Olá,
minha gente,
Enquanto
aguardamos a Política Nacional de Alfabetização, sigo analisando o material
proposto por Carlos Nadalim, o Secretário de Alfabetização no MEC. Nas próximas
duas postagens falaremos do E-book de Carlos Nadalim, "As 5 Etapas para Alfabetizar seus Filhos em Casa - O Guia Definitivo", que foi feito para os pais alfabetizarem
seus filhos em casa, apresentado como um guia milagroso, um tesouro revelado. Então,
sigo na minha luta que é partilhar posições com professores e estudantes de
pedagogia, mobilizar o debate com os colegas e trocar conhecimentos, para
contribuir com a discussão na detecção de argumentações distorcidas e
equivocadas que tentam, nessa querela atual no campo da alfabetização, nos
empurrar.
E porque
vale analisar o E-book de Carlos Nadalim, se não é isso que baseará a Política
Nacional de Alfabetização do MEC? Sim, há gente mais competente na Secretaria
da Alfabetização, embora todos de abordagem fônica. Volto a dizer que importa
entendermos quem está à frente da Secretaria e, embora o E-book seja anterior a
essa gestão, e seja um livro para pais, como o título mesmo já indica, foram
essas “produções” de Nadalim que, junto a sua “fama” de youtuber e o apreço do
guru influenciador do governo, que o alçaram à posição em que está, justamente
por sua visão da alfabetização.
Não sei
se temos como esperar ponderações dessa Secretaria, a não ser que as
argumentações e deliberações de especialistas de verdade, ainda que de
perspectiva fônica, se sobreponham às dele e o canal do diálogo não se feche no
obscurantismo. Acho que não será obscurantista, mas será impositivo e reducionista.
Afinal, esses especialistas, embora falem de um lugar fundamentado e não de um
delírio, como é o caso do próprio secretário, eles também trazem perspectivas
que, do ponto de vista de uma outra concepção, são complicadas. Ao se apoiarem
em pesquisas em língua estrangeira e procedimentos metodológicos adotados em
outros países, sem ressalvas, por exemplo, desconsideram o contexto brasileiro,
bem como outras pesquisas nacionais e internacionais não aderentes a esses
argumentos. Mas Nadalim não só desconsidera, ele despreza a pesquisa realizada no
Brasil – seja de pesquisadores da ciência da leitura, seja de outras
perspectivas – e qualquer pesquisa que não seja de seus pares e de natureza
experimental. Distorce, mal intencionadamente, os argumentos e posicionamentos
de pesquisadores e autores que não se alinham a sua perspectiva, e mesmos os
que se alinham, colocando foco apenas nas partes que lhe interessa criticar ou
ressaltar. Desconsidera também as especificidades da língua portuguesa e seu
grau de transparência, que é diverso dessas outras línguas das pesquisas
internacionais e, por isso, nem sempre os mesmos processos são aplicáveis ipsis literis. Ainda que todas as línguas alfabéticas se baseiem no princípio alfabético, e os processos sejam análogos, é muito diferentes alfabetizar numa língua transparente como o finlandês e em uma língua opaca, de profundidade ortográfica tão intensa quanto o inglês.
E, por fim, ele tem toda a retórica de quem “vende” milagre.
E, por fim, ele tem toda a retórica de quem “vende” milagre.
É
inacreditável já a capa do E-book: diz lá: Guia Definitivo (sic!!!). Nunca vi
tamanha pretensão! Ô povo que tem mania de grandeza esse povo aluno do guru que
também se acha o suprassumo da inteligência,#sqn. É recorrente em seus vídeos e
sua escrita a busca por validar seu ponto de vista, a necessidade de dizer que
está habilitado para defender x ou y, numa evidente e flagrante “conversa” com
contrapalavras dos que sabem que ele, de fato, não está validado para tal (se
tem dúvidas, consulte o texto em vermelho no POST 4 da série que analisa o vídeo
“Letramento, o vilão da alfabetização”).
Eis a
capa:
E vamos ao milagroso guia de 5 passos e 20 páginas – sim,
porque fora os pré-textuais iniciais e os depoimentos finais laudatórios ao
blog, ao canal do youtube e aos cursos de Nadalim – são apenas cerca de 20
páginas, e 20 páginas com letras e margens bem grandes, pouquíssimo texto em
cada.
O
“livro” se inicia anunciando-se como uma alternativa simples para “livrar os
filhos” da situação terrível da escola e “remediar” essas falhas. Livrar! Ele
realmente se acha o Vingador, o super-herói da alfabetização... O jeito de começar
já diz muito sobre este senhor e sua perspectiva. Depois, ele mesmo valida sua
capacitação para formar leitores hábeis, dizendo de sua experiência (!!!) na
escola de sua mãe, e os depoimentos de pais que “comprovam” sua habilidade.
Conclui ele: “Portanto, conheço o passo a passo para formar um leitor hábil”. Não sei se essa gente é só oportunista ou se
têm mesmo transtorno doentio de grandeza.
Segue
fazendo questão de afirmar o papel de Olavo de Carvalho em sua quase “missão”,
e vem contando um monte de coisas pessoais e apelando para a religiosidade,
indicando um sinal de Santa Teresinha para justificar sua opção pela escola, em
vez da universidade: “Carlos, retire-se da universidade, porque o seu lugar não
é aí, e vá ao encontro das crianças”. Realmente, só apelando para os santos,
para um pavão justificar não ter condições de uma vida acadêmica. Quanto
ressentimento!
E, então,
confessando não saber NADA de educação, a partir desse sinal foi para a escola
da mamis dele e buscar tutela de Luiz Carlos Faria (logo se entende de onde vem
tanto obscurantismo e animosidade). Passa a contar de seus estudos e sua
aplicação na escola de sua mãe. Afffeee... E, por fim, diz: “Três anos depois,
eu já tinha um método de alfabetização e de pré-alfabetização comprovado,
eficaz, para alfabetizar crianças de 3 a 6 anos”. Noooooossaaaa!!! Que
iluminação!!! E, nisso, já estamos na página 08...
A parte
que se segue a essa introdução pessoalista e espiritual chama-se: “Métodos
ineficazes: conhecendo o inimigo”. Gente, dá vontade de rir...Gregório
Duvivier! Veja, aqui tem piada pronta pra você!!!
De
forma bastante simplória, rasa e valorativa, ele começa a descrever o método
global e, depois, o método silábico, os tais inimigos! Quanto aos globais, a
descrição que ele faz é apenas do global ideovisual, silenciando sobre outras
abordagens analíticas que não tem NADA de leitura pela percepção gráfica do
todo da palavra. Esse silenciamento é, de seu ponto de vista, bastante providencial,
pois lhe serve para desqualificar outras perspectivas, ao associar método
global a letramento, a construtivismo, colocando – como o faz no vídeo que
analisamos – tudo no mesmo saco. Seja equívoco de fazer vergonha, seja
estratagema mesmo, o fato é que a baboseira simplista não tem par.
Quanto
ao método silábico, que, embora reconheça como melhor do que o global, ele taxa
como ineficaz. Bom, lembrando que não se trata aqui de defender o método
silábico tradicional, já que trata-se de um método de base empirista,
associacionista, mecanicista, vou no entanto, questionar os argumentos usados
para a crítica dele ao método. Primeiro, ele confunde método alfabético com
silábico, pois o método que parte do nome das letras como unidade de formação
das sílabas não é o silábico, mas o alfabético, ou o método da soletração –
aquele do bê-a-ba. O método silábico parte das sílabas completas BA-BE-BI-BO-BU
para formar as palavras. Mesmo que se ensine as letras (que método não as
ensinas?), não são elas o ponto de partida, nesse caso. Primeiro equívoco
conceitual. Grande! E mesmo assim ele estampa em negrito o seu erro,
enfatizando-o e repetindo-o: “O erro fundamental do método silábico é
estabelecer essa falsa correspondência entre o nome de uma letra e o seu valor
fonológico, ou seja, o seu som.” O método silábico não é isso e tanto as
pesquisas quanto a empiria mostram que é frequente que as crianças abstraiam os
fonemas a partir das sílabas, que é uma unidade sonora menos abstrata para elas
do que o fonema, que é uma representação mental do som, e não um som. A mínima
emissão sonora é silábica, não fonêmica. E talvez por isso mesmo, os procedimentos
silábicos, especialmente no contexto dos métodos mistos, tenham tido uma longa
história na alfabetização no Brasil, eles aproximam a grafia de sua emissão
sonora de uma forma mais “natural”, menos artificial, pois a consciência
silábica é bastante natural em nossa língua. Já a segmentação fonêmica é o
sistema alfabético que destaca. Os procedimentos silábicos são importantes,
sim, e ele mesmo coloca a consciência silábica em uma das 5 etapas de seu guia.
Ou
seja, aqui nessa parte só vi argumentos críticos que são mais ao método
alfabético, de soletração. Mas voltaremos a essa questão da sílaba quando
falarmos das 5 etapas.
A parte
seguinte do Guia intitula-se: “Métodos eficazes: dominando o princípio
alfabético”. E ele inicia dizendo: “O
núcleo dos métodos mais eficazes de alfabetização é o chamado domínio do princípio alfabético. O
princípio alfabético é o coração dos métodos fônicos”.
Bom,
nessa afirmação, aparentemente singela, esconde-se uma premissa completamente
equivocada: parece que ele acredita que só o método fônico aborda o princípio
alfabético. Como já discutido no POST 2, sobre o vídeo de Nadalim, o princípio
alfabético é o princípio que rege nosso sistema de escrita. Não se trata de
exclusividade de um ou de outro método. Diferentes métodos chegam ao princípio
alfabético por diferentes vias. O fônico foca as relações entre fonemas e
grafemas como ponto de partida, mas o princípio alfabético, chave da decifração
do escrito, não é propriedade do método fônico, e nem mesmo da abordagem
fônica, dependendo do que se considere como essa abordagem. Se estratégias
fônicas são as estratégias que levam as crianças a compreenderem as relações
entre fonemas e grafemas, elas podem ser usadas em qualquer outro método,
inclusive o silábico. Ou seja, é uma barbaridade considerar que esse princípio
só está presente e enfatizado no método fônico – é um princípio do sistema! Não
do modo de ensiná-lo. É um princípio, não um procedimento exclusivo de um
método. A questão é que o método fônico toma esse princípio como ponto de
partida e põe grande ênfase na relação fonema/grafema em seus procedimentos,
propondo ensiná-las desde muito cedo e de forma bastante artificial.
Bom,
mas ele segue argumentando que “o princípio alfabético consiste em converter,
conscientemente, grafemas em fonemas. Isso significa que as crianças precisam
converter os sinais gráficos (letras) em seus valores fonológicos (sons)”. E
então ele se pergunta – “E como fazê-lo?” E responde: “Primeiro é necessário
ensinar às crianças os valores fonológicos das letras, ou seja, os seus sons.
Infelizmente no Brasil se faz o contrário: apresenta-se primeiro o alfabeto, o
nome das letras, as formas das letras, e assim por diante”.
Oxe!
Como é que se ensina os sons das letras, sem que as crianças conheçam as letras
e a metalinguagem para se referir a elas (seus nomes)? E que “som” é esse que
não tem existência concreta na emissão oral? Vamos vendo...
E ele
continua, trazendo o maior equívoco de sua argumentação: “Mas pensemos bem:
tanto logicamente, quanto cronologicamente, o som precede a letra que o
representa. A realidade sonora, de fato, é anterior à sua representação
gráfica. Logo, é evidente que devemos obedecer a essa ordem no processo de
alfabetização”.
Geeeeente,
isso é uma asneira sem tamanho e sem fundamento! Nem na ciência da leitura, nem
nos autores que ele mesmo se apoia, vocês leriam tal afirmação. E ele repete
isso algumas vezes ao longo do Guia. “O som precede a letra que o representa” –
onde isso? O que é “preceder”? Claro que a linguagem oral precede a escrita e
as palavras faladas precedem a sua grafia (e mesmo assim, a escrita reorganiza
a fala, fornece um modelo de análise da fala). Mas o som da letra isolada não
precede à escrita, justamente porque o fonema não é um som, é uma unidade
abstrata, não tem realidade sonora concreta, não tem realidade isolada, nem
mesmo é pronunciável isoladamente (apenas de forma artificial). Até José
Morais, que ele idolatra, insiste nesse ponto. Como já argumentado, a menor
unidade natural de emissão sonora é a sílaba, não o fonema, quando segmentamos
a fala em unidades menores, essa emissão é silábica: MA-CA-CO. E nossa língua é
extremamente silábica – aliás, diferente do inglês. Não existe realidade sonora
do fonema previamente à escrita, o fonema é uma unidade que a estrutura
alfabética é que destaca, que chama a atenção, não estando previamente na mente
do sujeito. É abstrata, uma unidade mental, não sonora, e mesmo o “fone”, esse
som das letras, não é natural. Para Nadalim, por não ser, deve ser treinado,
justo por não ser. Tem que meter guela
abaixo, previamente à escrita alfabética interpelar a criança, antes mesmo de tornar-se
uma necessidade. Como pode isso?
Como as
unidades sublexicais fonêmicas não são produzidas como unidades isoladas, mas
sim em um fluxo contínuo, está certo que é preciso que tomemos consciência
delas, mas isso de ser uma consciência prévia à escrita, um pré-requisito para
aprender o sistema alfabético, isso já não se sustenta. A despeito dessa ideia
de pré-requisito da consciência fonêmica para se alfabetizar ser uma das
vertentes na análise da relação entre consciência fonêmica e aprendizado da
língua escrita, o que as pesquisas tendem a indicar é que é o processo de
alfabetização que garante a consciência do fonema. A tendência dos
pesquisadores, mesmo da perspectiva cognitiva à qual Nadalim se alinha, é a de
colocar a compreensão do sistema alfabético e a consciência fonêmica como numa
relação de causalidade recíproca, não de pré-requisito, como ele apresenta.
Aliás, a consciência dos fonemas tende mais a ser consequência da alfabetização
do que pré-requisito para ela. A causalidade recíproca significa dizer que há
elementos necessários para se alfabetizar e outros cuja alfabetização é que
permite, um influenciando o outro. Vejam o que diz José Morais, importante
autor no campo da ciência da leitura, guru de Nadalim, em "A arte de ler":
Numa palavra, a consciência fonêmica e o conhecimento do código alfabético surgem simultaneamente. Nenhuma é a ‘causa’ da outra. Entretanto, veremos que elas se influenciam e se reforçam mutuamente. Juntas, elas contribuem para o sucesso da aprendizagem da leitura e da escrita (MORAIS, 1996, p. 176) (Ver nota 1).
Ou
seja, Nadalim está defendendo algo, com tanta firmeza, que nem seu queridinho
José Morais defende!!! Outros tantos autores, como Byrne (1995), por exemplo, insistem nesse ponto, de que a consciência fonêmica e o conhecimento da relação letra-fonema atuam de maneira complementar para a apropriação do funcionamento alfabético. A conclusão de Nadalim quanto a essa argumentação em seu
E-book é completamente equivocada. Ele conclui: “portanto, em primeiro lugar,
as crianças devem aprender, por meio da experiência auditiva, os sons que
compõem o nosso sistema alfabético”, argumentando, como já referido, ser esse o
caminho natural, lógico e cronológico. O mais natural, lógico e cronológico
seria apresentar os “sons” sem as letras? Previamente às letras? Em abstrato?
Não! E olha, isso aí, que no início é só citado, mais adiante aparece como
orientação proibitiva: “Inicialmente, não ensine às crianças os nomes das
letras e o reconhecimento visual delas, mas os sons das letras”.
José
Morais, dentre outros (cito ele justamente pelo lugar que ele ocupa como
queridinho de Nadalim...), afirma que só tomamos consciência dos fonemas
consonantais – unidade muito abstrata – porque são representados pelas letras
do alfabeto. Ele analisa pesquisas que mostram que a análise fonêmica sem
o respectivo conhecimento das correspondências entre as letras e os “sons” (os
fones) não é tão eficaz e potente quanto quando esses dois elementos vêm
juntos. E diz: “[...] o treinamento para a análise da fala em
fonemas é pouco eficaz se não tornarmos explícita sua relação com os signos
escritos” (MORAIS, 1996, p. 177). No seu livro “A arte de ler” (MORAIS, 1996,
p. 175-176), bem como em outros textos seus (aliás, ele indica lá um artigo em
inglês que trata especificamente desse argumento), ele argumenta explicitamente
que os adultos iletrados (não alfabetizados) não têm consciência dos fonemas,
pois, ao que parece, a consciência fonêmica não precede a aprendizagem da
leitura, ou melhor, não precede a algum conhecimento, mesmo que parcial, do
“código” que relaciona fonemas e grafemas. Diz ele, mais adiante, que expostas
ao alfabeto é que as crianças interrogam sobre as correspondências fonêmicas
das letras – inclusive nas relações familiares. Outros autores (dentre os quais BRADLEY e
BRYANT, 1983) discutem que há pesquisas de intervenção didática que mostram –
assim como as pesquisas experimentais controladas citadas por Morais – que as
situações de reflexão fonológica, e fonêmica em especial, realizadas
paralelamente à reflexão sobre a notação escrita são mais produtivas do que as
que não fazem tal articulação, investindo na consciência prévia dos fonemas. Ora,
isso tudo é, justamente, contrário ao argumento de Nadalim. Percebem?
E olha
que aprendizagem mais mecânica essa de aprender primeiro pela experiência
auditiva “sons” que compõem o sistema alfabético! Nadalim, com a indicação
desse procedimento, se filia a um método fônico bem mecânico, bem tradicional, sintético,
que é diferente do que propõe contemporaneamente e cientificamente a ciência da
leitura. Ademais, pesquisas – inclusive de autores da ciência cognitiva da
leitura – mostram que os NOMES das letras dão pistas sobre seus sons e
contribuem, assim, para as crianças descobrirem os seus valores sonoros, na
alfabetização inicial – bem ao contrário do que ele afirma. Uma brasileira,
Claudia Cardoso-Martins, de perspectiva cognitiva, considerada por José Morais,
tem estudos sobre essa questão dos nomes das letras, bem como outros autores
estrangeiros da ciência da leitura. Mas uma pesquisadora, mulher, brasileira,
não teria a atenção dele, né?
E mais
ainda, as letras do alfabeto fazem parte das práticas sociais, estão nos
livros, no ambiente, nos jogos, nos imãs de geladeira, nos outdoors, nas placas, na mesa do café da
manhã, em seus nomes gravados em seus pertences...estão por todo lado! As
crianças se interessam por elas, querem saber sobre elas, seus nomes, suas
formas. Vamos criar situações artificiais (não sociais) de esconder as letras
ou fugir das curiosidades das crianças, para esperar aprenderem a pronunciar fonemas
isolados a troco de nada? Loucão isso! Situação altamente controlada em
contexto familiar?! Socorro! O natural é fazer de conta que as letras não
existem, para que primeiro se apropriem desses “sons” isolados que, sem as
letras, não fazem nenhum sentido para as crianças???? Qual o propósito de
ensinar o valor sonoro da letra F sem falar em letra, mas “soprando uma vela:
fffffffff” (!!!)? Nadalim, que tal brincar, só brincar, de “Farofa feita
com muita farinha fofa faz uma fofoca feia”? Que tal em vez de falar em
isolar fonemas, chamar a sua atenção pela repetição (aliteração)? E que tal
observar com as crianças que, justamente, esse som que se repete e trava a
língua, aparece no texto escrito também repetido – “Ah, pró! É a letra F!!! Ela
é que faz travar a língua”. Que bobagem isso de não apresentar as letras! Vai
esconder a criança do mundo letrado? Das inúmeras escritas? Fazer cara de
paisagem se elas perguntam? Valha-me! Não só quer que a pesquisa experimental
guie o ensino, sem outros referenciais, como quer fazer virar a espontaneidade
das interações sociais e familiares uma farsa controlada. E depois acusa os
professores de fazerem arremedos de situações de letramento (no vídeo
Letramento, o vilão da alfabetização”)...
Que tal
considerar os estudos de Émile Gombert, também da perspectiva cognitiva da
leitura, que articula as atividades epilinguísticas e metalinguísticas? Essa
articulação que ele enfatiza mais recentemente em suas argumentações fornece
inúmeras possibilidades para pensarmos em explorações epilinguística
significativas das sonoridades, explorações essas que chamam a atenção à
dimensão sonora da língua e, que podem, depois, serem provocadas no nível
metalinguístico, inclusive no nível do fonema, numa continuidade muito mais
interessante do que “soprar vela” para fazer o som de um F que nem se sabe o
que é... Vou de Claudemir Belintane aqui, para argumentar que só brincar com os
textos da cultura tradicional, que exploram as sonoridades da língua, tornam
essa língua “altamente alfabetizável” pelas segmentações que provocam em sua
enunciação: “Co-rre co-ti-a na-ca-as-da-ti-a...co-rre-ci-pó na-ca-as-da-vó...”.
Com os trava-línguas, até mesmo os fonemas ganham destaque em sua aliteração,
em situações orais e epilinguísticas. Ver no texto escrito as letras que
provocam essa trava na língua para pronunciar o texto, traz a reflexão para o
nível metalinguístico – e olha que maravilha! Sem artificializar a língua,
muito pelo contrário. Sobre essa discussão, indico meus artigos sobre textos
poético-musicais em que discuto sobre situações orais de exploração
epilinguística no contexto da cultura lúdica infantil, aqui, aqui, aqui e, em breve, num outro artigo sobre textos da tradição oral na alfabetização, no prelo. Um outro artigo, só sobre
trava-línguas e a consciência fonêmica e grafofonêmica está no forno...por ora,
apenas no prelo do desejo!
Bom,
adiante, Nadalim simplifica ao extremo as explicações linguísticas para
orientar os pais a não apresentarem os sons das letras pela ordem alfabética. O
que ele quer dizer aí (mas diz muito mal amanhadamente) é que há fones consonantais
mais fáceis de serem observados e pronunciados isoladamente das vogais (e
sustentados pelas crianças, ele diz) do que outros, e diz que é por esses que os
pais (!!!) devem iniciar. Entendo que fonologia, para esse público, não é
possível explicar sem simplificações, mas aí já é informação incorreta. Não se
trata de as crianças conseguirem ou não “sustentar por mais tempo” esses sons.
São os fones (sons) que são mais ou menos pronunciáveis, a depender de seu modo
de articulação. Os fricativos são mais “esticáveis” e, portanto, mais
pronunciáveis isolados da vogal: /ffffffff/, /vvvvvvvv/, /xxxxxxx/,
/jjjjjjjjjj/, /ssssss/, /zzzzzz/. Já os oclusivos, não: /p/, /t/, /b/, /d/,
/k/, /g/. Sim, é mais fácil as crianças observarem os fones fricativos e vibrantes
(/R/ e /r/) do que os oclusivos, mas a explicação, ou melhor, a simplificação,
é incorreta, inadequada e desloca a questão para um elemento que não é bem o
que está em jogo.
Depois
disso, ele dá a tabela com a ordem de facilidade de pronúncia dos fones, sem
discutir porque as vogais são mais fáceis. Ora, são mais fáceis porque são fones
que soam isoladamente – e é por isso que são núcleo das sílabas, enquanto os
fones consonantais “soam com”, por isso “consoantes”. Tampouco aborda que não é
necessário mapear TODOS os fones (sons) para a criança se apropriar do
princípio alfabético. E isso seria importante? Claro! Os pais massacrariam
menos as crianças, nem precisariam chegar nos oclusivos, porque é o fim da
picada ficar pronunciando o impronunciável! O desserviço de fazer parecer que a
escrita é espelho da fala é incomensurável... Já repetidos em um trava-língua,
até os oclusivos são observáveis: “Quando digo Digo, digo Digo, não digo
Diogo...”
Além de não ser necessário
isolar fonemas, muito menos previamente à escrita, nem mapear todos eles, pois
as crianças entendem o princípio alfabético antes de chegar a todas as
correspondência (segundo SNOW e JUEL, 2013, também pesquisadores da ciência
cognitiva da leitura), tampouco é necessário treinar a segmentação fonêmica de
palavras. Artur Gomes de Morais argumenta que a consciência fonêmica é muito
mais do que apenas a capacidade de segmentar fonemas de uma palavra ou
pronunciar os fones isolados das letras. O que esse autor, bem como Magda
Soares, dentre outros nos quais me incluo, defendem, é que a consciência
fonêmica pode ser desenvolvida em presença da escrita, como consciência
grafofonêmica, de forma não artificial. Isso inclui a reflexão sobre palavras,
seus sons iniciais e finais, a comparação de palavras iniciadas pelo mesmo
fonema, ou de palavras semelhantes, que se diferenciam em apenas um fonema. Há
pesquisas que mostram que observar a invariância dos fonemas, ou seja, observar
a identidade dos fonemas em palavras diferentes, e ensinar a segmentação
fonêmica de palavras não garantem a transferência de conhecimento em termos de
consciência fonêmica e da apropriação do princípio alfabético (BYRNE, 1995), e só combinando-as com a correspondência entre letras e "sons" é que surtem algum efeito positivo. Só
que a situação de reflexão sobre a invariância e distintividade do fonema são
infinitamente menos artificiais do que segmentar ou isolar fonemas, como
discuto nesse post (Ver nota 2).
No caso
da aproximação das crianças menores com as sonoridades em geral, mais globais,
como a rimas, as sílabas, e com as unidades fonológicas abstratas que
estruturam o sistema, os fonemas – isso pode ser feito de uma forma mais
lúdica, como em jogos e pelos textos poético-musicais, como os trava-línguas,
em atividades epilinguísticas e sem criar situações artificiais de consciência
fonêmica – e no Ensino Fundamental, “puxadas” para as atividades metalinguísticas
no nível do fonema. Pesquisa não é prática pedagógica – na prática, há a
Pedagogia! Outros fatores precisam ser considerados, e o ensino da língua em
contextos significativos, letrados, lúdicos, reflexivos é um valor! Não à toa
andamos muito preocupados com o que vai se tornar a Educação Infantil com essa
tal “pré-alfabetização” que o Nadalim propõe, baseada nesses tantos equívocos e
visão estreita da própria concepção de alfabetização que ele defende.
Diferente
disso que eu argumento, o que se segue no E-book são orientações para trabalhar
esses “sons” através de uma série de situações artificiais e
descontextualizadas – que Nadalim chama de “dramatizações”. Orientações essas que, na forma, se apresentam como mágica. Quer
ver? Veja: “Peça que a criança coloque uma folha sobre a mão e assopre até que
a folha voe, ou que apague uma vela soprando. Ela produzirá o som: f-f-f-f.
Assim a criança aprenderá o valor fonológico da letra f”. Oi? Que afirmação
mágica e irresponsável! Primeiro, emitir um som (fffff) não resulta,
necessariamente em aprender algo. E uma só vez assim, resulta na verdade em
NADA. E também não aprendeu aí o valor fonológico da letra F, porque não tem
letra F na situação descrita... A afirmação é totalmente descabida de lógica,
em um enunciado que chega a ser ingênuo, quase pensamento mágico mesmo. E
quando diz “aprenderá o valor sonoro da letra f” ele mesmo se contradiz, já que
era “sem letra” (é som sem letra, lembram?), e a menção à letra e a própria
letra surgem aí não sei de onde... Ele o diz, mas não diz como faz. Percebe? Assim,
esse aprendizado do valor fonológico das letras fica completamente vago, mágico.
Mas isso deve ser porque, sendo a escrita um código (para ele), deve bastar
dizer: “Viu filho, esse fffff é o som da letra F”. Pronto, aprendeu! Simples
assim. Tão simples que até se dispensa de dizer claramente no seu Guia.
Depois
de retomar a última orientação, que é “Comece pelos sons mais simples e passe
aos mais complexos, sempre por meio de brincadeiras e dramatizações”, sugerindo
mapear todos os sons, ele emenda: “Quando o seu filho tiver dominado o
princípio alfabético, estabelecendo a correlação entre grafemas e fonemas,
sinais gráficos e valores fonológicos, letras e sons, será capaz de ler
palavras simples, como a palavra ‘uva’”. Proooonto! Mágica, que ele não diz
como acontece essa apropriação do princípio alfabético – mas é isso, a chave do
funcionamento do sistema é só um monte de informação técnica. Depois de 26
zoadas soltas no ar, eis o menino alfabetizado! #sqn. Será que o exemplo
com “uva” foi um ato falho que retoma o
“Ivo viu a uva”? é um clin d’oeil,
né? Se não foi, fica sendo, na minha visão da sua argumentação...
Se a
escrita fosse esse código tão simplório, não teria tanta celeuma em torno da
alfabetização, né? Mas...pelo que vem depois, é simples assim mesmo, mas é um
segredo que a escola guarda a 7 chaves!!!
Gente,
e isso tudo aí ele sugere para a Educação Infantil, a partir de 3 anos, viu? É
uma etapa da “pré-alfabetização”! Socorro!
Ele
termina essa parte (página 18!) com uma revelação que é de rir, para não
chorar! Eis a pérola: “Por fim, quero agora contar-lhe um segredo, que as
escolas costumam cobrar caro para revelar. Antes de ensinar às crianças o princípio
alfabético, é necessário conduzi-las por 5 etapas. É sobre esse assunto que
passarei a tratar no próximo capítulo”.
Gente! Eu
li isso mesmo? Seria hilário, não fosse trágico. Ele é o salvador da pátria da
alfabetização, vai revelar um segredo de estado que as escolas guardam a 7
chaves – escondem para quê? Para não se tornarem dispensáveis? A insinuação
deve ser essa, né? Oxe, mas se têm esse segredo mágico, porque é mesmo que não
alfabetizam, como ele insiste em dizer? Para se autoboicotarem? E aliás, os
próprios professores não sabem, segundo ele. É um segredo de estado dos donos
das escolas ou dos gestores das escolas públicas, sabe-se lá para proteger o quê.
Realmente, fica difícil imaginar porque as escolas guardam esse segredo e
cobram (para quem?) por isso... Não faz o mínimo sentido, e é um enunciado
valorativo, gratuito, sem nexo, sem lógica, sem substância, só para fazer fita.
Enunciado-bombástico-fake-delírio. Enunciado-fita, enunciado-lacre! É de uma
irresponsabilidade sem tamanho! Bom, mas ele, como o salvador dos filhos dos
brasileiros, vai revelar para os pais esse segredo...Estou tão curiosa!!!
E o
texto que se segue – que ele chama de “o
caminho das pedras” e constitui o segredo das escolas malvadas – apresenta as
tais 5 etapas. Vamos a elas! Ainda temos estômago?
No
próximo post, falarei das 5 etapas. Inté já!
Postado aqui.
Notas
1.Atenção à tradução do original do livro em francês, em que conhecimento/connaissance é feminino, ou do artigo referido, em inglês, sendo os termos para “conhecimento” em geral, também femininos. Em português, não, “conhecimento” é masculino, havendo aí, me parece, um problema de concordância.
2.Convém lembrar que essas pesquisas não levam em conta como as crianças estão pensando sobre a escrita alfabética e, portanto, seus resultados mostram apenas a relação entre o que se ensinou e o que ficou e foi passível de transferência e generalização.