domingo, 4 de agosto de 2019

SOBRE O MÉTODO DE 20 PÁGINAS E 5 PASSOS – Parte 3

Voltamos, então, à análise do Guia Definitivo (sic!!!), do nosso atual Secretário de Alfabetização, lembrando que, evidentemente, ele não está trabalhando sozinho, senão, além de um visão equivocada, seria uma vergonha nacional. Lembro que já estão postadas, nesses links, a Partes 1 e a Parte 2 de análise desse Guia, aqui é a continuação.

Os partidários do método fônico estão em êxtase agora, tendo vez e voz para visões reducionistas da alfabetização. Reducionistas também porque sem diálogo com o campo de outras concepções no Brasil, e pior, com muito desrespeito às pesquisas de outras perspectivas epistemológicas e ao campo pedagógico. Em 2003 fizeram tanto barulho com o Ciclo de Debates da Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados, visando à mudança nas políticas públicas de alfabetização, e com a construção do relatório  do “Alfabetização infantil: os novos caminhos”. Mas prevaleceu a perspectiva construtivista e sociointeracionista. O desrespeito era tanto que acirrou a rivalização entre essas perspectivas, dificultando algum diálogo e, portanto, continuou como força contra-hegemônica sectária. Agora que estão “por cima”, a revanche deverá fechar ainda mais o diálogo, já que, para conseguir estar nessa posição, precisaram estar ladeados com esse governo que ataca a educação, o conhecimento, as perspectivas socialmente referenciadas. Se concepção de alfabetização e escolhas epistemológicas nada teriam a ver com concepção política, digo apenas que, se pesquisas cognitivas são importantes e devem ser levadas em consideração, por outro lado, no campo pedagógico, investir em habilidades cognitivas individuais e minimizar a dimensão social das práticas de leitura e escrita combina muito bem com uma perspectiva corporativa e meritocrática de mundo e de educação.

De todo modo, mesmo a questão sendo muito mais complexa – complexidade que Nadalim não acompanha, e ele não é peça-chave no campo das tematizações – ele hoje está “por cima” no campo das normatizações e o consequente favorecimento ao campo das concretizações. Resistiremos, lutaremos, desobedeceremos, mas não podemos deixar de constatar que é essa a perspectiva que vai pautar o financiamento na área da alfabetização, a formação docente, a distribuição de material, o apoio institucional, TUDO. Se individualmente poderemos seguir com nossas práticas mais amplas de alfabetizar e letrar – no sentido amplo, sociocultural do termo – coletivamente não será fácil. E o conhecimento é importante para fundamentar as nossas lutas.

Por isso, continuo firme nesse propósito, e ainda acho que vale a pena “matar dois coelhos” analisando esses materiais toscos de nosso secretário, ao tempo que vamos discutindo sobre o campo da alfabetização, sem sectarismos.

E chegamos à parte do Guia que trata de aspectos diretamente relativos à apropriação do funcionamento da escrita. Como sinalizei antes, a simplificação ignorante, os equívocos conceituais e a “démarche” associacionista continuam fortemente aqui também.
Vamos a elas: às etapas da consciência silábica e da consciência fonêmica. Não, não melhora...

4ª etapa – Consciência silábica
A etapa silábica, no Guia Definitivo, embora assinalada como uma etapa, é totalmente menosprezada, tratada de forma aligeirada, incompleta e rasa. É como se ele nem soubesse porque seria uma etapa a ser considerada, apenas segue o que outros dizem, porque o que ele diz lá, a torna algo sem nenhuma importância. A primeira constatação que podemos fazer é essa: uma unidade extremamente importante na nossa língua e na alfabetização e, para ele, nesse Guia, apenas dois breves parágrafos, 10 linhas, e um vazio enorme... Dá até para reproduzir tudo aqui:

Tratarei agora de uma realidade que está dentro de cada palavra, a realidade silábica. Pois seu filho precisa entender que as palavras são formadas por sílabas. A quarta etapa, portanto, é a da consciência silábica.
A atividade desta etapa é bem simples. Você deve segmentar palavras batendo uma palma para cada sílaba ao pronunciá-la, e a criança terá de ser capaz de dizer o número de sílabas da palavra. Use palavras que sejam familiares ao seu filho, como nomes de pessoas da sua família. Por exemplo, “Carlos”: Car (uma palma) -los (outra palma). (NADALIM, 2015, p. 25)

E isso é tudo! Cadê a sílaba na alfabetização? Silêncio total! Como e porque a consciência silábica contribui para a apropriação do princípio alfabético? Onde está a explicação para a relação entre fazer isso e aprender a ler e escrever? Ele diz? Mas não é justo isso que está em jogo nessas etapas: compreender como esses aspectos ajudam na alfabetização? Só que...silêncio total! Reduzir a “entender que as palavras são formadas por sílabas” é uma simplificação sem par. Até porque, na cabeça dos pais, separar sílabas não é algo da dimensão sonora, é algo da escrita, com regras próprias no âmbito gráfico (por exemplo, separar os dígrafos RR, SS, e não separar ditongos, como ÃO, por exemplo, situações que não têm nenhuma realidade sonora).

Consciência silábica é, para ele, só contar a sílaba (mas que sílaba? Porque repare: MA-CA-RRÃ-O – para a criança, quantas sílabas tem aí?). Mas ele lá está preocupado com o que pensa a criança? Não, né? Eis a questão... A orientação única e aligeirada que é dada, é o adulto demonstrando, e pronto...cadê o sujeito que pensa, que aprende?  Cadê a criança segmentar as palavras em sílabas oralmente? E do jeito dele, separando os SONS... Cadê a exploração da segmentação natural que elas fazem, por exemplo, ao brincar com a linguagem? Cadê identificar e produzir sílabas semelhantes em diferentes palavras? Nada é dito sobre prestar atenção em como a criança segmenta – e aliás, isso seria uma orientação vaga (para ele), né? O que fariam os pais com isso? Diriam aos filhos, não filho, não é A-VI-Ã-O, mas A-VI-ÃO... numa explicação que, do ponto de vista da criança, que segmenta as unidades sonoras ouvidas, isso seria quase chinês! Por isso também é que as orientações têm que ser chulas e simplórias, não é? Para não complicar...só que aí resta o que? Resta o que esse silêncio denuncia: simplismo que não vai servir para nada! Nem para pais que não sabem nada de alfabetização, e vão continuar sem saber.

Acho, sinceramente, que, como ele enfatiza por demais os fonemas, a consciência fonêmica, ele minimiza a sílaba como unidade fonológica importante. E mais, como ele meteu o pau no método silábico, como diz que o fonema, e não a sílaba, é que é importante, com certeza não tem ideia da importância da unidade fonológica sílaba na alfabetização, com certeza acha que não há nada mais a dizer do que vagas 10 linhas, 93 palavras, pouco mais que 500 caracteres...num Guia que se pretende definitivo. Não tem! Por isso, silencia...será melhor o silêncio a dizer bobagem? Sim, porque falar da importância da sílaba seria, de certo modo, entrar em contradição com o que ele afirma na parte dos “métodos inimigos” (claro que considerar a consciência das sílabas não é o mesmo que defender o método silábico, mas ele teria que enfrentar essa discussão, ao menos...). E desconsiderá-la seria entrar em desacordo até mesmo com o campo da ciência da leitura que ele defende. Ou seja, na situação de contradição, de complexidade, o que é que a mente simplória faz? Fala qualquer coisa, rasa, e passa adiante...Foi o que ele fez aí, vocês hão de convir.

Pois bem, mas eu esclareço...
A consciência de sílabas, diferente da consciência sintática que ele desenvolveu bastante (embora falando besteira), é um dos aspectos fundamentais no processo de alfabetização. Primeiro, porque poder se alfabetizar implica em focar os significantes das palavras e não os significados. Para as crianças saírem do que Piaget chamou de realismo nominal – ou seja, a característica do pensamento infantil em que a criança expressa dificuldades em dissociar o signo da coisa significada (referente) – ela precisa, justamente prestar atenção no tamanho da palavra oral, pela segmentação silábica. Assim, embora o animal boi seja maior que o animal formiga, a palavra BOI é menor que a palavra FORMIGA. Sem isso, não há alfabetização, pois, seja na leitura, seja na escrita, a criança que não sai do realismo nominal vai tentar corresponder a escrita às características físicas do objeto representado.
A segmentação silábica trata-se de uma habilidade que as crianças adquirem quase que naturalmente, mas nem por isso, pode-se dizer que limita-se a “contar sílabas” e, muito menos, numa situação de demonstração. Há aí a tomada de consciência de que a língua oral é segmentável em unidades destituídas de sentido e poder representá-la como uma sequência de unidades sonoras. E é isso que, em contato com a escrita, vai levá-la a entender a escrita como uma representação simbólica de segunda ordem, como nos ensina Vygotsky, ou seja, um sistema de notação que representa não o real diretamente, mas a língua falada.  E isso é fundamental e de ordem sociocognitiva, conceitual, não de ordem da mera transmissão de informação.

Há atividade metalinguística envolvida aí, que quer dizer re-fle-xão, e não uma mera transmissão de informação. Cadê as crianças, meu Deus? Cadê a apropriação de conhecimento? Está reduzida ao ensino transmissivo – mas, sim, essa é a base epistemológica dele... Aliás, a própria escansão das sílabas nas segmentações que as crianças fazer brincando de, por exemplo “Lá-vai-a-bo-la-a-gi-rar-na-ro-da...”, “Uni-du-ni-tê, as-la-mê-min-guê...”, favorecem, posteriormente, a consciência de sílabas, pois se constituem em atividades epilinguísticas, como ressalta Gombert (2013). 

A consciência silábica é quase naturalmente adquirida pelas crianças (e quanto mais expostas a brincadeiras com a linguagem, como parlendas, cantigas, mas também as brincadeiras não codificadas), justamente porque,  como discutido na Introdução, diferente do fonema, a sílaba é uma unidade natural da língua!!! E isso a torna mesmo muito importante para a alfabetização. Não à toa as crianças, bem cedo, começam a, naturalmente, pronunciar palavras segmentando-as em pedacinhos, e não à toa também, em um determinado momento de sua reflexão sobre a escrita, grafam uma letra para cada emissão sonora que escutam. Isso porque se trata da unidade mínima da emissão sonora, unidade que tem realidade sonora efetivamente, elas se pronunciam numa única emissão de voz, devido à co-articulação da língua: os fonemas consonantais sempre vêm com os vocálicos. As unidades fonêmicas não são produzidas como unidades isoladas, mas sim em um fluxo contínuo.

Ou seja, por definição, a sílaba é uma fusão de fonemas que segmenta naturalmente as palavras quando pronunciadas e, por ter essa realidade física são mais perceptíveis pelas crianças, do que os fonemas, que, no caso dos consonantais, não são exatamente um som, mas unidades abstratas. O fonema é uma representação mental, não tendo realidade física isoladamente, pois os fones não são pronunciados e percebidos isoladamente (mas é justo isso que ele orienta a fazer, como vimos nas partes anteriores do Guia e veremos na 5ª etapa). O próprio José Morais, que ele tanto idolatra insiste muitíssimo nesse ponto.

Reparem que Nadalim o critica o método silábico não por sua “démarche” mecânica, como nós criticaríamos, mas pelo fato de que a unidade que estrutura o sistema não é a sílaba, mas o fonema. Está certo, o sistema é estruturado pelos fonemas, mas, do ponto de vista de quem não é alfabetizado, os fonemas não são analisados naturalmente, não preexistem ao entendimento do funcionamento do sistema.

E ainda tem a questão da língua, que precisa ser considerada. A unidade sílaba, na na língua portuguesa, é muito saliente e, portanto, favorável ao estabelecimento da relação entre escrita e pauta sonora. Isso não significa defender os procedimentos de memorização de famílias silábicas, do ensino pelo ba-be-bi-bo-bu – por isso mesmo que tenho insistido que usar procedimentos fônicos não é adotar método fônico, e usar procedimentos silábicos não é adotar método silábico. Os fonemas – unidade que estrutura o sistema alfabético – se reorganizam em unidades silábicas pronunciáveis e, portanto, é uma unidade importante para a alfabetização, sim, para o estabelecimento de relação entre a língua escrita e a língua oral. Como diz Frade (2007), referindo-se ao método silábico, “o acesso direto à sílaba e não ao fonema, pode ajudar a concretizar mais rapidamente a relação de segmentos da fala com segmentos da escrita. Nele a principal unidade a ser analisada pelos alunos é a sílaba”. E é por isso mesmo que procedimentos  silábicos foram amplamente utilizados tanto em métodos sintéticos quanto analíticos e mistos, que, partindo de que unidades fossem – unidades menores que as palavras, as próprias palavras ou unidades maiores que a palavra – chegavam às sílabas, para, em processos de análises e sínteses, compor e decompor palavras.

É digno de nota que, mesmo pesquisadores da área da ciência da leitura, indicam que a análise silábica favorece a tomada de consciência do fonema, pois refletindo sobre essas unidades, suas semelhanças e diferenças, vão recortando o fonema como unidade distintiva e sua invariância em palavras iniciadas com um mesmo fonema. Ou seja, confrontadas com palavras que trazem sílabas que combinam um mesmo fonema com diversas vogais, como por exemplo, RA em Raíssa, RE em Regina, RO em Roberto, Ri em Rita, Ru em Rute, por exemplo, ajuda a observarem essa invariância (há algo parecido e algo diferente em todas elas, não é?). Confrontadas, por sua vez, com palavras como RATO – PATO – MATO – GATO, podem refletir sobre o que muda nessas palavras – e o que muda é, justamente, o fonema, pois isso diz respeito a sua própria definição: ser uma unidade distintiva que diferencia unidades lexicais (as palavras). E isso, evidentemente, não precisa ser feito de forma mecânica, mas em contextos reflexivos, lúdicos e letrados.

Assim, sendo, mesmo sendo uma habilidade desenvolvida quase naturalmente, a consciência silábica é uma etapa da consciência fonológica importantíssima, que conduz à consciência fonêmica, e que merecia mais que dois parágrafos.

Volto, assim, a chamar a atenção, novamente que nem José Morais é tão radical como Nadalim. Embora em sua perspectiva fônica Morais dê ênfase à consciência fonêmica (que, para ele se dá concomitantemente à aprendizagem do sistema alfabético e não previamente, como Nadalim), ele também destaca que para que seja possível ler tudo o que aparece, conhecido ou não conhecido, embora o conhecimento do phonics seja superior, a análise silábica funciona, pois a língua é formada também por sílabas. E afirma, então que é claro que a criança pode conseguir ler bastante coisas por meio do método silábico.

Por tudo isso, o método silábico, sintético, e os métodos analíticos que, ao chegarem na unidade sílaba e trabalhar a análise e síntese silábica como estratégia de alfabetização, apesar de seus questionáveis procedimentos mecânicos, repetitivos e pouco significativos, não podem ser tachados de métodos ineficazes, inadequados e negativos, como faz Nadalim. 

Agora, além da segmentação silábica – único aspecto vagamente referido nessa etapa, no Guia, e mesmo assim, sem explorar todas as habilidades aí envolvidas, como identificar, produzir (ele refere apenas a contar sílabas) – há outros aspectos e habilidades envolvidas na consciência silábica, que favorecem a alfabetização, como, por exemplo, analisar palavras com as mesmas sílabas, especialmente, mas não apenas, as sílabas iniciais. Reconhecer as sílabas de uma palavra, identificar a produzir palavras que contenham uma determinada sílaba em diversas posições na palavra (início, meio e fim. Ex. BA em barata, em cabaça, em taba), juntar sílabas embaralhadas para formar palavras, como LIPITORU para montar PIRULITO, achar a resposta a uma adivinha com sílabas embaralhadas em fichas, dentre muitas outras possibilidades, são algumas, dentre muitas outras, situações valiosíssimas de consciência silábica que contribuem, e muito, para a consciência fonêmica. A qualidade, diversidade e a progressão na abordagem das unidades fonológicas é um aspecto fundamental no planejamento da alfabetização. No processo de apropriação inicial da língua escrita, a qualidade, diversidade e progressão na abordagem da unidade sílaba é também importante, pois, embora seja uma unidade natural de emissão da língua, não é evidente que as crianças prestem atenção, deliberadamente, de forma consciente e sistemática, aos constituintes sonoros da linguagem. Em grande medida, a capacidade espontânea de análise silábica, que vemos nas crianças pequenas, resulta de uma sensibilidade pré-consciente, epilinguística, e abordá-la de forma mais sistemática favorece a reflexão metalinguística. Como a escola ainda não consolidou essa abordagem de forma efetiva, então as criança também não estão familiarizadas a fazer reflexões mais elaboradas nesse sentido. Entretanto, a diversidade e continuidade de situações de reflexão que podem ser, em grande medida lúdicas, em contexto de jogos, de textos poéticos-musicais – e, de todo modo, reflexivas, mesmo quando atividades mais sistematizadas – vão permitir que elas se familiarizem com as consignas próprias a essa dimensão sonora, dar sentido a elas, torná-las conscientes, para que  suas aprendizagens possam ser consolidadas e plenamente mobilizadas em outros contextos.

A progressão tem relação com os padrões silábicos trabalhados, já que o padrão canônico consoante-vogal é mais acessível inicialmente, do que os CCV ou CVC; com as habilidades envolvidas: escandir, segmentar, contar, identificar uma sílaba inicial em uma palavras são habilidades mais acessíveis, inicialmente, do que comparar palavras com sílabas semelhantes, identificar sílabas em diversas posições nas palavras, produzir palavras com sílabas semelhantes...Sugiro aqui o novo livro de Artur Gomes de Morais, Consciência fonológica na Educação Infantil e no ciclo de alfabetização (Autêntica, 2019), que aborda as habilidades envolvidas em diversas unidades fonológica, sua hierarquização e sua abordagem numa perspectiva que considera os processos de construção e apropriação dos conhecimentos pelas crianças.

Importante mesmo, nessa tal “pré-alfabetização” – como ele denomina – é a pré-história da língua (no sentido de Vygotsky e Luria), brincar com as sonoridades da língua, em uma caminho que vai do epi ao metalinguístico, e participar intensamente das práticas letradas, de situações de leitura e escrita.

Essa artificialidade, ainda mais assim, para pais, com uma “pegada” escolarizada, tô fora! Os pais podem muito mais e coisas muito mais importantes do que isso!!!!
Bom, e chegamos à última etapa, aos fonemas...dos quais já falamos muito. Mas vamos lá!

5ª etapa – Consciência fonêmica

O parágrafo introdutório dessa parte do Guia indica a consciência fonêmica como a etapa mais importante. É fato que é a etapa que se relaciona com a estrutura do sistema alfabético, mas qual a necessidade de estabelecer essa hierarquia de valor? Mais importante de que ponto de vista? Do conteúdo. Mas se considerarmos o ponto de vista das construções infantis, vimos o quão importante é a consciência silábica e de todas as unidades fonológicas mais holísticas para chamar a atenção tanto para a dimensão sonora da língua quanto para o perfil analítico em relação às palavras.  Sempre isso, muito sistema, pouco a criança, a aprendizagem... Enfim, mas vamos lá!

O segundo parágrafo ok, tem tudo o que venho dizendo, justamente, sobre o fonema ser uma unidade abstrata não isolável. É a unidade intrassilábica (menor que a sílaba) que está na base da organização da escrita em um sistema que se estrutura, em parte, pela relação entre fonemas e grafemas, e que representa, em parte, os padrões articulatórios da fala. Até aí, tudo certo. O problema é que essa constatação do autor se desdobra em defender a análise em fonemas na oralidade, previamente à escrita, e ao tomar o sistema de escrita como sendo só isso – relação fonema-grafema –, sua aprendizagem torna-se uma mera transmissão de informações sobre os fones que representam as letras. E assim chega-se ao absurdo de propor aos pais de ficarem repetindo /ppppppp/ para a criança perceber o fone /p/ e depois, automaticamente, entender que o /p/ é o som da letra P. Já comentei isso nos posts anteriores, da Introdução, na parte sobre os “métodos que funcionam”.

Depois desse parágrafo, claro, seria importante, mesmo para pais, discutir porque isso é importante para o desempenho das crianças na leitura, porque fica um tanto misterioso para quem não é da área. Mas daí ele já parte para as propostas rasas de atividade que os pais, supostamente, poderiam fazer, sem nem discutir a importância delas no desenvolvimento da consciência fonêmica. Altamente vago, lacunar e vira uma lista de receitinhas, que ele mesmo valida e sem base alguma. Afinal, não é para todos os autores que a consciência fonêmica é tomada como pré-requisito para a alfabetização, como Nadalim defende, nem mesmo para a grande maioria. Bem ao contrário. Há aqueles que defendem que, em vez de pré-requisito, a consciência fonêmica é a consequência de compreender o funcionamento alfabético (a escrita é que fornece um modelo de análise para o oral, já que o fonema é abstrato), e aqueles que acham que é uma relação de causalidade recíproca, ambos se influenciando mutuamente, sendo algumas habilidades necessárias para compreender o sistema e outras se desenvolvendo justamente devido à compreensão de seu funcionamento. Pois até José Morais, que ele idolatra, defende essa última perspectiva! Longe dessa coisa rasa de pré-requisito que Nadalim defende sem conhecimento nenhum de causa.

A habilidade de manipular explicitamente os fonemas (consonantais) não é desenvolvida espontaneamente, ela se desenvolve em consequência da aprendizagem da leitura em sistemas alfabéticos, paralelamente a essa aprendizagem, pois, para ler e escrever, é preciso entender como os sons da fala (as palavras, formadas de sílabas) se segmentam em suas partes menores constituintes. Essa segmentação fonêmica oral prévia é de um artificialismo sem tamanho – mas é como ele interpreta: se o fonema é artificial, vamos isolá-lo para se fazer observável. Como eu disse, baseada em autores diversos – sejam autores da perspectiva que defendo, como Magda Soares e Artur Gomes de Morais, sejam autores que ele defende, como José Morais – algumas habilidades de consciência fonêmica são necessárias para compreender o funcionamento do sistema e, outras, só se desenvolvem mesmo após a criança entender o princípio alfabético. Assim, certamente isolar fonemas de uma palavra, segmentando-a de forma artificial, sem nenhuma relação com a emissão sonora, ou pronunciá-los isoladamente (ou seja, pronunciar os “sons” das letras separadas), não são habilidades prévias à escrita, como ele faz parecer. Como aliás ele afirma e enfatiza. Que disparate! Não são nem mesmo necessárias para se alfabetizar, como Artur Gomes de Morais (2019) bem argumenta em seu último livro. Analisar palavras que começam com os mesmos fonemas (vela-vaca-vida-vulcão-volante) ou observar os fonemas como unidades distintivas (pato-rato-mato-bato-gato) é suficiente para as crianças compreenderem o princípio alfabético, no contexto da análise de palavras, segmentações menos artificiais, e em presença da escrita (para apoiar a reflexão fonológica). As habilidade de segmentar VELA em /v /e/ /l/ /a/ é questionada por muitos autores como necessária à alfabetização, bem como ficar repetindo o “som” de letras isoladas. Ainda mais “sons” sem as letras, como quer Nadalim. Um disparate total!

Seria bem providencial, para não “teorizar”, ele justificar porque é conteúdo e orientação para pais, né? Mas o problema aí é outro, ao que parece: falta de fundamentação sólida (preciso todo dia me lembrar que ele não está trabalhando sozinho na Secretaria de Alfabetização... Ao menos, tendo pesquisadores de verdade lá, teremos divergências teórico-metodológicas, mas não deverá ser o reinado da "toscolândia"...).

Bom, e vamos para as atividades propostas. Melhor dizendo, à atividade! Só tem uma! Ele diz “Entre inúmeras atividades...ensinarei uma”... Para um Guia que se auto-intitula “definitivo” é bem parco e limitado, não? Deve ser porque para acessar as “outras”, tinha que fazer o curso, não é? O link para a inscrição vem no final do E-book...

Pois bem. A atividade proposta, oralmente, é de “perceber” a invariância do fonema inicial de palavras escritas com mesma consoante inicial: mala, mola, mula...Tá certo que observar essa invariância, essa aliteração desse fone /m/ nessas palavras é um aspecto importante da consciência fonêmica. Foi o que falei acima com o exemplo da vela-vaca-vida... Mas está longe de ser o único aspecto, além do que, o modo de propô-la é totalmente descontextualizado. E quem garante que os pais vão focar mesmo o fone e não a letra inicial? Ou na sílaba? (e observar as sílabas aí, VE-VA-VI, já seria também bem bacana para ajudá-los a abstrair o fonema, essa partezinha “parecida” em todas elas). Quem disse que os pais saberão pronunciar o impronunciável? Quem disse que não enfatizarão as sílabas? (que dá no mesmo, mas não é o que ele está propondo...). Pois a orientação dada é a de “corrigir”, dando também orientações assim: “Ao pronunciar os sons, não se esqueça de enfatizá-los bem” (p. 27). Notem que os exemplos que ele dá nem são dos fonemas que são mais salientes, como os fricativos e vibrantes, pois podemos “esticá-los!” na pronúncia do fone (do fone, não do fonema, veja bem!), como em xxxxxxxale...Mas que coisa mais artificial ficar tentando pronunciar /mmmm/... ou /pppp/ ou /ttttt/. Faz muuuuuita diferença abordar fonemas oclusivos e não-oclusivos.

Ele não faz nenhuma distinção entre esses fonemas, não indica começar pelos fricativos... Em geral, nem precisa mapear todos os fonemas, porque as crianças “pegam” a lógica do princípio alfabético com alguns casos, e generalizam, como ressalta, por exemplo Snow e Juel (2013, p. 537), autores do campo da Ciência da leitura. Então, para que sugerir pronunciar logo esses oclusivos, os mais artificiais de todos? Para que começar pelos fonemas mais impronunciáveis????? E o que é isso, “pronunciar os sons” do /m/, /f/? Sempre que pronunciamos fones isolados, há um som vocálico, mesmo que átono, que vem junto, devido a tudo que já falei sobre a co-articulação da fala, sobre a unidade mínima de emissão de voz ser a sílaba, não o fonema. E o que garante que a criança vai prestar atenção ao fonema mesmo? Como já citei, ela pode, simplesmente, a partir da consigna, prestar atenção às sílabas iniciais – muito mais naturais para ela: MAla, MOla, MUla... Artur Gomes de Morais (2019) discute algumas pesquisas que confirmam que as crianças focam, muitas vezes, na sílaba quando solicitada quanto a determinadas habilidades fonêmicas.

Enfim, é tudo abordado de forma muito superficial. Mesmo com a pretensão a ser o “definitivo”. E orientações é de perspectiva associacionista, reprodutivista, mecânica. Aos pais cabe “corrigir” (sic!) se os filhos não acertam. Mas também, o que mais estão capacitados a fazer, não é? Sim, teriam muita coisa a fazer aí, inteligentes, não reprodutivistas, interessantes e não meros treinamentos. Se fosse fácil assim, de fato, para que precisaríamos de professores, não é? Mas lembrem...está na base dessa proposta de pais ensinarem essas coisas aos filhos uma completa desqualificação da especificidade da função docente. E, pasmem! Muitos professores acham esse Guia o máximo!!! É triste mesmo...
Não há tampouco, nessa etapa do Guia, indicações de abordagens mais significativas, lúdicas, muito mais condizentes com as crianças pequenas e com as situações interativas entre pais e crianças. E, sim, é isso que ele chama de Guia Definitivo. Qualquer manual mequetrefe de consciência fonológica é mais completo que isso!!!

Nem vou voltar à preocupação também com a variação linguística, absolutamente desconsiderada nessa perspectiva fônica adotada por ele. Mas, claro, né? Ele está pensando nas famílias de classes privilegiadas, privilegiados também em termos linguísticos, pois se utilizam de uma variedade de linguagem bem mais próxima daquela legitimada socialmente e validada pela escola, mais próxima (mas nunca espelho dela) da escrita. “Fácil” corresponder sons e letras assim, né?

Agora, o mais grave de tudo é considerar, nessa etapa da consciência fonêmica, apenas orientações a focar nos fonemas na oralidade, sem presença da escrita. A consciência fonêmica se desenvolve mesmo é em presença da escrita, analisando as palavras gráficas para ampliar a análise fonológica. E isso, justamente, porque o fonema é uma unidade abstrata, não uma realidade sonora. Como já mencionei, as habilidades de consciência fonêmica, mais artificiais, não são prévias à abordagem do sistema de escrita, como segmentar fonemas de uma palavra e tratar isoladamente os fones relativos às letras, bem ao gosto de Nadalim. Isso não apenas Artur Gomes de Morais (2019) aborda tão bem, como o próprio José Morais, que Nadalim adora, chamam a atenção. Assim, insisto, não só não é caso de serem abordadas previamente à escrita, em situações orais, nem necessariamente precisam ser abordadas para se compreender o princípio alfabético. Dessa forma, não é necessário pedir às crianças que, absurdamente, segmentem palavras em fonemas /b/ /o/ /n/ /e/ /c/ /a/ - que artificialismo! Pesquisas mostram que essa é uma tarefa muito difícil para quem não é alfabetizado e até desnecessária para quem já é. Ou seja, quem faz isso é quem já entendeu o princípio alfabético...então...para quê? Não se justifica a tortura, a um só golpe, às crianças e à língua! Quanto a identificar e pronunciar fones isolados, pesquisas mostram que as crianças usam os nomes das letras como pistas para identificar segmentos nas palavras, desde as primeiras oportunidades, ou seja, isso de abordar “sons” de letras soltas, antes das próprias letras – como ele propõe enfaticamente na Introdução – tampouco tem fundamento.

O importante da consciência fonêmica é confrontar as crianças com palavras iniciadas com o mesmo fonema (invariância, aliteração), especialmente em presença da escrita e, mais importante ainda (e totalmente silenciado por ele), levá-las a entenderem o fonema como unidade distintiva. Assim, confrontados com a escrita de palavras como GATO-MATO-PATO-RATO, podem refletir sobre o pedacinho semelhante que todas essas palavras têm em comum. A escrita fornece um modelo de análise para o oral, ver as palavras gráficas permite analisar a pauta sonora dessas palavras, favorecendo tanto a abstrair o fonema nessas diversas palavras semelhantes que se diferenciam apenas por esse fonema (gato-mato-pato-rato), quanto a analisar as sílabas em constituintes menores ao observarem o que tem de semelhante e o que tem de diferente: mula-mala-mola...E tudo isso pode ser feito com jogos, brincadeiras, textos da tradição oral, analisando palavras escritas, tentando ler e escrever... Na oralidade, vale abordar fonemas nas situações com trava-línguas, por exemplo, que são ótimos textos para chamar a atenção para os fonemas – e nesse caso, até mesmo os oclusivos, por sua aliteração, sua repetição, que põe foco neles. E aí, observar no texto escrito que segmento provoca esse desafio articulatório na oralidade, pode se constituir em uma situação altamente favorável, significativa, lúdica, reflexiva. Com os fricativos e vibrantes até dá para brincar mais na oralidade, como, por exemplo, achar palavras orais ou figuras que as representam começadas igual a CHAVE, esticando o /xxxxxx/ (e aí vale xale, chocalho, chuva, xícara)... Brincar de “Lá vai a barquinha carregadinha de...” com foco nesses fonemas fricativos e vibrantes. Mas, como eu disse, o grosso do trabalho com a consciência fonêmica é em presença da escrita.

Por fim, além da não referência à aliteração, ressalto também a total ausência nesse Guia de abordagem das rimas, das unidades intrassilábicas outras, de outras sonoridades que contribuem para chamar a atenção para a dimensão fonológica da língua. A ênfase é toda na unidade fonema – e, de todo jeito, tratada igualmente de forma absolutamente superficial, rasa, mecânica e imprecisa.

Enfim...mas já estou me repetindo, portanto, remeto a outros escritos. Se quiserem continuar essa prosa sobre consciência fonêmica e tudo o mais, vão no post no blog em que discuto mais sobre isso, fonemas, consciência fonêmica, e sobre a abordagem reflexiva,  significativa, lúdica e letrada, não mecânica da consciência fonêmica. Sugiro fortemente a leitura do livro novo de Artur também, “Consciência fonológica na Educação Infantil e no ciclo de alfabetização”, fresquinho, de 2019. Lá ele indica meu blog também! O que muito me honra.

Fechando...esse Guia...para todo o sempre...
Bom, gente...é isso. Para fechar, ele afirma: “Seguindo essas etapas com cuidado e atenção, seu filho não enfrentará problemas no momento da alfabetização e se tornará um leitor hábil e eficaz”. Tão fácil, né? Tão mágico. Na loucura dele, acho que ele acredita mesmo que a alfabetização se reduz a isso.

Ele diz ainda, nesse final: “Não tenho a pretensão de ser o guru da educação brasileira”, mas pedindo pra ser, não é? A megalomania começa no título do Guia. Guru? Alguém cogitou isso? Meu Deus!  E completa: “Muitas pessoas me perguntam por que ofereço essas dicas gratuitamente no blog ‘Como Educar seus Filhos’. A razão é simples. Temos de fazer alguma coisa para reverter a situação atual da educação brasileira”. O salvador da pátria!!! Que vai nos salvar do que a escola não faz, do que a universidade não faz.

Em um outro vídeo, em que foi entrevistado em 2017, dentre as muitas pedradas, Nadalim diz, com sarcasmo, que o analfabetismo funcional é, de certo modo, positivo, pois ao menos as crianças não estão compreendendo as bobagens dos materiais didáticos ideológicos, doutrinadores, que circulam por aí, devido a essa outra “absurdidade” (sic!!!) que é o construtivismo e o letramento...Bem doutrinado pelo guru dele, Olavo de Carvalho.
Vergonha alheia é pouco! O manicômio do qual saiu nosso presidente deixou a porta aberta, saiu foi muita gente...

Mas, enfim, nosso país virou esse misto de piada e demência, em todos os setores, não podia ser diferente no campo da alfabetização. Juro que acredito que mesmo pesquisadores defensores da abordagem fônica estão com vergonha desse representante na Secretaria de Alfabetização. Precisam engoli-lo, para dar seguimento a seus planos de instaurar o método fônico no MEC, então aguentam...

Desse “Guia Definitivo”, é o que eu tinha que dizer. Me abstenho de comentar os depoimentos de pais laudatórios e mais laudatórios, que fecham o Guia, da página 28 a 32 (bem mais do que as que tratam de aspectos fundamentais da alfabetização), pois me causam apenas mais vergonha alheia. Além de para, supostamente, validar o blog “Como educar seus filhos”, os depoimentos entram no Guia para provar que pais podem alfabetizar e que não é preciso ser especialista para fazer isso. Gente, seria piada se não fosse preocupante. Ele diz, textualmente: “E a prova são os depoimentos de diversos pais e futuros pais que têm obtido excelentes resultados seguindo e aplicando as dicas do blog ‘Como Educar seus Filhos’ e do curso ‘Ensine seus Filhos a Ler - Pré-alfabetização’. Seguem-se abaixo apenas alguns desses depoimentos”.

Nesse mesmo vídeo citado, como em outros, Nadalim recorre a José Morais para validar sua defesa dos pais alfabetizarem em casa, do papel dos pais na alfabetização, mas é notório o quanto ele distorce o que está em jogo. Na entrevista que fez com Morais, nota-se que ele conduz a resposta ao que ele quer, quando pergunta sobre isso, bem como enfatiza trecho de livro para interpretar o que ele quer. Os pais não têm esse poder todo que ele quer, para validar seu blog, seu curso, seu Guia! Morais defende que os pais alfabetizem, sim, que não precisa de curso de pedagogia para isso, mas quando vai exemplificar, o que ele fala é de leitura de livros, dos livros circularem em casa, nas interações, não se refere a nenhum exemplo de ensino sistemático do sistema alfabético. Ou seja, como os outros representantes desse governo, o que vale são os estratagemas para mentiras virarem verdades de tão repetidas.

A quantidade de pais e de professores que vejo idolatrando esse cara como a salvação da educação me assusta mais do que ele mesmo. O importante é nos informarmos bem, para não cairmos na tentação desses argumentos falaciosos e para enfrentarmos com fundamentos o que vem por aí. E é isso que tenho tentado fazer, contribuindo com essa discussão nessas postagens.

Se você chegou aqui hoje, e quer acompanhar a discussão, veja aqui a Parte 1 e a Parte 2 dessas outras postagens sobre esse Guia, e no marcados “políticas públicas”, as postagens analisando o Guia e o vídeo de Nadalim, elencadas aqui: “Letramento é o vilão da alfabetização”.

Mais adiante, as postagens sobre esse cenário serão sobre a Política Nacional de Alfabetização. Quando der...