sexta-feira, 17 de março de 2023

Abecê nordestino no Congresso UFBA 2023

Apresentação sobre o abecê nordestino no Congresso da UFBA 2023. José Rêgo (Pinduka), mestre em educação (FACED/UFBA) e doutorando em Artes cênicas (ETUFBA), é também o mestre da Canastra Real: contos em cantos. Pesquisador do campo da cultura infantil, também é artista que performa iguarias do cancioneiro e da poética popular, em repertórios para crianças e adultos.



Foi uma apresentação interativa, unindo relato de estudos e pesquisa e deleites culturais. Desenvolvo desde 2017 um estudo e uma pesquisa empírica sobre nosso abecê, como vocês que acompanham aqui as postagens sabem, pois tem bastante coisas sobre isso no marcador "Abecê nordestino" aqui no blog.

A investigação, que é exploratória, qualitativa e envolveu pesquisa bibliográfica e empírica, ficou parada durante a pandemia, em razão de desafios acadêmicos, profissionais e também pessoais. E agora retomo-a para comunicar resultados. E junto-me a José Rêgo nesse interesse pelo modo de pronunciarmos as letras em nosso abecedário nordestino, que ainda dura e resiste na Bahia. Essa parceria só enriquece a discussão, que extrapola o campo da alfabetização, pois envolve nossa cultura, nossos falares, algo que diz respeito a todos e todas nós.


Nessa apresentação no Congresso UFBA, primeira mais formal que fazemos juntos (como casal, já falamos, cantamos e recitamos muito o nosso abecê em roda de amigos), mesmo abordando estudos de diversos campos que nos ajudam a defender a validade cultural e linguística de nosso abecê, bem como resultados e discussão de pesquisa, foi uma apresentação leve, costurada à fruição poético-musical, à brincadeira com a língua, à interação com o público, que foi ficando craque no abecê nordestino a cada provocação.

Para acordar o abecê dentro de nós, a língua em estado de jogo, mostrando que é mais fácil para os que aprenderam as letras nordestinas, mas também que, esquentando a cada estrofe, a tarefa ia ficando mais fácil, Pinduka abriu com o Galope à Beira Mar Soletrado, de Xangai e Ivanildo Vilanova, começando a conversa sobre tudo isso. Mas que soletrado difícil, até para os "falantes" do abecê nordestino!!! Como método de alfabetização, a soletração é um procedimento proscrito, mas como brinquedo da língua, nos desafia, traz esforço de driblar a língua e riso, muito riso!

A fruição reflexiva seguiu com o ABC do sertão casadinho com A letra é rê e não erre, de Nonói Contador de causos, o Noédson Valois, apurando com o público o sabor desse abecê, no canto e na poesia. É interessante notar que Luiz Gonzaga e Zé Dantas falam de um abecê que, ao mesmo tempo, exaltam como nordestinos, mas também veem "de fora", achando engraçado "ouvir-se tanto ê". Já Nonói é mais aguerrido, separando "nós" e "eles", nós cá falando fê, correto, e eles lá que "errem" com o erre, em uma defesa bem regionalista, de quem afirma, com razão, a beleza e a justeza de nosso abecedário.

Nossa defesa do abecê nordestino, que nada mais é que um abecedário em que oito letras têm nomes diferentes das do abecê dito oficial, não é regionalizante, que afirme uma identidade cultural própria, fechada em suas fronteiras, naturalizando os recortes geográficos e simbólicos ligados à ideia de região de Nordeste, que, como imaginário, como espaços simbólicos, são invenções, construções.

Mas tampouco queremos nos alinhar ao discurso que anula as heterogeneidades e a diversidade presentes nas especificidades das culturas regionais, em prol da nacionalidade ou de uma visada global universalista. Afirmar o regional sem ser regionalista é um equilíbrio que exige uma perspectiva menos estanque de analisar os fenômenos culturais.

Entretanto, feitas essas ressalvas, digo com Nonói: "A letra é rê e não erre! Garanto que não errei. [...] Se você prefere, erre! Com o rê não errarei."

Depois desse introito, que contou também com boas reflexões de Pinduka sobre o sabor de nosso abecê, apresentei o estudo e a pesquisa que desenvolvi (e ainda estou estudando) sobre o assunto. Eu trouxe brevemente os argumentos de diferentes campos do conhecimento que nos permitem argumentar sobre a legitimidade cultural e linguística desse abecê. A historiografia da alfabetização e do alfabeto, os estudos sobre variação linguística, pesquisas atuais sobre o papel do nome das letras na alfabetização inicial, nos ajudam a entender o que está em jogo nisso de termos dois abecedários diferentes no Brasil e permitem validar o nosso modo de nomear as letras, que não é invenção de nordestino iletrado nem obra de professoras leigas da zona rural nordestina, como se pensa muitas vezes. 


Nesses argumentos, a discussão sobre o princípio acrofônico se faz rainha, costurando tudo, todos os argumentos, pois, como diz Cagliari, ele é, ao mesmo tempo, a chave da constituição do sistema e da apropriação do funcionamento da escrita alfabética, ou seja, quando o sistema alfabético foi constituído com base nesse princípio, forneceu também a chave para a alfabetização. E o X da questão é justo esse, as letras nordestinas têm muito mais a ver com isso do que as letras ditas oficiais!!! Ao menos sete delas!

Bom, depois desse breve passeio pelos estudos que fiz, apresentei também o projeto e alguns dados da pesquisa realizada junto a docentes, que revelam que o abecê nordestino ainda está, sim, presente nas práticas alfabetizadoras, embora menos do que no passado, claro. Ideias advindas de desconhecimentos mostram que conhecer mais diversos elementos do nosso sistema de escrita ajuda a valorizar mais nosso abecê, para que ele possa seguir circulando nas escolas e não desaparecer, "colonizado" pelo abecê hegemônico, dito oficial, tido erroneamente como o correto, culto e belo.

E ao final da nossa apresentação, como toda situação de aprendizagem merece (rsrsrsrs), Pinduka fechou a mesa tomando a lição! E foi fácil, foi, com o Abecedário de Gerônimo, canto e resposta, e todo mundo craque no abecê!

Fizemos um compilado da apresentação, para vocês poderem ter um gostinho do que aconteceu lá, veja aqui.


E você aí? Já aprendeu o nosso abecê? Já começou a mudar seu conceito sobre ele?

4 comentários:

  1. Ah! Que maravilha! Que estudo importante para nós nordestinos, e nunca vi ninguém esclarecendo sobre essas coisas. Acho que ideias vão se naturalizando e passando adiante sem nenhum fundamento e o resultado são esses desconhecimentos, inverdades e preconceitos infundados.
    Parabéns professora!
    Abraço,
    Giana

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    1. Isso mesmo, Giana. Bem assim. Agradeço o reconhecimento. Faço com muito gosto.

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  2. Ótima pesquisa! O abecê é uma das formas mais antigas sa poética nordestina. Na Literatura de Cordel existem muitos abecês famosos, um desses encontrado em "folha solta" é o "Abecê da Incredulidade" escrito por um morador na Guerra de Canudos e anotado por Euclides da Cunha em sua Caderneta de Campo.
    Sempre achei nosso alfabeto nordestino melhor! Bravo!!!

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    1. Sim, Osmar, o termo abecê tanto designa o abecedário, um modo mais curtinho de se referir à sequência de letras do alfabeto, quanto um gênero poético, ou melhor, um tipo de cordel em que cada estrofe começa com uma letra do alfabeto, na sequência. O nordeste é um verdadeiro caldo de preciosidades!!!! Até mesmo num simples abecedário.
      Que bom que você gostou da pesquisa.

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