domingo, 28 de abril de 2019

LETRAMENTO, O VILÃO DA ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL? POST 3 – Para aprofundar...


Post 3 – O que dizem mesmo os experts; Predição ou decifração OU predição e decifração?; ler é decifrar? Ler é compreender? Ler e compreender? Leitura: conceito polissêmico; modelos de processamento da leitura.

Esse post é um crocotó, um apêndice, uma barriga, um adendo, um “a mais”, que continua o post anterior, o POST 2, e é meio pretensioso, eu confesso. Mas não resisto a fazer esses comentários elucidativos, que reforçam os equívocos conceituais do vídeo.

No vídeo “Letramento, o vilão da alfabetização”, além de igualar letramento e construtivismo, e essa “dobradinha” à whole language, Nadalim iguala tudo isso também a método global, a método ideovisual, forçando caber na perspectiva do letramento a ideia de leitura por predição e do “jogo psicolinguístico de adivinhações”, procedimentos defendidos pelo aporte da whole language (um dos principais teóricos da estratégia de predição é Goodman em “Reading: a Psycholinguistic Guessing Game”, 1985). Quando chegamos a essa parte do vídeo, vemos que a mistureira é sem fim. E o saco está ficando grande demais, não acham, não? Nada mais equivocado...pra variar. Isso tudo se configura, no entanto, como uma estratégia bem montada de generalizar bem o lado do adversário, cabendo tudo ali, para, então, apresentar o seu antídoto. Aliás mais do que uma estratégia, é um estratagema, por seus componentes: astúcia, subterfúgio, ardil, sabotagem.

No post 0 argumentei sobre isso das propostas atuais de alfabetização em contexto letrado não ter nada a ver com método global, muito menos com propor que o reconhecimento de palavras se dê por sua configuração, seu desenho gráfico, sua identificação ideovisual. Mas não bastasse isso, mais adiante no vídeo, voltando a esse amalgama mal amanhado de construtivismo-letramento (e multiletramento ele inclui aí também) com a perspectiva da whole language, ele diz que “um dos grandes erros dessa perspectiva é acreditar que as crianças podem aprender a ler e a escrever por meio de um ‘jogo psicolinguístico de adivinhações’, a partir do levantamento de hipóteses e predições sobre os textos, estabelecendo elas mesmas, autonomamente, as relações entre grafemas e fonemas, descobrindo os significados das palavras por meio do contexto”. Volto a dizer que, se isso poderia até ser atribuído a algumas estratégias defendidas pela didática construtivista, que investe na leitura por predição, sem considerar intervenções intencionais e planejadas sobre unidades sublexicais (unidades menores, fonológicas e gráficas, constitutivas das palavras, como morfemas, sílabas, fonemas, letras...), não tem, no entanto, nada a ver com o letramento, como já argumentado  – e é ele que é atacado como vilão da alfabetização (“invenção do construtivismo”, lembram?).  E a didática construtivista, como argumentei no post anterior, de fato se aproximou da perspectiva da whole language...

Mas de todo modo, nem a didática construtivista ignora as reflexões sobre as relações entre partes do oral e do escrito. Não as aborda de modo sistemático no ensino, mas pressupõe que as crianças usem seus conhecimentos sobre a escrita para tentar decifrar e escrever. É importante ressaltar que as situações de pesquisa inteligente das crianças sobre o escrito, suas reflexões a partir da análise de diversos aspectos do texto e das palavras, não podem ser vistas como da ordem da adivinhação. E, desde que entre nessa pesquisa inteligente também as informações sublexicais, rumo à crescente possibilidade de decifração precisa das palavras, esse “ler sem ainda saber ler”, usando informações contextuais, fazendo predições e usando, ao mesmo tempo, informações sublexicais para decifrar as palavras e partes das palavras, pode ser produtivo, sim. Produtivo para os aspectos textuais, a compreensão do texto, os processos descendentes (top-down) da leitura. 

Mas é fato: não podemos deixar de considerar que as informações fonológicas, fonográficas e ortográficas têm um papel preponderante na leitura propriamente dita. A leitura por predição, ou seja, o uso do contexto do texto, da semântica, para ler, ajuda no desenvolvimento da capacidade de inferência, de construção de sentidos, mas para a identificação das palavras, os processos sublexicais, as informações gráficas e sua relação com a pauta sonora da língua são imprescindíveis. O que diversas pesquisas mostram hoje é que para o reconhecimento e identificação de palavras na alfabetização inicial, a predição é um procedimento não produtivo. Mas não quer dizer que não seja produtivo de todo tampouco. A leitura precisa, fluente e autônoma de textos não é precisamente um processo de predição contínuo e de elaboração de hipóteses sobre as palavras que o compõem. Envolve o processamento das letras e das unidades da estrutura fono-ortográfica de cada palavra, que conduz ao seu reconhecimento ou à sua identificação e, depois torna-se um processo automático complexo. A decifração é um passo importante na conquista da identificação automática das palavras que é, sim, necessária à meta de ler de forma fluente, automática, por via lexical, ortográfica, sem decifrar letra por letra, ao lado dos processos mais amplos de compreensão textual.

A leitura lexical, ou seja o reconhecimento ortográfico que permite a automatização da leitura, ou seja, a leitura eficiente sem ter que decifrar letra por letra, no entanto, depende da leitura pela rota fonológica, no aprendizado inicial da escrita alfabética, em um processo ainda bem misterioso para os pesquisadores da ciência cognitiva. Ou seja, para ler de forma automática, pelo reconhecimento ortográfico das palavras é preciso passar, na aprendizagem, pela decifração, pela rota fonológica. Esse domínio não vem pela predição sobre a escrita das palavras na alfabetização inicial. Ler e aprender a ler são dois processos diferentes, se ler envolve reconhecimento automático, aprender a ler envolve também a decifração. Penso que esses são aspectos da ciência cognitiva que, sim, é preciso levarmos em consideração para pensar nas propostas alfabetizadoras. Então, nem tanto, nem tão pouco. 

A fluência da leitura será alcançado por meio da prática frequente da leitura, após vencer essa etapa fonológica, que promoverá o reconhecimento automático, e possibilitará a leitura eficiente, que implica o jogo entre processos ascendentes e descendentes e entre as duas rotas de leitura – fonológica (para palavras desconhecidas ou pouco frequentes) e lexical (para as já firmadas no léxico mental). 

Agora, não podemos aceitar que associem a defesa da exposição das crianças aos textos a um ensino por predição. Além da justificativa do letramento, colocar as crianças na alfabetização inicial, bem no início da sua formação leitora e escritora, em contato com a leitura e escrita de textos, antes mesmo de chegarem a ler com autonomia e escrever de forma convencional, tem relação com o fato de que a se considera a alfabetização como um processo que vai além do ensino da decifração do sistema alfabético. Aposta-se que as crianças se perguntam sobre a escrita – desde que tenham oportunidade para tal – e vão formulando hipóteses sobre seu funcionamento, argumentando sobre suas ideias, mesmo que ainda distantes da leitura autônoma e da escrita convencional. É isso e não exatamente e necessariamente, porque creem que a leitura por predição e a imersão na cultura escrita bastam para, efetivamente, se alfabetizar.  Isso porque olham pelo ponto de vista da aprendizagem e não apenas do ensino, apostando no pensamento das crianças, em sua capacidade de indagar ativamente o objeto de conhecimento. E aqui é uma diferença epistemológica de base em relação à perspectiva que só considera o objeto e o ensino, sendo a aprendizagem apenas um resultado desse ensino. E essa é uma lição do construtivismo e do socioconstrutivismo (ou sociointeracionismo) que é inegociável.

Mas, dito isto, precisamos reconhecer o que nisso tudo dá brecha a essas interpretações equivocadas. A questão é que a, ainda que a didática construtivista preveja princípios e estratégias para provocar a reflexão sobre o princípio alfabético,  apostam muito alto na leitura por predição (sem incluir nessa pesquisa os elementos sublexicais de forma sistemática) e negligenciam as reflexões sistematizadas e provocadas coletivamente pelo professor, sobre a dimensão sonora da escrita. E isso por acreditar que as próprias crianças constroem os procedimentos de análise necessários para que a alfabetização se realize, deixando a mediação docente um tanto casual nesse aspecto. Tanto é que Telma Weisz (2016, p. 17) afirma que “nas atividades de ‘leitura’, o aluno precisa analisar todos os indicadores disponíveis para descobrir o significado do texto e poder decidir o que está escrito (e onde)”. E isso, conforme a autora, pode ser feito de duas formas: pelo ajuste dos segmentos do texto falado, memorizado, aos segmentos escritos, e por estratégias de antecipação pelo contexto verbal ou extraverbal. Não nego nada disso. Mas esses procedimentos não devem implicar em negligenciar a decifração, e nem se opõem a ela, como tentarei argumentar mais adiante. Decifração, consciência fonológica, fonema, sílaba, por vezes são termos quase proibitivos a essa didática – como já argumentado. Eis a porta que se fecha, também aí, para dialogar mais produtivamente com a perspectiva da ciência da leitura. Diálogos, no entanto, apesar de epistemologias diversas, são possíveis, saindo, em ambos os casos, das perspectivas polarizadas, sectárias.

Uma coisa é opor completamente decifração a predição pelo contexto, como se só houvesse a possibilidade de um ou outro processo, outra é reconhecer a leitura como um processo cognitivo complexo, que envolve processos ascendentes (ou botton-up, foco na decifração) e descendentes (ou top-down, foco na produção de significados, na compreensão, na formulação de hipóteses sobre o texto, inferências, antecipações, predições). A leitura eficiente envolve procedimentos textuais, lexicais e sublexicais. Um modelo interativo, também teorizado nesse campo de pesquisas cognitivas, prevê um papel importante, mas diferenciado, de ambos os processos. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra!  

O simples convívio com textos escritos e a leitura por predição não garante a apropriação do princípio alfabético – ao menos Magda nunca defendeu que garante. Ler é também decifrar.  Esse é um procedimento fundamental, mas não é só decifrar, haja visto que decifrar não garante a compreensão do que se lê, os processos inferenciais que o texto exige, a apropriação dos discursos em suas complexidades diversas. Ler é um termo polissêmico e, essa leitura que permite a interação plena com o escrito, não é só decifrar. Isso já sabemos, aliás, o analfabetismo funcional é justo isso – a falta de competência de uso do conhecimento da decifração e do domínio da escrita alfabética e ortográfica para compreender e produzir textos, interagindo na cultura escrita. Agora, a leitura que garante a autonomia em relação à notação alfabética é, sim, sobretudo, decifrar o escrito. E isso Magda mesma fala, apesar de ser a ela dirigida a crítica do vídeo, não a outros que, inclusive, dão menos ênfase à decifração do que ela. Ou seja, essa briga sobre se ler é decifrar ou não, se é decifrar ou compreender, é contraproducente, pois se fala aí de sentidos diferentes de leitura. O próprio campo da ciência da leitura conclui essa querela, defendendo, em geral, um modelo interativo que envolve ambos os processos – ascendentes e descendentes – ou ao menos boa parte dos autores desse campo. O modelo interativo de leitura é mais amplamente aceito na comunidade científica do que o modelo ascendente que Nadalim defende. Novamente, precisamos ressaltar que, nem com o campo que ele mesmo abraça, ele dialoga bem para fundamentar seus argumentos. Pelo visto, nem ao menos as obras clássicas da ciência cognitiva da leitura, perspectiva à qual ele diz se filiar, ele de fato leu. Existem pesquisas, nesse campo, que indicam a importância tanto dos processos ascendentes quanto descendentes na aprendizagem da leitura, e que coadunam com a ideia da importância de ler em busca do significado, em práticas e textos significativos e reais. Para uma visão mais nuançada e lúcida da perspectiva da ciência da leitura, ver Snow e Juel (2013). Mas eles silenciam sobre isso, não é? Porque não interessa abrir brechas para o diálogo, interessa tensionar ao extremo! E porque? Em nome da ciência é que não é – essa é mais uma falácia!

Nesse campo, encontramos também autores ponderados, que discutem no nível científico e acadêmico sobre suas divergências, achados e interpretações diferentes, pois sabem que a ciência tem também perspectivas – não é ciência exata aqui. E autores que sabem que pesquisa não se aplica diretamente às práticas pedagógicas, que têm, essas, de dar conta de exigências diversas, diversos fatores intervenientes. Mas o problema é que Nadalim se baseia em autores sectários, cujos argumentos são também carregados de viés ideológico e posicionamentos inflamados. Essas posições, mais dogmáticas do que propriamente científicas, que criam estratagemas para fechar o diálogo com outras perspectivas, revelam também o enorme interesse editorial com investimentos do dinheiro público – ficarão felizes quando essa concepção basear os documentos oficiais, não é? Só isso consegue explicar a tomada de um partido tão radical e “cego”, sem ponderações no campo das teorias, ciências de diversas perspectivas, e diferentes concepções de alfabetização.

Afinal, não nos esqueçamos, tampouco, que a compreensão leitora, nessa perspectiva, toma a decifração pela via fonológica e a posterior automatização do reconhecimento lexical como elementos fundamentais para a posterior compreensão de textos. Ora, está certo que ao automatizar o processo de ler palavras, o sujeito fica com a atenção liberada para os processos superiores de compreensão. Até aí, tudo bem. Só que os processos de compreensão não decorrem apenas de uma boa decifração ou da leitura automática das palavras do texto, exigem muito mais, exigem processos cognitivos complexos e relação com conhecimentos que vão para além do texto concreto. Assim, aguardar o domínio da leitura, em seu sentido mais restrito, para trabalhar a leitura em seu sentido mais amplo, achando que isso é que vai resolver o problema de alfabetização e letramento (de literacia funcional, eles dizem na PNA) é dar um tiro no pé. Por isso, cuidado com cair na argumentação de que a compreensão leitora não existe antes de ler propriamente, pois as estratégias, procedimentos e comportamentos leitores que contribuem muito na compreensão leitora, quando as crianças tiverem autonomia de leitura lexical, podem e devem ser trabalhadas desde sempre, e não apenas ao já se saber ler. Isso é, de longe, a ideia mais perigosa e ideológica dessa perspectiva: esperar as crianças aprenderem a ler para investir na compreensão de textos. Por isso, insistamos no letramento antes da alfabetização! Nas facetas sociocultural e interativa do letramento, que inclui também os processos leitores e produtores de textos.

De todo modo, também quanto a essa história do reconhecimento das palavras nos textos, a birra de Nadalim, embora ele não saiba, continua sendo com a didática construtivista, não tanto com a perspectiva do letramento – ah, esqueci que para ele é tudo a mesma coisa! Mas é Magda, ela mesma, que é atacada e, já que são ataques destituídos de argumentos sólidos, são ataques “ad hominen”...Aliás...ataques a uma mulher, não é? Só por isso deve merecer todo esse desrespeito, mesmo descabido, de quem não se deu nem ao trabalho de estudar suas obras. Ora, bolas, mas para quem só liga para as tutelas estrangeiras, pra que ler autoras tupiniquins, não é?

Bom, gente, é certo que essa polêmica sobre ler ser decifrar ou compreender é vasta, não daria aqui para explorar essa seara aprofundadamente, e sei também que algumas perspectivas, de fato, enfatizam apenas o pólo da compreensão – o que para mim, também é equivocado – assim como a abordagem à qual Nadalim é afiliado enfatiza apenas a decifração. Compreender, diz ele, é algo para depois, é a finalidade da leitura, não leitura. Mas nem todos estão situados nesses pólos extremos, como já discutido anteriormente. Tudo depende do conceito de leitura que se considera.

Nadalim tem outro vídeo em seu canal que fala, justamente, sobre isso. É um vídeo curto, vale a pena assistir para continuar a discussão.


Quanto a esse vídeo, ele segue a argumentação capciosa, polarizando dois componentes da leitura, separando-os, e prioriza apenas a decifração no processo complexo de leitura.

Afirmar que as crianças só se apropriam da leitura se for de forma mecânica é uma afirmação irresponsável. Além disso, diferente dele, não queremos formar apenas leitores hábeis, mas leitores inteligentes, críticos, sagazes.

Sobre sobrecarga cognitiva – será que sabe mesmo o que é? Duvido muito. Afinal, dizer que tem experiência nesse ramo: quá quá quá...é tudo que tenho pra dizer.

Mas vamos comentar, mesmo assim. Entendo que quando se fala que ler é compreender  refere-se a esse sentido mais amplo de ler, não à capacidade de transformar a notação em sentido, via reconhecimento das palavras (por via fonológica ou lexical), porque é óbvio que é possível ler (decifrar) sem compreender (analfabetismo funcional é bem esse caso), e compreender sem ler (no sentido de decifrar), como no caso de compreender uma história lida por outro ou qualquer outra situação. Trata-se aí da leitura como um processo interativo, reflexivo, ativo, em que o leitor não é mero receptor das informações linguísticas do texto. Trata-se de um leitor ativo que constrói sentidos na interação com o texto. Ângela Kleiman, Ingedore Koch, Isabel Solé, e tantos outros autores e autoras já nos deram régua e compasso nesse departamento aí... É dessa leitura mais ampla, que envolve a compreensão, a produção de sentidos, o processo inferencial, de que se trata. Ler é polissêmico! Mas – e isso é que importa sublinhar – também é equivocado dizer que compreender é apenas a finalidade de ler, porque se fosse assim, bastava decifrar bem para compreender os textos, e a realidade nos mostra que isso não é assim, não é? Leitura (decifração) literal não garante a leitura (compreensão). Há diferentes habilidades envolvidas na leitura, não apenas a decifração. É esse entendimento que estamos tentando defender diante dos rumos das propostas do MEC quanto às políticas de alfabetização. E não defender que ler seja prever o escrito. Essa é mais uma argumentação falaciosa que, repetida à exaustão, se pretende tornar verdade. Não deixemos! E aliás, essas diversas habilidades não precisam ser abordadas sequencialmente, uma depois da outra, mas sim simultaneamente. Até porque, aprender a ler sem pensar no sentido, sem  compreensão é muito chato! Subestima-se as crianças achar que não dão conta e, a língua sem vida torna a aprendizagem mecânica, sem sentido para elas. Nem sempre o que é bom no âmbito da ciência é bom no âmbito social e, nesse caso, no âmbito das práticas pedagógicas, que precisam dar conta de um objeto de conhecimento que é multifacetado. Num país que as crianças, aliás, não têm garantidas as ricas experiências com o mundo letrado, é até perverso sentenciá-las a um ensino instrumental (ou é isso mesmo que querem, né?). Como argumenta Magda Soares (2016) e Isabel Frade (2007), as várias aprendizagens que envolvem a apropriação da leitura e da escrita exigem diferentes metodologias. 

Rebatendo outro argumento do vídeo, afirmar, peremptoriamente, que o convívio com textos não permite que as crianças construam hipóteses sobre o funcionamento da escrita, que pesquisem inteligentemente sobre como a escrita funciona, sobre como se lê ou escreve uma palavra, sobre o que diz um verso, um texto, está baseado em quê? Ele fez pesquisas quanto a isso? Citou alguma? De novo ele mistura coisas diversas. Uma coisa é fazer hipóteses sobre o funcionamento da escrita – e muitas pesquisas, mesmos de perspectivas da psicologia cognitiva da leitura que ele assume, indicam, assim como outras tantas pesquisas, de outras perspectivas, também válidas. Outra coisa é fazer hipóteses e predições no reconhecimento de palavras no texto. Ele  parece misturar isso tudo numa coisa só, alertando quanto ao perigo dessa perspectiva. Perigo de as crianças refletirem sobre a língua? Perigo de pensarem sobre os textos mesmo sem saber ler? Perigo de pensarem? É isso?

Bom, mas sei que tudo isso é muito complexo, não cabe, em um post, entrar em detalhes sobre essas questões. Mas são temas a estudar, a debater, a trazer para essa discussão, contribuições do campo da ciência cognitiva da leitura das quais devemos nos apoderar e passar pelo crivo da interpretação pedagógica. Mas, para quem quiser se aventurar nesse estudo, sugiro para começar o capítulo do livro de Micotti, de 2012 (minha versão é 2017), com um resumo dessa questão. Para aprofundar mais, podem consultar o capítulo introdutório do livro "Aprendizagem da leitura e da escrita: o papel das habilidades metalinguísticas", de Sandra Regina Kirchner Guimarães.

Deixo, entretanto, registrado o achatamento – mais um achatamento – da questão, quando Nadalim silencia, ou melhor, elimina, outras perspectivas, para colocar de forma impositiva – postura nada científica – a sua própria posição. O que importa é que o nosso secretário da alfabetização coloca sua posição unilateral como verdade última e fechada, enquanto o campo da ciência da leitura – o campo que ele mesmo valida – diferente desse sectarismo, segue debatendo, pesquisando, ponderando, divergindo – nem eles fecham questão assim. Ao atribui um caráter incontestável às pesquisas cognitivas em leitura, silenciando sobre discordâncias nesse próprio campo, negando cunho científico às perspectivas científicas de outras linhas, atribuindo-lhes o valor de ideologias, e desconsiderando a necessária interpretação pedagógica dos resultados de pesquisa (já que na prática, o que temos que dar conta é de um objeto multifacetado e de realidades não consideradas), Nadalim – como outros dessa vertente mais sectária – fecha o debate.

Toda a complexidade do campo se esvai em fórmulas simplificadas e binárias frequentes em seus vídeos. Ou seja, o que podemos concluir aí é que seus argumentos de ataque, aparentemente bem construídos, escondem uma miscelânea de diferentes perspectivas atacadas malandramente como se fossem uma coisa só e a adesão a uma única perspectiva como se fosse a única válida no campo científico – o que não é verdade – reduzindo um campo complexo a um binarismo simplório. Engodo para os pais e para os professores desavisados.

Se defender o convívio com a cultura letrada e aprender o sistema no contexto do uso da língua nas práticas de leitura e escrita, tem aproximações com o que a marcha analítica defendia, confundir isso com método analítico e com leitura por adivinhação, colocando o letramento como vilão, é muita má fé. Mas é fato que esse não é um equívoco só dele. Vários comentadores, que se acham “educadores” de última hora, divulgam suas opiniões na mídia baseados em premissas equivocadas, tratando da atual querela como se fosse a velha querela entre método sintético (fônico) X método global, analítico – que associam ao que há hoje nas políticas de alfabetização. E os jornalistas que escrevem as matérias, ainda que trazendo as duas visões, ainda que, por vezes, bem intencionados e mesmo críticos da perspectiva do governo, partem também dessas premissas equivocadas, que é o modo deles (de Nadalim, de muitos defensores do método fônico) de colocar a questão (ver aqui, aqui e aqui, exemplos). Quanto a isso, ver também o post 0, com o panorama sobre o campo da alfabetização no Brasil, e as duas entrevistas que já indiquei, com Magda Soares, a esse propósito, aqui e aqui.

Vamos dar uma pausa para o refrigério, mas ainda tem mais a analisar nesse vídeo. Na próxima postagem, seguirei apontando e discutindo sobre equívocos conceituais e afirmações que não se sustentam, mas em posts mais breves, já que o essencial já foi discutido. Comentarei absurdos que extrapolam as questões relativas ao processo linguístico de alfabetização, sobre ideologia, fazendo, também, algumas considerações sobre os argumentos de Nadalim quanto à formação de professores e o homeschooling.  Sim, tem mais...Em breve...

Por ora, lembro que no meu acervo de jogos e materiais há muitas propostas que implicam em reconhecimento de palavras quando ainda não se sabe ler decifrando. Quero lembrar que, embora baseadas em propostas caras à didática construtivista, minha visão sobre elas é de que precisam incluir - nessa pesquisa inteligente que as crianças fazem sobre a escrita das palavras - os aspectos sublexicais de forma menos casual. Ou seja, trata-se de provocar as crianças, explicita e intencionalmente, a considerarem em suas reflexões também os aspectos sonoros: sons iniciais de sílabas ou fonemas salientes, rimas, relação entre as letras e os fonemas vocálicos que, por soarem, e seus nomes coincidirem com seus sons, facilitam a identificação das palavras. Fatiados, lacunados, textos enigmáticos (como os provérbios e Trava-línguas do acervo), as Adivinhas 4 opções ou o Minhas Adivinhas, são kits com essa proposta. Não se trata de contar apenas com a predição, com o que sabem oralmente sobre os textos e com estabelecimentos casuais de relação entre a dimensão sonora e gráfica. 

Nota de esclarecimento: a Ciência Cognitiva da Leitura consiste em um conjunto de pesquisas produzidas em áreas diversas, tais que a Psicologia Cognitiva, a Neurociência Cognitiva e a Linguística Cognitiva.

3 comentários:

  1. É, esse tal vilão do letramento deve ser um monstro mesmo, onde já se viu... Querer que as crianças compreendam o que lêem, é no mínimo, um disparate. As crianças nessa perspectiva, desse distinto rapaz, deve ser alfabetizadas pela memorização, afinal, o que importa, segundo ele, é que a criança reconheça os grafemas e fonemas, o resto (o tal, vilão do letramento), deve ser esquecido, porque devemos saber que o analfabetismo funcional, ja está no contexto social mesmo. Então devemos aceitar, afinal, quem é essa tal de Magda Soares, com seus mais de 50 anos de estudos em letramento, para vim dizer como alfabetizar nossas crianças!?

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    1. É, Francineide, do jeito que a coisa está, só ironizando mesmo...
      É fato que precisamos investir mais na formação conceitual e didática do professor no conhecimento do funcionamento do sistema alfabético e seu ensino, é fato que precisamos considerar as pesquisas das ciências cognitivas da leitura. Mas não para dizer que alfabetizar é só isso e feito de forma tão mecânica.
      As pesquisas precisam de interpretação pedagógica, e de ser articulada a tantas outras dimensões da linguagem escrita e de seu ensino.
      Eles jogam a compreensão do texto e a produção de discursos para DEPOIS desse básico...não negam a compreensão como finalidade da leitura. Mas compreender textos exige muuuuuuuito mais que decifrar o escrito, e escrever textos muito mais do que a codificação em sinais gráficos. E aí, ao empurrá-las para o DEPOIS e como secundárias, de fato, terminam por estar defendendo uma compreensão muito limitada mesmo.
      E devem ser o que querem mesmo, né?

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