Nesse post, vamos falar de consciência fonêmica e grafofonêmica/fonografêmica, ou seja, a consciência metalinguística relativa ao fonema e a sua relação com a grafia. Aos que são estudiosos da área de letras, indico a observação no final da postagem, certo?
Embora a unidade fonológica que estrutura o sistema de escrita alfabética seja o fonema - pois os grafemas notam os fonemas, a reflexão fonológica sobre rimas e sílabas é muito importante para chamar a atenção para a dimensão sonora da língua e as diversas segmentações da palavra, importante na alfabetização inicial e, de qualquer modo, conferem um perfil analítico à língua. A consciência fonológica de rimas, sílabas e fonemas vocálicos contribui para a fonetização da escrita e para os avanços rumo à compreensão do funcionamento alfabético da notação da língua. A sílaba, em especial, contribui muito para o entendimento gradual de que o que as letras notam são os fonemas.
Para compreender o funcionamento alfabético, é preciso ir além dessas unidades fonológicas, e analisar as sílabas - unidade mínima de emissão sonora e, por isso muito mais natural para sujeitos não alfabetizados - em unidades menores, desenvolvendo a consciência fonêmica. Mas esse subtipo de consciência fonológica, diferente de ser prévia à escrita, se desenvolve junto à apropriação da notação alfabética. A análise oral apoia-se na palavra escrita e essa amplia a análise do oral. O fonema consonantal é uma unidade fonológica muito abstrata para quem não é alfabetizado. E por que isso?
Os fonemas vocálicos soam, não é mesmo? As vogais são essas letras que representam sons que soam isoladamente, que não encontram obstáculos ao serem pronunciadas, e seus nomes coincidem com seus sons (ou alguns dos sons que assumem). Então é bem fácil observá-los oralmente e associá-los às letras que representam. Entretanto, os fonemas consonantais não soam isoladamente. Eles "soam com" - o nome consoante vem justamente daí, já pensou nisso? E soam com quem? Com as vogais! Por isso são tão abstratos, eles não são pronunciáveis nem perceptíveis isoladamente, porque a mínima emissão sonora é silábica - dizemos MA-LA, não M-A-L-A, não é? Além disso, é preciso considerar também que o fonema é uma unidade mental, não um som, pois a sua materialização pode ser de sons diferentes: a palavra DIA por exemplo, pode ser pronunciada como /Dia/, como se diz em algumas partes do Nordeste, ou algo como /djia/, com um chiadinho. O som muda, a palavra não. Então trata-se de um só fonema, pois a troca de fonemas troca, necessariamente, a palavra - esse é o conceito de fonema, ser uma unidade distintiva. Então, o que temos aí são alofones, dois fones diferentes, para o mesmo fonema. Fone é a materialização sonora do fonema. Parece complicado, não é? Mas é isso que garante que as palavras, seja lá a variedade linguística em que forem pronunciadas, continuem sendo a mesma palavra.
E como a unidade mínima de emissão sonora é silábica, pois não pronunciamos fones isoladamente, a não ser no contexto do ensino do sistema alfabético, a consciência dos fonemas não se dá pela emissão sonora (que é silábica), mas no contato com a própria escrita alfabética. O fonema consonantal não preexiste ao sistema alfabético como unidade sonora, tomar consciência da existência dessas unidades mínimas vem da necessidade de relacioná-las aos grafemas da escrita. Assim, é em situações de reflexão sobre as palavras escritas que o fonema ganha materialidade e pode, então, ser analisado pelas crianças. A presença da escrita amplia as possibilidades de análise fonológica, pois a escrita fornece um modelo de análise para o oral. É por isso que podemos dizer que a consciência fonêmica é, na verdade, consciência grafofonêmica.
A consciência fonêmica não implica, necessariamente, a habilidade de pronunciar fonemas isolados e a segmentação artificial das palavras oralmente em todos os seus fonemas, como propõe a perspectiva dos defensores dos métodos fônicos. Mas também não há isso de achar que é impossível ter consciência fonêmica antes de estar alfabetizado. A relação entre consciência fonêmica e capacidade de leitura e escrita da notação alfabética é de causalidade recíproca, uma vai ampliando a outra, algumas habilidades são necessárias para se alfabetizar e outras se desenvolvem com a compreensão gradual do sistema. Há diferentes habilidades relativas ao fonema, umas, inclusive, são difíceis mesmo para os já alfabetizados. Por isso, é importante que as situações de reflexão sobre os fonemas se dêem em presença da escrita, se constituindo, na verdade, como consciência grafofonêmica.
De todo modo, é bom ter em mente que, ainda assim, podemos brincar oralmente com os fones em duas situações, primordialmente:
- “Esticando” os fricativos (/f/, /v/, /x/, /j/, /z/, /s/) e vibrantes (/R/, /r/ - R forte e fraco), numa tentativa de pronúncia isolada, em situações de jogo com a língua. Os fricativos são esses fonemas que friccionam, cujo obstáculo ao serem pronunciados não é total, mas parcial. Brincar de achar figuras que começam como "xxxxxxícara"..."xxxxxxá" (lembre que é o som que vale, não a letra, como o som /ssss/, pode ser sapo, cinto, cinema, sala, cera...); Lá vai a barquinha carregadinha de /sssss/sapo, /sssss/sorvete, /ssss/cinto...
- Em sua repetição, aliteração, como nos trava-línguas – e aí, mesmo os fonemas oclusivos, mais difíceis de serem percebidos e pronunciados isoladamente, se tornam mais salientes. Os oclusivos são os fonemas que encontram obstáculo total ao serem pronunciados (/p/, /t/, /d/, /b/, /g/, /k/...). Nos trava-línguas, mesmo os fonemas oclusivos se tornam observáveis por sua repetição: repare o /p/ se "amostrando" em “A pipa pinga, o pinto pia, quanto mais o pinto pia, mais a pipa pinga” ou em “O peito do pé de Pedro é preto”.
É bom ressaltar que seja apenas brincando, seja já analisando oralmente essa unidade que trava a língua, seja observando essa repetição também no texto escrito, o trava-língua contribui para alfabetizar - no nível epilinguístico, ainda não muito consciente, controlado, explícito, apenas brincando; e, depois, no nível metalinguístico, de consciência fonêmica, analisando essas aliterações oralmente (observar o som que se repete e trava a língua) ou em presença da escrita (que letras indicam, no trava-língua escrito, as sonoridades que dificultam a pronúncia).
Alguns autores, como Morais (2019), indicam que, em termos de consciência fonêmica, para se alfabetizar, basta identificar palavras que começam com o mesmo fonema e produzir palavras que começam o mesmo fonema que outra, tendo relação com a consciência de aliterações. Segmentar palavras em fonemas e contá-los, bem como ouvir e produzir fonemas isolados não seriam habilidades necessárias para se alfabetizar.
O sistema alfabético é um sistema complexo, não um código de transcrição da fala e, portanto, não se trata de memorizar e treinar associações entre fonemas e grafemas. Trata-se de atividade cognitiva, metacognitiva. Assim, se quando falamos em consciência fonêmica não se trata de artificializar a língua, pronunciando os fonemas de uma palavra isoladamente, nem de aprender os sons das letras fora do contexto das palavras, memorizando mecanicamente suas associações com os grafemas, qual seria, então, a abordagem da unidade fonema - além dessas brincadeiras orais - nas situações de reflexão linguística em presença da escrita?
Acredito que a abordagem vai em duas direções, principalmente, que envolvem dois aspectos interessantes do fonema, que nos ajudam a refletir sobre isso: sua propriedade como unidade distintiva e sua propriedade de invariância (desculpem a simplificação, para os que são de letras e estudam fonologia). Vamos lá?
Como o aspecto distintivo define o fonema, começaremos por ele. E isso quer dizer o que? Fonema é uma unidade distintiva em uma língua, isso quer dizer que, se for trocado por outro em uma palavra, tem-se uma nova palavra, com um sentido diferente. Por exemplo, PATO e RATO são duas palavras diferentes, pois trocando o som /p/ pelo som /R/, mudou o sentido da palavra. Desse modo, /p/ e /R/, nesse contexto, são fonemas, fonemas diferentes. Ou seja, os fonemas existem nessa oposição a outros fonemas, a troca de um fonema em uma palavra forma, necessariamente, outra. Nesse exemplo, mudando-se apenas o fonema inicial, mudou a palavra e se um determinado som é distintivo, configura-se como um fonema. É importante sublinhar que o uso dos fones /R/ ou /r/ na palavra PORTA não muda a palavra, ela pode ser pronunciada com o R forte ou fraco, continua sendo uma porta, nesse caso são alofones, realizações fonéticas diferentes devido a variações dialetais. Ou seja o fonema /R/, por exemplo, ora é fonema (PATO-RATO), ora é alofone (/poRta/ x /porta/, com som forte e som fraco. Nesse caso, há perda do contraste fonêmico, há apenas variação de fones.
Desse modo, trabalhar as trocas de fonemas/letras iniciais é fundamental para a consciência grafofonêmica.. Há jogos e materiais estruturados que focam, justamente, essas comutações, como alguns do meu acervo (Adivinhas par mínimo, foto abaixo), jogos comerciais (como o Boggle Slam) e do acervo do CEEL (Bingo de Sons Iniciais, foto abaixo).
Palavras que se distinguem apenas por um fonema - e não necessariamente o inicial - são definidas como pares mínimos, que são também muito usados como recurso poético. Sobre isso, veja nesse post sobre isso no poema O Colar de Carolina, de Cecília Meireles. No poema “Tanta Tinta”, da mesma autora, ela brinca também com os termos TINTA, TONTA, TENTA, pares mínimos que fazem a festa no poema, e ainda os desdobra em outras palavras. Os pares mínimos são sonoros e, por isso, servem muito bem à poesia! E eles têm muito a ver também com consciência fonêmica. Todos esses recursos que Cecília usa em seus poemas (e muitos outros autores), são matéria prima da poesia e também matéria prima da alfabetização! Para saber mais sobre o par mínimo e ver algumas brincadeiras envolvendo a alfabetização, veja essa postagem aqui mesmo no blog.
Vê como o aspecto distintivo do fonema está em jogos e na literatura? E na tradição oral, também pode estar! Nesse exemplo de atividade abaixo, a partir da parlenda “Cadê o toucinho que estava aqui?” também vemos essa abordagem:
Depois de brincar com a parlenda, saber se conheciam e as diferentes versões que conheciam, de pesquisar essas versões, a professora colocou no quadro uma delas:
Cadê o toicinho
que estava aqui?
O gato comeu
Cadê o gato?
Foi pro mato
Cadê o mato?
O fogo queimou
Cadê o fogo?
A água apagou...
Depois disso, ela sugeriu à turma criar oralmente mais versos para essa parlenda, incluindo um rato e um pato nesse encadeamento, e deixou as crianças discutirem e acharem uma solução. Percebe que, nessa proposta, ela tanto brinca com esse repertório como tradição, herança de nosso povo, como gênero oral, que abriga várias versões, pois vai mudando no tempo e espaço, quanto como renovação desses textos da cultura da infância? Pois bem, depois de muitas propostas e negociações para "renovar" essa parlenda, ela ficou assim:
Cadê o toicinho
Que estava aqui?
O rato comeu
Cadê o rato?
O gato espantou.
Cadê o gato?
Saiu com o pato.
Cadê o pato?
Foi pro mato
Cadê o mato?
O fogo queimou
Cadê o fogo?
A água apagou...
Depois de discutirem sobre rimas, a professora colocou no quadro a parlenda escrita e quatro palavras do texto: RATO, GATO, PATO e MATO. E propôs analisarem as semelhanças das palavras rimadas em -ATO, e as crianças observaram que terminam com as mesmas letras, do som ATO. Observaram também que só mudando a letra inicial – e o som inicial – a palavra vira outra.
O interessante dessa situação é que uma criança começou a experimentar escrever ATO com todas as consoantes do alfabeto, em ordem. A professora gostou da proposta e aproveitou na sua aula! Ela fez uma tabela, propondo que, depois de juntarem todas as consoantes com –ATO, separassem as palavras que existem das que não existem. As crianças foram sugerindo, discutindo, a professora, junto com elas, ajustando, e a tabela ficou assim:
A situação gerou ainda muitas conversas como por exemplo: sobre o que é BATO, CATO,
LATO...que foram sugerindo frases e a professora conduzindo para que compreendessem que se trata de verbos conjugados; falaram sobre
XATO existir no som, mas ser escrita com CH e não com X; sobre o significado de
NATO, que acharam que não existia; sobre QATO não poder, porque Q sempre vem
com U - essa é uma restrição da língua - e com U ia ficar QUA; falaram ainda que DATO não existe, mas DATA
sim...Ou seja, a atividade favoreceu não apenas a consciência fonêmica em presença da escrita (grafofonêmica), mas outras conversas e aprendizagens muito produtivas sobre a língua, seus aspectos
semânticos, morfológicos e ortográficos.
Bom, mas por que é importante
abordar essas comutações de fonemas/letras na alfabetização? Justamente devido
ao que falamos antes: o fonema ganha materialidade ao ser observado no contexto
da palavra escrita. Ao analisar RATO-GATO-PATO-MATO, os fonemas que as letras
R, G, P e M representam, aparecem, ganham corpo.
O mesmo acontece quando se trata
da propriedade da invariância. A invariância diz respeito à identidade do fonema
em itens lexicais (palavras) diferentes, ou seja, compreender, identificar e produzir um mesmo fonema em palavras distintas. É um aspecto da consciência fonêmica que, quando se trata do fonema inicial, envolve a aliteração, um nível importante de consciência fonológica, que pode ser considerado também no âmbito da consciência fonêmica. Vou falar sobre isso trazendo um
exemplo. Meu filho Joaquim, uma vez indagou: "Ô, mãe, Zi de Ziraldo
(estava lendo, a seu modo de menino de 5 anos, O menino maluquinho, de
Ziraldo) e Zé (apelido do pai dele)...tem algo parecido e algo
diferente..." Ele ficou pensativo. Pedi que pegasse o livro e olhasse o
nome do pai dele escrito na geladeira (ele tinha uns imãs de letras e montava nossos
nomes lá). E ele disse em tom de descoberta, analisando as duas palavras
escritas: Zé e Ziraldo: "Aaaaah, o parecido é o Z e o diferente é o E de
ZÉ e o I de ZI... o parecido é esse zzzzz (e fez o som)". Vejam que
situação interessante de consciência fonêmica na oralidade, que se ampliou (caiu a ficha!) quando Joaquim foi confrontado com a escrita. É disso que se trata
aqui. A observação das duas sílabas orais, analisando-as ainda de forma difusa, com uma sensibilidade fonológica a essa diferença fonêmica, em confronto com a escrita, se completou, apoiando a análise do oral. Ele pôde observar a unidade gráfica que representa uma unidade mínima
fonológica, abstrata, que não tem uma realidade sonora de forma isolada, mas
que no confronto com a palavra escrita, tomou corpo e se apresentou. Fantástico,
não é?
Veja a proposta daquela mesma professora que trouxe a parlenda "Cadê o toucinho que estava aqui?", agora com o trava-língua "O rato roeu", para abordar a invariância do fonema. Depois de brincar de trava-línguas, de observar as aliterações do /R/, pedindo às crianças que prestassem atenção aos sons que travam e atrapalham a pronúncia, com a participação ativa das crianças, ela listou as palavras começadas por R do texto com o objetivo de chamar a atenção, através da aliteração, para a identidade do fonema, sua invariância em diferentes palavras. E isso para que as crianças tomassem consciência do fonema através de sua realização pelo grafema no contexto da palavra.
Em todas essas palavras há "algo parecido" no início, como o /z/ de Joaquim, não é? E esse som parecido é o /R/. Percebe que, nessa aliteração, nessa invariância, as crianças passam a prestar a atenção a esse fone? RA-RO-RE-RU-RI, todas essas sílabas, que de início poderiam lhes parecer muito diferentes (e, por isso, grafadas com caracteres diferentes), podem passar a ser analisadas em unidades menores, chamando a atenção ao fonema inicial. Por isso que argumento que as sílabas também ajudam às crianças chegarem no fonema, elas dão pistas sobre os fonemas que as compõem. Trata-se aí de consciência de aliterações, tanto no sentido dado na poesia - repetição de fonemas consonantais - quanto no sentido dado na psicologia cognitiva da leitura - coincidência de fonemas iniciais em duas ou mais palavras.
É importante dizer, no entanto, que, evidentemente, tanto o caráter distintivo quanto a invariância dizem respeito a fonemas em qualquer posição. Mas, o fonema inicial é muito saliente, chama mais a atenção e, por isso, focá-los já é suficiente para contribuir com a consciência fonêmica. Estudos mostram que essas propriedades podem ser generalizadas e, uma vez descobertas, podem ser aplicadas aos fonemas em geral, não precisando trabalhar isso com todos os fonemas em todas as posições nas palavras.
É importante dizer, no entanto, que, evidentemente, tanto o caráter distintivo quanto a invariância dizem respeito a fonemas em qualquer posição. Mas, o fonema inicial é muito saliente, chama mais a atenção e, por isso, focá-los já é suficiente para contribuir com a consciência fonêmica. Estudos mostram que essas propriedades podem ser generalizadas e, uma vez descobertas, podem ser aplicadas aos fonemas em geral, não precisando trabalhar isso com todos os fonemas em todas as posições nas palavras.
Mas é importante chamar a atenção para outras particularidades dos sons menores que as sílabas, as unidades intrassilábicas. Observar que PATO e PRATO ou POTE e POSTE têm algo de sutilmente diferente no som, apesar de sentidos tão distintos, é fundamental também nesse sentido. Colocar foco em unidades intrassilábicas, que são abundantes nos trava-línguas, além de preparar a consciência fonêmica - a mais difícil de todas, também é muito produtivo para trabalhar as sílabas complexas (o R e S aí configuram sílabas complexas, com encontro consonantal PRA ou travada POS). Quanto a isso, ver o post sobre o jogo Trave o trava-língua.
Uma observação importante quando se fala de invariância, é a questão da variação linguística e dos alofones nesse sentido, por isso retomo aqui esse ponto. O fonema é uma unidade concebida mentalmente, a materialidade do som é o fone. Os fones são os sons que, de fato, ocorrem na fala, inclusive os que estão envolvidos na variação da pronúncia das palavras. Ou seja, é fone que é a unidade sonora. No Glossário Ceale, lemos que "[...] nossa ortografia é baseada na relação fonema/grafema e não na relação som (fone)/letra. Se a ortografia tivesse como referência a relação som (fone)/letra, deveria representar qualquer variação de pronúncia e, consequentemente, de fones". O fonema é uma unidade abstrata, uma representação mental desse som, uma unidade que deve representar qualquer pronúncia regional, social, que possa ser dada a uma palavra. Por exemplo, na Bahia e em grande parte do Brasil, pronunciamos TIA como tchia, um som chiado do T, e em outros lugares, como em outras regiões do Nordeste, como tia. O fonema é o mesmo (não muda a palavra, lembra?), mas o fone sim (são alofones). Foi o que indiquei em relação ao se passa palavra DIA, em algumas regiões pronunciado DI, em outras, algo como DJI. A variação do fone não implica em outro fonema. Mesma coisa quem pronuncia poRta, com o R forte, e quem pronuncia porta, com o r fraco, tremido. O fonema é o mesmo, o fone não – lembra da definição de fonema como unidade distintiva das palavras? Pois é. Agora, nas palavras CARRO e CARO, a unidade aí é distintiva, pois nesse caso, muda-se a palavra. Assim, uma coisa são os fonemas (entidades abstratas da língua), que estruturam o sistema, outra são os fones e alofones de variedades linguísticas falada (entidades concretas da fala).
Assim, simplificando bem, a propriedade da invariância, é de identidade, mas com essas pequenas variações possíveis, no nível dos fones, dos sons concretos, como nesses casos. Bom, já deu para notar que o conceito de fonema é bem complexo. Ele vem da fonologia, uma área da linguística, mas é um conceito importante para o alfabetizador e, inclusive, para uma abordagem consistente da variação linguística no processo de apropriação da escrita. É preciso diferenciar o que são as relações entre fonemas e grafemas e o que é variação do fone em determinada variedade linguística, não confundindo essas duas coisas, que pode gerar, inclusive, conclusões errôneas que define pronúncias como certa ou errada. Além disso, o sistema de escrita, em última instância, representa arbitrária e convencionalmente a língua falada, não codificam diretamente os sons da fala, senão escreveríamos como se fala, não é?
Tanto a invariância do fonema (sua identidade em diferentes palavras), com “O rato roeu”, quanto o fonema como unidade distintiva, como na situação a partir da parlenda “Cadê o toucinho?”, são propriedades que as crianças podem observar em situações de consciência fonêmica em presença da escrita. E jogos, textos da tradição e a poesia literária podem contribuir com o desenvolvimento da consciência fonêmica/grafofonêmica e a apropriação de conhecimentos sobre o funcionamento alfabético da notação escrita, em contextos lúdicos e letrados. Lembrem que a matéria prima da poesia é também matéria prima da alfabetização. Desde que o texto seja contexto e não pretexto para a análise linguística, podemos aprender sobre a língua ao mesmo tempo em que aprendemos sobre a linguagem poética, seus recursos expressivos, suas belezas.
É isso, gente!
Observação: pessoal de letras, estudiosos da fonologia. Sei bem que o que tento aqui é uma simplificação enorme da complexidade do conceito de fonema e tudo o que ele envolve. Sei também que há correntes diferentes no âmbito da fonologia tanto na história quanto tomada no campo conceitual atual. Espero que me perdoem a possível heresia, mas preciso tornar um assunto complexo, abstrato, e tão importante, para o alfabetizador, minimamente palatável às professoras e professores, articulando-o também à prática pedagógica. Não me ocupo da fonologia pura, mas aplicada, aos que terão a generosidade de me corrigir por algum deslize grave, aceito contribuições de bom grado. Sou diletante na linguística, mas sei de meu papel como educadora.