestão na secretaria. Por outro lado, essa postagem não se reduz a analisar e criticar o vídeo, é também uma oportunidade de discutirmos diversas questões envolvendo o campo da alfabetização e prepararmo-nos para esse enfrentamento, seja na Universidade, formando professores, seja nas redes dos municípios, que, por conta dos financiamentos da educação, talvez sejam tentadas a “comprar” essas políticas federais. Assim, a crítica ao vídeo é também oportunidade de discutirmos questões que são importantes enfrentarmos, bem como minha contribuição para desmistificar assertivas que não se sustentam nas argumentações que, possivelmente, vão vir de lá. Vejo comentários favoráveis e cheios de elogio a Nadalim, sempre baseados em premissas errôneas e avaliações leigas de sua qualificação. Nós, professores e futuros professores, não podemos cair nessa! Como bem disse minha colega na Faced e forte aliada nas lutas no campo da educação e linguagem, Giselly Lima, além das premissas equivocadas, das falácias, da desonestidade intelectual, que irei comentar aqui, é revoltante a edição do vídeo, a retórica para beneficiar suas assertivas mal-amanhadas, os exemplos fraudulentos, pois fora de contexto, as falsas relações de causa e efeito, que ele força parecerem naturais... Se analisarmos bem, tem sofismas, deduções falsas, tudo levando, certamente, a um argumento bastante autoritário. Como disse Giselly, ele força interpretações do que é dito para reforçar, por vezes, o oposto do que é dito, e dou, como exemplo, enfatizar e encaminhar a seu favor, falas descontextualizadas de José Morais, e distorcer falas de Magda Soares. Só isso já merecia mais do que as respostas dela na mídia, a manifestação da ABAlf, e nossas indignações todas. Merece denúncia! Esse vídeo merecia, inclusive, uma análise de discurso. Quem se habilita?

Agora, como há aspectos do campo teórico e didático que, de fato, contribuem para o engendramento desses discursos críticos à alfabetização proposta nas políticas públicas e nos discursos pedagógicos até aqui, vamos nos dedicar a analisar as premissas, as argumentações, para além do mau caratismo. Precisamos enfrentá-las! Por isso, sem defesas cegas, vou analisar também as limitações que dão brechas à defesa de que a solução para os problemas de alfabetização seja a questão dos métodos e que o método fônico é a alternativa única a uma didática que negligencia o ensino sistemático do sistema alfabético.

Assim, esse será mesmo um textão! Por isso, de dividi-lo em várias postagens, numeradas e linkadas, para facilitar a leitura sequenciada (ou não), vou também tentar dividi-lo em partes, quando achar necessário. Mas é textão, aviso logo. Inclusive, montei meu componente de Alfabetização e letramento, da graduação em pedagogia na UFBA, esse semestre, em torno dessa discussão, e é material de estudo com os estudantes. Ou seja, é um post de estudo, de esclarecimento, de luta – não me cobrem concisão! Combinado? Para resumos, posts rápidos e com maior circulação – fan page do blog no Facebook! Lá tenho também divulgado esses posicionamentos.

1. Para começar...
O vídeo já começa com esse título inadmissível: letramento = vilão. Mas vamos por partes, desmisturando o que está aí misturado, desmistificando certezas, premissas postas, falácias.

Na chamada do vídeo afirma-se: “No Brasil, sobra letramento, mas ler e compreender textos bem é raridade. Conheça um dos graves problemas educacionais que impede nossas crianças de aprender a ler com eficácia”. Já aí aparece a incompreensão do conceito de letramento, de sua amplitude, e de que ler e compreender textos faz parte desse processo. É como se ler e compreender não fizesse parte do letramento. O vídeo contém, ele mesmo, inúmeros equívocos conceituais, como esse.

Mas, primeiro, assistam ao vídeo, se já não assistiram. E tem a postagem no blog dele também.


O vídeo começa falando de informar e instruir os pais para a tarefa de “livrar seus filhos do analfabetismo funcional”. Ora, à parte a desqualificação da escola nessa fala, que comentarei depois, o uso de tal conceito – analfabetismo funcional – parece inadequado aí. Analfabetismo funcional refere-se, justamente, a quem tem algum domínio da técnica de decifração e codificação do escrito, mas que não consegue interpretar e produzir textos simples, ou seja, fazer uso desse conhecimento técnico – conhecimento técnico que é o foco do método que ele defende. Analfabetismo funcional equivale justamente a um baixo grau de letramento, não a não saber decifrar. E se ele acha letramento vilão, há contradição aí...Mas não é contradição, é desconhecimento mesmo! Ou seja, novamente sua fala denuncia a incompreensão conceitual que reina em suas argumentações. Se o pressuposto está equivocado, não tem como todo o resto não estar.

Embora, no video, Nadalim reconheça que a questão da alfabetização é complexa e envolve problemas de diversas ordens – que “estamos cansados de saber”, segundo ele diz com certo desdém – enfatiza a questão dos métodos, dos procedimentos de alfabetização que considera ineficazes, e a formação dos professores baseadas em teóricos e práticas que ele julga, enfaticamente, como ineficazes, responsabilizando-os, de algum modo, pelos fracassos da alfabetização das crianças (e aqui não entram os outros problemas mais amplos, que ele deixa para trás...não se fala em investimentos na estrutura das escolas, em valorização do profissional docente, etc...).

Nem vou comentar sobre sua vaidade exposta, quando se apresenta como o portador do Relatório do grupo de trabalho sobre alfabetização infantil, em 2017, ao deputado federal Diego Garcia, membro da comissão de educação, talvez já costurando sua possibilidade de estar contemplado com alguma pasta no governo (note-se que esse relatório foi apresentado, em 2003, à Câmara dos Deputados, evidenciando a polarização, referenciada, equivocadamente, como construtivismo X método fônico); quando mostra “para quem não sabe” (!!!) o Diploma de Mérito dado pela comissão de educação (o próprio deputado Diego Garcia é que foi a Londrina entregar!!!), por ter sido indicado ao prêmio Darcy Ribeiro de Educação 2016, prêmio que é realizado anualmente pela Comissão de Educação e pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados (indicado por quem mesmo?); e quando indica as entrevistas com especialistas (de uma perspectiva única) que entrevistou no seu blog, tudo isso como trunfos prévios para qualificar e validar suas afirmações posteriores....e muitas costuras com intenções à frente! Mas preciso indicar que prestem atenção como ele fala dos autores/pesquisadores que traz para supostamente validar sua perspectiva, principalmente José Morais, revelando seu complexo de vira-lata colonizado que precisa de tutelas teóricas estrangeiras,  e elas têm, sempre, a última palavra. Nenhuma referência de identidade nossa (porque as nossas não prestam?), nenhum contraditório que nuance suas certezas inabaláveis...

Ao criticar a BNCC por continuar propondo uma perspectiva construtivista (veremos adiante as inúmeras confusões que faz em torno disso), diz ironicamente que o documento fez algumas CONCESSÕES (sic!!!) à abordagem fônica, mas, segundo afirma, de forma muito confusa. Concessões? Com isso, ele pressupõe que apenas a abordagem fônica assume a importância da apropriação do princípio alfabético do sistema de escrita pelas crianças, o que é uma visão completamente equivocada. Em seu e-book reaparece essa ideia de que o método fônico visa o princípio alfabético, como se nenhum outro visasse. A sua abordagem, o seu método fônico sintético, não é “dono” da abordagem do sistema alfabético, não é o único que visa à apropriação do princípio alfabético pelas crianças, nem mesmo da abordagem do phonics que, no Brasil, tem sido associado diretamente ao método fônico, usado erroneamente como sinônimo daquele método.

Ele critica também a visão de que a alfabetização só exista no contexto do letramento. E quando explica, a partir de pergunta retórica irônica “o que é letramento?”, recorrendo à fala de Magda Soares – uma das “mães do letramento”, como ele diz com risinho irônico no canto da boca – se apega na expressão “funções sociais”, para arrogantemente debochar da autora, aparentemente “concordando” com ela, mas deixando nas entrelinhas a insinuação de que isso não é o importante, e forjando uma relação dessa expressão com uma suposta ideologização... Compreender a expressão “funções sociais” como algo necessariamente ideologizado é outra grande incompreensão conceitual. Funções sociais diz respeito a que funções a escrita/os gêneros de texto têm em diversas práticas/situações comunicativas da sociedade em que circulam. Nesse sentido, a fruição estética da literatura; a função instrucional, injuntiva, e de registro da memória implicadas em uma receita de bolo; a função injuntiva de um manual de instrução; a função lúdica de um trava-línguas infantil; a função informativa, argumentativa, de uma reportagem ou artigo de opinião em jornal; tudo isso envolve funções sociais desses gêneros. Até mesmo escritas pessoais, como um diário íntimo, que escrevemos para nós mesmos, tem função social – escrevê-los é uma prática em nossa sociedade, mesmo que não seja para interação com outros sujeitos. O diário é um texto que tem um quem escreve, para quem, para que, um quando dizer o que diz e um como dizer, tem características discursivas socialmente estabelecidas, é regulado socialmente (sabemos que é íntimo, lê-lo sem consentimento é, a depender da situação, violá-lo), quando publicizados, também sua recepção é estabelecida - sabemos as características do gênero. O fato de um texto concreto não mediar uma interação concreta com outro indivíduo, não tenha uma resposta concreta de um outro, não significa que o gênero textual não se constitua socialmente e não tenha função social. Enfim...é uma prática social, com funções sociais. Bem como uma lista de compras para si mesma, anotações na agenda... Todas essas práticas são sociais, mediadas por gêneros com funções sociais, com objetivos no âmbito da situação comunicativa, ainda que para si mesma. Uma lista de compras para nós mesmos serve para não esquecermos de nada – somos nós mesmos o destinatário daquele texto, cuja função social é registrar algo para lembrar – a função de registro é uma função social da escrita. É impressionante como até mesmo autores de peso fazem essa confusão de achar que função social diz respeito apenas a textos engajados ou de comunicação funcional com outros sujeitos. E se é assim, o que esperar de Nadalim, não é? E quando se quer ver cabelo em ovo...se implanta cabelo em ovo. Sua argumentação, em um momento do vídeo, desemboca na constatação de que há uma insistência nessas “práticas sociais” de leitura e escrita, como se essa expressão – insisto – tivesse um teor ideológico necessariamente nefasto. E ironiza novamente. Em suma, ele não sabe o que significam práticas sociais, função social, por isso, não sabe o que significa letramento.

Agora, um adendo: argumentar isso não significa retirar a força sociopolítica do conceito de letramento, não. Afinal de contas, como aprendemos com Bakhtin, a linguagem não acontece em um vácuo social, os textos – sejam eles orais ou escritos – não têm valor fechado em si mesmos, mas articulados aos interlocutores situados no mundo social, histórico e político. 

O argumento de Nadalim, falando sobre as crianças, segue na lógica do “se não sabem o básico” – para ele, o funcionamento alfabético – como vão se ocupar de funções sociais? Ou seja, vê a alfabetização propriamente dita como pré-requisito para o letramento, coisa que inúmeros autores – não apenas Magda Soares – relativizam. Ele pergunta: “Como é que elas vão ainda compreender e interpretar textos (...)”, como vão compreender a função social de algum gênero, se ainda não sabem relacionar grafemas e fonemas? Pois é, seu Secretário...você não entendeu o conceito de letramento, você não sabe o que é alfabetizar em contexto de letramento, você não sabe que as crianças estão inseridas – se têm oportunidade para tal – no contexto de letramento, muito antes de se alfabetizarem. Você subestima as crianças, que muito querem saber sobre os textos e a língua se tem oportunidades de conviver amplamente com a cultura escrita. E desde muito pequenas! Muitos autores discutem sobre os eventos de letramento ligados a práticas sociais letradas, que envolvem crianças pequenas e adultos não alfabetizados. Mas basta observar as crianças - elas mesmas confirmam isso!

O curioso nisso tudo é que Magda Soares, da qual ele debocha, sem nenhum respeito, tem sido uma voz importante no campo da alfabetização, para, justamente, não só defender o letramento, quanto defender a importância do ensino explícito e sistemático do funcionamento alfabético, ao lado da inserção das crianças na cultura escrita. Mas, sinceramente, ele não parece ter lido a autora, e ainda assim, se julga em posição de criticá-la. O livro que empunha, como bandeira, no vídeo, é um dos mais antigos da autora, de 1986 (!!!), “Linguagem e escola: uma perspectiva social”, importante, mas que centra a discussão nas relações entre linguagem, escola e sociedade e, especialmente, na variação linguística, para compreender a questão do fracasso escolar de sujeitos das classes desfavorecidas, no ensino de Língua Portuguesa – temática mais específica do que as que a autora aborda hoje. Mas claro que ele ia escolher esse para empunhar, não é? Lá, quando a análise do fracasso escolar e sua relação com a variação linguística era uma questão premente, ela afirma que é “inadmissível deixar de vincular o ensino da língua materna às condições sociais e econômicas de uma sociedade” (SOARES, 1991, p.78). Ele recorta o que quer, para validar suas críticas. Porque não empunhou o livro de 2016, último da autora? Porque lá tem muitas coisas com as quais ele mesmo teria que concordar, não fosse tão sectário. Secretário sectário!

Só alguém que não entende os conceitos e não conhece a realidade de crianças tentando interagir com a escrita pode subestimar a tal ponto as crianças, para afirmar que elas só conseguirão aprender o sistema alfabético se for de forma instrumental, descontextualizada. Sim, é preciso planejar situações de aprendizagem e estratégias didáticas específicas para refletir sobre a notação da língua e sua base fonológica. Quando Magda defende que a alfabetização se dá ao mesmo tempo que o letramento, está falando de aprender o sistema como objeto cultural que se aprende nos processos reflexivos, cognitivos, mediados pelos professores, no contexto da linguagem viva, das práticas sociais significativas de leitura e escrita – aprende o sistema para ampliar a participação nas práticas letradas. E isso porque concebe a linguagem como interação social e o funcionamento da escrita alfabética não como pré-requisito ou instrumento para a aprendizagem, mas como um objeto de ensino efetivo, que é a escrita alfabética, usada para comunicar os diversos textos, de diversos gêneros, em diversas situações comunicativas, para interagir através da linguagem escrita. Mas essa visão de linguagem não parece preocupá-lo, não é? É uma visão de linguagem perigosa para os que querem que as camadas menos favorecidas fiquem restritas à língua como um código. Sim, eles precisam ter acesso ao funcionamento da notação da língua, mas precisam ter acesso a muito, muito mais!

2. Para continuar...
Bom, mas vamos lá, ainda tem muito. Vamos analisar a afirmação que o youtuber faz nesse vídeo de que “no fundo, o letramento nada mais é do que uma reinvenção construtivista da alfabetização” e, mais adiante “o letramento é, em suma, a aplicação do construtivismo no ensino de leitura e escrita. Ponto final. É uma reinvenção construtivista da alfabetização”. Quanto descalabro! E quanto autoritarismo nesse “ponto final!”. É certo que, no campo dos debates acadêmicos, há divergências conceituais e, embora, no geral todas as perspectivas estejam atentas aos aspectos socioculturais da escrita, os conceitos de alfabetização e de letramento não são sempre os mesmos nos diferentes aportes teóricos. Nem todas as perspectivas assumem o letramento como um conceito necessário, preferindo falar em alfabetização mesmo, abarcando tanto as questões relativas ao sistema quanto à cultura escrita. Mas a despeito dessas divergências, nenhuma perspectiva – salvo a que Nadalim traz – vê de forma negativa esse aspecto sociocultural da escrita e de seu ensino, que pode ser referido como letramento por uns, como cultura escrita por outros, como alfabetização por outros. Ele coloca essa visada sociocultural da escrita como o vilão da alfabetização!

Além disso, não há nada mais equivocado do que dizer que o letramento é um conceito do construtivismo. Trata-se aí de uma incompreensão gigantesca do campo das teorias que embasam as concepções de alfabetização. Os estudos do letramento colocam foco nos aspectos socioculturais da escrita. O construtivismo é, originalmente, uma teoria sobre o processo de aprendizagem, relativa à epistemologia piagetiana. Depois, agregou outros aportes, mas é, essencialmente, isso. A própria Emilia Ferreiro – que desenvolveu sua pesquisa psicogenética sob o aporte do construtivismo piagetiano – prefere não usar o termo letramento. O que ela refere como cultura escrita é similar, quando defende a alfabetização no contexto das práticas de leitura e escrita que circulam na cultura. O uso do termo “construtivismo” se ampliou para abarcar outros aportes e é fato que terminou por constituir um conceito vago, para o qual conflui diversos princípios, inclusive a questão de aprender a ler e escrever no contexto das práticas de leitura e escrita. É certo também que, no discurso pedagógico e em propostas das políticas públicas, esses aportes – os estudos do letramento e a perspectiva construtivista – vieram, muitas vezes, relacionados, complementando-se. Nos PCNs, por exemplo, há, inclusive, certo apagamento da especificidade dos estudos do letramento e sobre os gêneros discursivos, tudo isso sendo colocado na conta do construtivismo. Mas justificar colocar tudo no mesmo saco pelos usos diversos de um conceito e satisfazer-se com essa miscelânea para falar sobre o campo da alfabetização é uma irresponsabilidade. Ainda que Nadalim fale para pais, leigos, essa distorção é de má fé.  Em vez de esclarecer, obscurece, distorce, simplifica.

Atacar essas diferentes perspectivas – a perspectiva do letramento e a perspectiva construtivista – como se fossem uma coisa só, contrapondo-as, em conjunto, ao método fônico, é uma aberração teórica, uma total imprecisão conceitual, e um modo altamente simplório de ver o campo da alfabetização hoje, que conta com diferentes concepções em conflito ou em diálogo. Confundindo numa coisa só concepções diversas, ele achata um campo complexo reduzindo-o a uma disputa binária – todas elas, igualadas e polarizadas, em conjunto, ao método fônico, apresentado como uma farcesca novidade. Mesmo em diálogo (nem sempre, mas frequentemente), essas perspectivas que ele ataca, amalgamadas, não são equivalentes, e a serem colocados no mesmo saco. Há grandes diferenças. Um artigo de Mortatti, de 2010, aborda isso muito bem. Porque, sim, essa reedição da defesa do método fônico não começou com Nadalim, com esse governo, há uma tentativa antiga, desde o início dos anos 2000, de enfrentamento da perspectiva fônica em relação à hegemonia do construtivismo nas políticas públicas. Esse enfrentamento, por vezes chama ao diálogo com pesquisadores que colocam foco na perspectiva fônica – e temos mesmo que debater –, mas, na maioria das vezes, associando-se a fônica exclusivamente ao método fônico, chama ao confronto polarizado e desrespeitoso com os pesquisadores de outras perspectivas. Como já era, antes, com João Batista Araújo e Oliveira (Instituto Alfa e Beto) e os Capovilla - e aqui, nesse outro artigo, de 2008, Mortatti aborda essa questão, analisando a proposta de Capovilla. E é desse lado que está o secretário, insuflando, como nenhum outro, a animosidade. E sem argumentos sólidos, sem conhecimento de causa, sem estudo próprio...

A despeito de esclarecimentos recorrentes de autores consagrados no campo, inclusive especialistas da história dos métodos e concepções de alfabetização, no vídeo, Nadalim mistura construtivismo e letramento a todo momento, como se fossem sinônimos. Os estudos do letramento são estudos que não vieram associados à teoria construtivista nem à didática de cunho construtivista. Há uma tradição internacional e nacional de estudos sobre o letramento, como estudos de Brian Street, Shirley Heath, do New London Group, dentre outros, e os estudos brasileiros de Ângela Kleiman, Leda Tfouni, Silvia Terzi,  Roxane Rojo, e outros tantos autores, que em nada se aproximam da perspectiva construtivista. Letramento diz respeito às práticas sociais de leitura e escrita, às situações comunicativas e aos gêneros discursivos de diversas esferas da  comunicação humana e relaciona-se a uma concepção de linguagem como interação social. Desde cedo, crianças que têm oportunidade para tal se relacionam com muitas práticas letradas e aprendem muito sobre os usos e funções da escrita em diversos gêneros de texto, podem produzir discurso escrito, ainda que via oralidade, via escriba, e podem compreender o discurso escrito, para além da decifração do escrito. Ignorar essas aprendizagens é negar às crianças o acesso à cultura escrita, da qual elas fazem parte, com a qual interagem, mais ou menos, a depender das oportunidades familiares, sociais e escolares que têm para tal. Argumentar que esse contexto é menos importante ou atrapalha a alfabetização é querer reduzir, novamente, a linguagem a algo técnico, instrumental, neutro – bem ao gosto dos interesses de quem não quer formar sujeitos conscientes e críticos, capazes de ler, interpretar, compreender e se posicionar sobre os textos e sobre o mundo. É importante ressaltar, no entanto, que não é o phonics que é, em si mesma, uma perspectiva conservadora, necessariamente, ou até uma espécie de “complô da direita”, mas  sim o modo como essa ênfase na fônica se dá, sob que organização discursiva e, sobretudo, ao ser alçada não apenas a assunto educacional, mas a assunto político e religioso, como é o caso (o e-book de Nadalim, de 2015, refere, na introdução, a um suposto recebimento de sinal de Santa Teresinha do Menino Jesus que o iluminou a seguir o caminho que seguiu na educação. E além de todas as motivações políticas e editoriais que envolve, é digno que nota que ele refere, igualmente, ao “Curso Online de Filosofia”, de Olavo de Carvalho, que, no cenário político atual, o indicou ao MEC).

Ou seja, gente, está difícil de engolir essa forçação de barra para letramento virar sinônimo de construtivismo. No próximo post, continuação deste, analisaremos mais a fundo essa confusão de letramento e construtivismo, pois é uma premissa equivocada básica para o letramento ser tachado como o vilão da alfabetização.

A continuar...