Antecede esse texto a parte da Introdução, já postada.
Discutir
sobre o abecê nordestino no contexto da alfabetização, requer tanto uma abordagem
de cunho cultural, quanto linguística e pedagógica. Nessa primeira parte
busca-se contextualizar a questão da nomeação das letras nesse abecê, esboçando
o posicionamento quanto ao lugar do aprendizado das letras na apropriação da
escrita alfabética, bem como introduzir as questões culturais e linguísticas que
envolvem os usos e o ensino do abecê nordestino, apresentando, em especial, o
argumento sociolinguístico que perpassa a problemática posta nesse estudo.
No post aqui no blog, irei apenas trazer
notícias do que será discutido nessa parte, no estudo que será publicado em
breve, tanto devido ao tamanho do texto, quanto para manter a surpresa.
a. Letras...seus nomes, seus sons, seus
traçados...
Nessa
parte, vamos discutir sobre o lugar das letras na alfabetização. Entre perspectivas
que negligenciam a aprendizagem das letras, pois enfatizam que a alfabetização
se dá na imersão nas práticas letradas, e, no outro extremo, a perspectiva que
aborda o ensino das letras, seus traçados, seus nomes e/ou seus sons, de forma
mecânica e descontextualizada das práticas de leitura e escrita, é preciso, e
possível, achar um caminho outro que não essa oscilação entre extremos. Aprender
os elementos da notação alfabética também faz parte das aprendizagens relativas
à cultura escrita e aprender as letras não se resume a aprender uma lista de
caracteres. As letras são os caracteres da escrita! Caracteres de um sistema complexo. As
crianças que convivem com a cultura escrita, desde bem pequenas, sabem disso,
podem saber disso, querem saber. Elas têm contato com letras de diversos tipos,
traçados, presentes em diversos materiais, em diferentes situações
socioculturais, apresentando, desde cedo, um interesse crescente por essas marcas gráficas, principalmente aquelas letras presentes em seus nomes próprios, de seus
familiares e colegas.
Exemplo de atividade mecânica tradicional.
Para superar
práticas de alfabetização que se construíram operando um apagamento das
práticas de leitura e escrita, que investiam na cantilena do alfabeto inteiro, na
grafia de letras individualizadas, descontextualizadas, na soletração de letras
e/ou na junção delas em sílabas soltas, foi preciso radicalizar, tivemos que
nos armar contra isso, que era igualmente maltratar os caracteres da escrita
alfabética. Mas será que, para defendermos as perspectivas com foco nos textos
e discursos, é necessário nos armar contra as letras em si mesmas e seu
aprendizado, operando igualmente um apagamento dos aspectos linguísticos da
notação alfabética? É preciso aprender as letras, claro! Aprender a
reconhecê-las e grafá-las, aprender seus nomes, para podermos nos referir a
elas e ir aprendendo as relações com seus “sons”,– são aspectos que fazem parte
das aprendizagens linguísticas e da metalinguagem envolvida no aspecto
notacional da linguagem escrita.
Aprender
os nomes das letras, discutiremos mais adiante, é importante também porque os
nomes dão pistas de seus “sons”, no caminho de apropriação da notação
alfabética.
Os
estudos históricos e linguísticos de Cagliari e Massini-Cagliari (1999) nos
ensinam sobre a constituição e a beleza do alfabeto, suas possibilidades e
limites, sobre a configuração gráfica e funcional das letras e a relação entre
essa configuração gráfica e a configuração funcional, na alfabetização, bem como nos ensinam sobre o princípio
acrofônico (CAGLIARI, 2009a, 2009b), que usamos para decifrar os valores
sonoros das letras, e sobre o qual falaremos muito aqui ainda. Com Cagliari (2009a, 2009b, 2011) aprendemos
tantas coisas interessantes sobre as letras e o alfabeto, através dos tempos e
espaços, na história da constituição dos sistemas de escrita pela humanidade. Essa
história mostra a importância das letras na constituição histórico-social da
escrita, do sistema alfabético, e em sua aprendizagem pelos sujeitos. É a essa
potência que nos referimos aqui ao falar das letras.
As
letras não negam os textos! Elas são os seus tijolos. Assim, reafirmo as letras
e a sua aprendizagem como aspectos importantes no campo da alfabetização,
marcas que interessam às crianças – mesmo às pequenas, quando convivem com a
escrita no dia a dia. Trata-se de um conhecimento que é social, que precisa ser
ensinado às crianças, no contexto da apropriação da cultura escrita.
Bom,
mas essa história toda sobre letras é, também, para justificar a conversa sobre
o alfabeto nordestino – ou do abecê do
sertão, como dizem. Ao menos, por ora, por isso. Ou seja,uma conversa sobre o
jeito de chamar as letras, atribuído ao falar do Nordeste, do sertão. E vamos
então ao abecê nordestino.
b. O abecê nordestino
O jeito
de falar as letras no Nordeste é referido, muitas vezes, como uma variedade
linguística do nordestino, outras vezes como vício de linguagem, curiosidade
exótica, às vezes com uma tolerância regional quase romântica, outras vezes
sendo alvo de chacota e preconceito, como vimos aqui. Como nos ensina Maurizzio Gnerre (1985, p.
4)“[...] uma variedade linguística ‘vale’ o que ‘valem’ na sociedade os seus
falantes, isto é, como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas
relações econômicas e sociais”, e nesse quesito, o preconceito com o Nordeste
extrapola as questões linguísticas, o preconceito linguístico é, pois, antes de
tudo um preconceito social. Em vez de tomar todas as formas como variações, um
modo de falar, nessa perspectiva, é visto em comparação com uma forma tomada
como a correta – que o é por razões históricas, políticas, sociais, não
propriamente linguísticas. Como nos lembra Bagno (2002a, p. 180), Fontes,
referindo-se ao português do Brasil em relação ao lusitano, já denunciava, em 1945, que o “desprezo de
nossa língua anda sempre irmanado ao descaso por tudo o que ela representa: a
gente e a terra do Brasil”. O mesmo se dá entre os falares, as gentes e as
terras de diferentes regiões do Brasil.
Como
pano de fundo sociocultural em que a questão do abecê nordestino está ancorada,
e fazendo coro com o campo científico de estudos sobre as variedades
linguísticas e sobre o preconceito social envolvido nessas questões, trago aqui
a voz de Marcos Bagno, no prefácio do Dicionário do Nordeste, de Fred Navarro,
que diz que, apesar de todo o avanço científico na área da linguística,
especialmente da sociolinguística, continua circulando na sociedade concepções
de língua falada e escrita que são arcaicas. O autor, de certo modo, ressalta o
papel da mídia brasileira, que não parece estar interessada em dar um
tratamento científico aos fenômenos de linguagem, tratando do tema a partir de
caricaturas dos falares regionais. Diz Bagno (apud NAVARRO, 2004, p. 12): “Em
suas manifestações sobre a língua, a mídia brasileira perpetua uma série de
crenças infundadas, baseadas numa visão estreitamente normativista e
estereotipada dos conceitos de ‘língua certa’ e ‘língua errada’” que “ajudam a
preservar e a nutrir um tipo de preconceito profundamente arraigado na nossa
cultura, o preconceito linguístico, fator de exclusão social”.
Dialogando
com essa perspectiva de fundo – mas não apenas essa – é que vou me debruçar
aqui sobre o abecê do nordeste, ou seja, o jeito de nomear as letras fê, guê,
ji, lê, mê, nê, rê, si. Lembro, inclusive – como já postei aqui numa das
provocações que iniciaram essa discussão – que essas formas estão registradas
em dicionário (Houaiss, Aurélio e outros) e indica-se outras possíveis designações
no Acordo Ortográfico de 1990, reiterado em 2009. O argumento – tal qual ouvi
ou li aqui e ali – de que esse abecê “oficial” seria o certo porque “está na
gramática”, nas normas para a língua, não tem lastro nos estudos
sociolinguísticos e nem mesmo nesses documentos descritivos ou normativos. Para
nós, da área de linguagem, não há nenhuma dúvida de que gramática não é
sinônimo de língua – que é muito mais ampla e apresenta variações – para o
senso comum, no entanto, esse poderia ainda se constituir em um argumento para
defender o alfabeto “oficial” como o correto e basear posicionamentos
preconceituosos. Vemos no entanto, que nem isso se sustenta. Precisamos, pois,
sair de uma posição de preconceito ou de ingenuidade, e estabelecer uma
discussão realmente frutífera e esclarecida sobre o tema.
E para
dar início a essa discussão esclarecida, começaremos pelos artistas nordestinos
da palavra, representantes da voz da cultura popular em articulações com a
cultura em geral, que muito nos ensinam nesse sentido. Luiz Gonzaga, em seu “ABC
do sertão” (composta com Zé Dantas), é quem nos dá a notícia mais certeira do
jeito de falar o alfabeto no sertão nordestino. Assim também é o cordel “A
letra é rê e não erre”, do baiano Noédson Valois, o Nonói contador de “causos”,
menos conhecido, que afirma esse abecê, defendendo-o melhor do que nós – estudiosos
do campo da linguagem – poderíamos fazê-lo.
Ouvir aqui.
A
canção contribuiu muito para divulgar essa prática do ensino do alfabeto,
inclusive, fora do Nordeste do Brasil, mas, a despeito disso, como vimos na
quinta provocação sobre o abecê nordestino, postado aqui no blog, há quem
consiga até mesmo criticar a canção, sob o argumento de que “assassina a língua
portuguesa”, ou que Gonzagão era analfabeto e por isso não conhecia os “fonemas”,
dentre outras pérolas, que vocês podem ver aqui. Note-se, entretanto, que, de
algum modo, o uso desse abecê aparece na canção como algo escolar: “pros
caboclo ler, têm que aprender outro abecê”, “na escola é engraçado...”. Se Lua
fala do sertão por contraste, como alguém que se encontra num entre-lugar, do
qual pode ver a diferença, pode julgar “engraçado”, quase assumindo – digamos
assim – certa comicidade ou atraso na situação. Ou seja, fala para uns e para
outros, então.
Nonói,
por sua vez, é mais explícito no seu jogo de contrastes, argumenta e
contra-argumenta sem dó. Falar erre, esse, ele... seria, para ele, uma inovação
sem necessidade, o abecê “oficial” seria uma espécie de “remendo”. E, para
isso, brinca com as palavras: “a letra é rê e não erre!” Com Nonói, não vamos
errar!
CD
Bahia Singular e Plural (IRDEB, 2000) – Vol. V (faixa 6)
Ouvir aqui:
No caso desse cordel, a afirmação do uso do abecê aparece para além da escola, para além do momento do ensino da leitura – “é assim que a gente lê” –, embora, evidentemente, relacione-se também com o contexto escolar.
Essa pérola de Nonói foi José Rêgo que me mostrou, e faz parte, igualmente, do repertório da Canastra Real, junto com o “ABC do sertão”.
Antes
de seguir, quero não deixar dúvidas a respeito do lugar do qual eu mesma falo –
sou nordestina e o alfabeto que aprendi, aos 5 ou 6 anos, era nordestino... (e
eu não era do sertão, mas de Salvador mesmo). Falo desse lugar... Então,
sigamos.
Já vi
atribuírem o uso desse alfabeto no sertão ao fato de os professores, nesse
contexto, serem, em grande parte, professores leigos, antes das instituições e
dos programas de formação chegarem aos municípios mais distantes dos centros
urbanos. Ora, podemos nos perguntar: por serem leigos, não tiveram acesso ao conhecimento
“correto” do nome das letras ou, por estarem longe do discurso oficial, estavam
menos sujeitos à “colonização” desse modo de falar, à hegemonia dos modos de
ser da linguagem falada nas regiões sul e sudeste? Será que ele era usado só no
sertão mesmo? Sou moça da alfabetizada no início dos anos 70, na capital, zona
urbana litorânea, minha professora era formada, e só vim conhecer o efe, gê, jota,
ele, eme, ene, erre, esse quando bem maior que isso! Até hoje oscilo entre um e
outro...e pronuncio, sem pensar nem pestanejar, normalmente, as letras
“nordestinas”. O alfabeto sai, de mim, mais rápido e natural assim... E então, mesmo
considerando que não é tão simples discernir o alcance daquilo que venha a ser “sertão”,
se no Brasil o conceito é, geralmente, associado ao interior, bem como à
aridez, ao atraso, à miséria, ao iletrado, de falar chulo, e, mais
objetivamente, no sentido geográfico, considerado uma subárea ou sub-região que
envolve vários Estados – Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio
Grande do Norte e Sergipe – podemos, então, questionar que seja só do sertão
mesmo, ainda que reconheçamos sua forte identidade sertaneja – quem somos nós
para negar Seu Lua, não é? Mas, então, por que esse alfabeto ficou sendo no
Nordeste? Porque ficou sendo do sertão? É do Nordeste ou é do sertão? E é só do
Nordeste? Por que será que permaneceu mais forte na Bahia? Por que será que na
Bahia não é só no sertão que “se ouve tanto ê”, diferente de outras capitais
que estão, efetivamente, na sub-região do sertão, mas já o “esqueceram”? Será
que no processo de “invenção” do Nordeste, tal qual discute Albuquerque Jr.
(2009), toda a região Nordeste ganhou um caráter sertanejo e por isso, caberia
falar de abecê do sertão, mesmo havendo uso na capital, ao menos na Bahia? E mais...
quem determinou o alfabeto “correto”? De onde surgiu o efe, e de onde surgiu o fê?
O gê, o guê, o jota, o ji?... Qual as raízes de cada um deles?
Essas
são questões que precisamos colocar, mesmo que algumas, não consigamos
responder. Para tentar compreender alguns desses aspectos, ou ao menos buscar
mais indícios e trazer a complexidade da questão à mostra, se faz necessário
mergulhar em um campo complexo de informações históricas, que envolvem ora a
história da escrita, da constituição do alfabeto,ora a história dos métodos de
alfabetização no Brasil. E ainda tem a cultura do Nordeste...São muitos
aspectos a considerar.
Um
argumento de base nessa questão é o argumento das variedades linguísticas e
suas relações com questões de ordem cultural e sociopolítica. Entretanto, mesmo
se tomarmos a questão do abecê pelo viés da variação linguística regional, com
todo o respaldo sociolinguístico e cultural para validá-lo, ainda me parece
faltar uma discussão mais ampla sobre ouso desses dois tipos de alfabeto, suas
origens, seus usos, suas funcionalidades. Assim, é pertinente situar a
problemática e trazer alguns aspectos para continuarmos a pensar sobre isso, fundamentando
nossa defesa do alfabeto que usávamos e ainda usamos, em alguma medida, no
Nordeste, e buscando um posicionamento mais potente diante desse uso. Embora
não seja uma pesquisa fácil de ser feita, e se ache pouca coisa sistematizada
sobre o tema, quero levantar ao menos alguns aspectos que possam, porventura,
contribuir nesse sentido. E não apenas para os nordestinos! Trata-se de uma
herança cultural brasileira e da história da alfabetização no Brasil!
Nisso,
saber como, historicamente, se chegou a essas duas formas de designar certas
letras – o fê, guê, ji, lê, mê, nê, rê, si e o efe, gê, jota, ele, eme, ene,
erre e esse – ajuda bastante a situar a questão de outro modo. Quem traz alguma
informação sobre isso, desde a constituição de nosso alfabeto latino, é o
linguista Luiz Carlos Cagliari, ao tratar da origem do alfabeto na história da
escrita (Parte 2). Cagliari é quem nos ajuda a desmistificar, em primeiro
lugar, isso de que uma forma seja mais correta que a outra (2009a), mostrando
as origens remotas de ambas as formas do alfabeto.
Nada
mais pertinente para combater o preconceito linguístico e o tom jocoso do
preconceito social, imbricado naquele, do que passear um pouco pela
historicidade dos fenômenos. Não para criar disputas, justificar-se, mas para
reposicionarmos a questão em outros termos. É sobre isso que falaremos na parte
2, no próximo post. Aqui!