sexta-feira, 3 de maio de 2019

LETRAMENTO, O VILÃO DA ALFABETIZAÇÃO? POST 4, Parte 2

4.2. Ciência cognitiva, prática pedagógica, os cegos e o elefante

Parte 2 do POST 4, conforme o sumário
    ...e voltando aos aspectos linguísticos também (não me largam!)

Bom, mas após o desabafo acima (Parte 1 do POST 4), voltemos ao vídeo, no qual ele continua seu argumento dizendo que, por outro lado, falta a esses documentos do MEC, propostas baseadas em “evidências científicas” atualizadas e comprovadas... Vou fazer uma postagem só sobre esse negócio de “evidências” adiante. Por ora, comento que, com essa afirmação, novamente ele demonstra desconhecer a obra da professora Magda Soares, a perspectiva de vários pesquisadores e centros de pesquisa no campo da alfabetização, como o Ceale e do CEEL, que consideram sim estudos advindos da psicologia cognitiva da leitura (ou ciência da leitura) em suas propostas, que vêm abordando há tempos questões como consciência fonológica e fonêmica, bem como sistematizando estratégias didáticas para abordar esses aspectos, e insistindo, justamente, na importância do componente fonológico e fônico na alfabetização. Mas, não, ele só contrapõe sua perspectiva a uma didática que, supostamente, negligencia esses aspectos, borrando as fronteiras entre diferentes perspectivas que ele ataca como uma só e achatando a complexidade do campo – como já discutido em outros posts dessa série. Não são todas as concepções/didáticas de alfabetização hoje que defendem aprender sobre o funcionamento e as regras do sistema de escrita de modo mais natural, incidental e implícito. Diversos autores/pesquisadores no país estão defendendo a abordagem da dimensão sonora da língua e o ensino explícito do sistema. Só que essas perspectivas não defendem a abordagem fônica como única preocupação na alfabetização, nem a faceta linguística como a única a ser abordada, e abordar o sistema de um modo transmissivo, como código, passando por cima dos processos de aprendizagem das crianças.

Magda – a mais atacada de todas – embora já aborde isso há tempos, sistematizou essa abordagem da faceta linguística, mas nessa perspectiva mais conciliadora, no seu livro “Alfabetização: a questão dos métodos”, de 2016, que Nadalim, por suas crítica, demonstra claramente que não leu, e despreza, porque não interessa o diálogo, não interessa perspectivas que não reduzam a língua a um código, não interessa se não for 100% como ele acha que deveria ser, só importa a imposição de uma perspectiva única, só importa de o foco for só na fônica, e só se for nessa visão dele, porque se for silábico, também não serve (falaremos sobre isso quando da análise do E-book). A discordância verdadeira entre os defensores dos métodos fônicos e os que não o defendem é quanto a COMO ensinar o princípio alfabético. Querer fazer parecer que a discordância é entre tomar isso como um objeto importante ou não de ensino é desonestidade intelectual! Fazer parecer que fora os defensores do método fônico, todos os outros defendem alfabetizar pela leitura de palavras globalmente como figuras, por reconhecimento da forma visual, aí já é mau-caratismo mesmo. E ele faz isso no vídeo inteirinho, querendo fazer parecer que é isso que Magda defende: o não ensino ou o ensino incidental e implícito do funcionamento alfabético.

Ele demonstra também desconhecer que o PNAIC trouxe essa visão conciliadora, preocupada com o letramento, mas com foco também na dimensão fonológica e do ensino explícito do funcionamento alfabético da língua escrita. Mas, referindo-se à BNCC lembra do que ele falou? Que a Base faz algumas “concessões” à abordagem fônica (sic!!!), porque só lhe interessa o pacote inteiro – método fônico sintético, bem mecânico, e banimento do letramento. Nem seus pares acham isso do PNAIC e da BNCC, ver aqui o que diz Renan Sargiani, coordenador-geral de Neurociência Cognitiva e Linguística do MEC, ligado à Secretaria da Alfabetização que, lógico, é um dos que têm que estar lá respondendo pela fundamentação da Política Nacional de Alfabetização (PNA) do governo, e “salvar” um pouco o nível da discussão desse obscurantismo de Nadalim. Ainda que eu não concorde com coisas que Sargiani defende,  ele tem base, fundamentos, e é um pouco mais ponderado quanto a essas polarizações, reconhecendo, inclusive, que a eficácia de um determinado método depende também de vários outros fatores. Sectarismo nunca ajudou ninguém nem nenhuma causa, de lado nenhum. O ensino da fônica (ensino da relação entre fonemas e grafemas) de forma sintética (ensino dos “sons” das letras e de como se juntam para formar as palavras), por exemplo, é um ponto de discordância, porque penso que ensinar sons isolados das letras artificializa a língua. A consciência fonêmica não implica, necessariamente, pronunciar isoladamente os fones, nem separar os fones em uma palavra, como Artur Gomes de Morais discute. Em situações de reflexão muito mais contextualizadas, tanto a invariância do fonema quanto sua natureza como unidade distintiva podem ser “observadas” metalinguisticamente pelas crianças. Como a que discuto nesse post, por exemplo. As operações de análise e síntese acontecem nesse processo de refletir sobre as sonoridades (silábicas, fônicas, etc) no contexto das palavras inteiras apenas. Não concordo também que, pelo fato de o sistema alfabético representar a fala no nível dos fonemas, para que se possa ler e escrever, deve-se PRIMEIRO conhecer o princípio alfabético, pois ao se enunciar isso, se deixa de fora todas as aproximações e entendimentos parciais que as crianças vão fazendo em suas tentativas de compreender o funcionamento da escrita. Além de se reduzir o ler e escrever apenas a decifrar e a grafar alfabeticamente. No momento certo, sim, é preciso sistematizar esse funcionamento pelo princípio alfabético, mas temo pelos pequenos, que serão treinados desde muito antes de poderem de fato dar conta disso, a associarem “sons” isolados a letras. É desse jeito que Nadalim entende essa assertiva de Sargiani, do campo cognitivo, percebe?

Como já venho defendendo não é de hoje, e como a própria Magda o faz (o que mostra que ele fez uma leitura superficial da autora), bem como outros autores, SIM, o referencial das ciências cognitivas da leitura contribui muito para pensarmos a alfabetização, em seus aspectos linguísticos e metalinguísticos, seja em relação à consciência fonológica, seja em relação a outras habilidades metalinguísticas, seja o conhecimento grafofonêmico (= fônica, que também a própria linguística aborda), seja em relação às rotas de leitura e ao processamento leitor e sua relação com a ortografia e a fluência da leitura, dentre outros aspectos. Temos sim que estabelecer os diálogos com a ciência cognitiva, considerar os resultados de pesquisas – e sem sectarismos políticos de ambos os lados. Mas colocar esse referencial como única ciência válida (e supostamente a única neutra), e seus resultados como suficientes para validar reducionismos nas metodologias para a alfabetização, é uma imposição que desconsidera a Pedagogia. Esse referencial de pesquisa precisa passar por interpretação pedagógica e ser ressignificado no âmbito de uma concepção outra de linguagem e de seu ensino, ou renunciaremos aos valores caros que, para nós, unem linguagem e educação, linguagem e sociedade, linguagem e sujeito, linguagem e vida. Há muitas pesquisas em várias áreas das ciências cognitivas que precisam ser consideradas, mas elas não podem se confundir com prática pedagógica, na qual é preciso dar conta de diversos aspectos. E não assim, reduzindo a língua escrita a um código, a um código neutro, esvaziado de sentido e, pior, associando o ensino a técnicas que qualquer um pode seguir. E ainda por cima, desqualificando a escola, os professores, os especialistas que não sejam aqueles alinhados a sua concepção. Constatar que as crianças aprendem os fones correspondentes às letras se treinadas a pronunciá-los e identificá-los isoladamente não se reverte diretamente e necessariamente em uma metodologia na qual as crianças vão ficar pronunciando /ffffffffffff/, /aaaaaaaaa/, para formar FA, numa repetição de práticas altamente mecânicas e descontextualizadas que foram questionadas no passado, e que tampouco resolveram os problemas de alfabetização. Nesse sentido, por que essa birra com a reflexão linguística no contexto de práticas de leitura e escrita? Ensino explícito e sistemático não precisa ser mecânico nem descontextualizado. Por que não valem as situações didáticas que, além de propor práticas sociais lúdicas e letradas, podem também ser contexto para a reflexão fonológica e fonêmica, e para o ensino do funcionamento alfabético? Por que ao lado disso, não pode haver também as situações de convívio e de reflexão sobre as funções da escrita e dos diversos gêneros? Vê que não faz sentido esse reducionismo, essa defesa impermeável quanto a propostas mais nuançadas – que ele chama de “concessões”? Por outro lado, ele lançou dois livros de cantigas, especialmente para serem contextos para a alfabetização...e tem vídeos indicando a leitura literárias para as crianças desde cedo. Vê a contradição? Vê que tem um componente birrento? Vê que tem uma indisposição para o diálogo? E lógico, como o que vem de lá é reducionismo e chumbo grosso, ninguém que está num lado mais conciliador nem do outro lado, se dispõe tampouco a dialogar, ouvir...E desse modo, tendo o referencial das ciências cognitivas chegado ao Brasil pela via desses defensores sectários do método fônico, polarizou-se o debate, fechou-se o diálogo. Perdemos todos. Perdem as crianças.

Agora, ninguém, e “evidência” nenhuma, vai me convencer que o caminho sintético e mecânico é o mais efetivo para alfabetizar as crianças, ainda mais aquelas de classes menos favorecidas, sem oportunidades mais amplas de experiências com a cultura escrita. Isso é um argumento altamente pernicioso... Estamos labutando aí com diferentes concepções de alfabetização – que para nós não é algo só técnico, é também sociopolítico, e não se separa do processo de letramento. Argumentar que o letramento e as orientações construtivistas servem para crianças de famílias letradas e que o método fônico é mais indicado para essas crianças que não têm tais oportunidades, justamente porque não têm, é negar-lhes, justamente, o direito de tê-las! Quando o letramento emergente, familiar, não dá conta, aí é justamente quando a escola precisa dar. Ou supõem que, para as classes desprestigiadas, basta uma leitura e escrita rasa? É isso, né? E depois, não é ideológico! Meu deus! E ainda invertem a questão – as crianças de famílias letradas são ensinadas a decifrar em casa, por isso se alfabetizam aparentemente pelos métodos “globais”, então, concluem que as crianças não letradas devem aprender a decifrar e a grafar ortograficamente na escola, e se letrar ONDE????? Ou julgam que uma vez alfabetizados, vão se tornar bons leitores e produtores de textos automaticamente? Me poupe, viu? Mas a questão aí é outra...De fato, trabalhar sistematicamente essa dimensão fônica nas situações contextualizadas de reflexão sobre palavras, não se presta bem à sistematicidade controlada e instrumentalizada que interessa para criar materiais didáticos com um passo a passo bem objetivo e restritivo. Custa mais, muito mais, formar bons professores, para, sabendo o trabalho que têm que fazer, possam fazê-lo em situações diversas de leitura, escrita e análise linguística na sala de aula. Mas custa muito menos um receituário asséptico do que bancar uma alfabetização rica, com mil trajetos possíveis, porque são diversas as experiências discursivas de cada turma.

Percebem também que tanto Nadalim, como esses caras todos, também abordam pouco a consciência fonológica mais global, de rimas, sílabas, por exemplo? Que poderiam ser tão ricamente exploradas a partir da cultura lúdica, de jogos, da tradição oral, da poesia e da música? Não, a ênfase é no fonema – e esse peso no fonema é, de fato, um ponto de discordância em relação ao que todos esses autores discutem, mas também a muitos outros da própria ciência cognitiva. Ainda que a unidade que estrutura o sistema seja o fonema, outras unidades de reflexão fonológica são importantes para chamar a atenção das crianças para a dimensão sonora da língua.

Ao colocar ênfase na habilidade de prestar atenção, de identificar e manipular, individualmente, os menores sons da fala, e concluir que são os fonemas, há aí um equívoco porque as menores unidades da emissão sonora são as sílabas, não os fonemas (abstratos). Ao reconhecerem que a dimensão do fonema não se aprende naturalmente, justamente por isso, concluem que, então, ensinar as relações das letras com os fonema precisa ser prévio a tudo, desde a Educação Infantil. Ou seja, joga-se fora todas as outras coisas... Concordo que não haja discussão quanto à necessidade de ter que aprender as relações entre fonemas e grafemas para se alfabetizar, mas sobre ao modo de fazê-lo! Justamente. E aí é que está a discordância verdadeira entre os defensores dos métodos fônicos e os que não o defendem.

A nossa resistência – no que me concerne – é a de reduzir as práticas alfabetizadoras ao que alguns achados de pesquisa experimentais apontam, pois eles focam apenas parte da questão...e silenciam sobre outras. Pesquisas indicam um monte de coisa, mas não dizem que essa ditadura do fonema vai resolver nada. Precisam ser consideradas, mas não são os únicos elementos que importa considerar. A alfabetização é um processo complexo, não pode se reduzir a isso. Evidências científicas precisam ser consideradas, mas muito cabe à Pedagogia, à pesquisa pedagógica e à prática concreta das situações singulares, para definir como conduzir o trabalho, que caminhos tomar, como ajudar cada turma e cada aluno em suas especificidades. Cada compo científico, cada concepção de alfabetização foca em determinadas facetas, mas a Pedagogia lida com todas elas!

Sabe a fábula hindu dos cegos e do elefante?

Vamos ouvir a história “Sete camundongos cegos”, de Ed Young, que uma das versões dessa fábula, para ilustrar meu ponto de vista.


Pois, percebem? Cada perspectiva vê uma parte da questão. A perspectiva construtivista nos interpela para lembrarmos do foco na aprendizagem, e não só no ensino, e a não descuidarmos de que as crianças pensam e  fazem hipóteses sobre os objetos de conhecimento, mesmo antes de dominá-los. A perspectiva sociointeracionista e discursiva nos lembram de que há uma dimensão muito mais ampla na apropriação da escrita do que o dimensão concreta da língua. A abordagem fônica foca nas relações entre fonemas e grafemas – necessária, claro – mas não apenas e não necessariamente de forma associacionista e com exclusividade de atenção ao fonema. A questão é o peso que cada uma coloca em que parte desse todo que é a linguagem.

Com isso, não estou querendo, de forma simplória, dizer se resolve tal complexidade fazendo uma mistureba de todas as abordagens que, muitas vezes, têm perspectivas epistemológicas muito diversas. Não podemos, no entanto, desconsiderar que as contribuições dos diversos campos ora se combinam para dar conta de um objeto de conhecimento multifacetado, ora se apresentam em disputa, havendo tendências e tensões. Assim, ainda que alertas quanto ao “ecletismo teórico-conceitual” e ao silenciamento das tensões no campo, que Mortatti (2015) denuncia, como a “tentativa de imposição de falso consenso, por meio da homogeneização de pluralidade de pontos de vista e posições teóricas e políticas, sabidamente em disputa”, me parece, por outro lado, que preciso atentar também, como afirma Belintane (2006), à necessidade de consensos mais amplos e diversificados, ao que completo, menos reducionistas e sectários. Diz ele que

Se um consenso científico é necessário para que os educadores e gestores possam contar com sugestões de programas e currículos em um esforço coletivo de enfrentar as complexas demandas brasileiras, é fundamental que ele se dê a partir de uma articulação mais ampla que considere o movimento dialético típico do conhecimento científico contemporâneo que, salvo raras exceções, cultua a interdisciplinaridade, respeita a heterogeneidade e a complexidade dos processos e das diversidades culturais (BELINTANE, 2006, p.273).

O que quero dizer é que, pensar a alfabetização, hoje, exige atenção a diferentes perspectivas, que são advindas, muitas vezes, de diversas áreas do conhecimento, diferentes campos de estudos, com suas contribuições específicas. Determinada perspectiva, qual seja, embora possa ser considerada fundamental ao campo, não dá conta de todas as facetas da apropriação da linguagem escrita, como discute Soares (2003), demandando que o campo pedagógico possa articular diferentes perspectivas de modo coerente e produtivo. O que quero dizer é que, na prática, o professor tem que fazer o todo, montar o elefante!

Mas quanto a Nadalim, digo ainda mais, ele parece também não ter lido (de verdade!) autores da própria ciência cognitiva da leitura, pois mesmo nesse campo, como já referi, ele comete vários equívocos – e voltaremos a esse argumento quando comentarmos sobre seu e-book com sua proposta metodológica para alfabetizar.

Mas vamos ainda à Parte 3 do POST 4, depois ao POST 5, último sobre esse vídeo infame.

Nota sobre a ciência da leitura: a Ciência Cognitiva da Leitura consiste em um conjunto de resultados envolvendo a leitura, advindos de pesquisas produzidas em áreas como a Psicologia Cognitiva, a Neurociência Cognitiva, dentre outras.

4 comentários:

  1. Adorando essas postagens.
    Detalhamento analítico importante para desconstruir argumentos absurdos.
    Não ligue para quem acha que é textão, ou os que acham que ninguém vai ler. Vai sim!
    Conhecimento valioso para nós professores.
    Muito obrigada,
    Jerusa

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    1. Oi, Jerusa,
      Não ligo, não!
      Mas é muito bom saber, confirmar, que vocês estão aí no apoio, que meus textões têm, sim, ressonância.
      Meu compromisso nessa ação é com o estudo. Então...
      Muito obrigada!
      Abraço

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  2. É bom ver o quanto avançamos em relação aos diversos métodos de alfabetização e como podemos utilizar da estratégia dessa ou daquela abordagem no processo de alfabetização na nossa prática docente. Do ponto de vista acadêmico é ótimo estudar e entender as diferentes propostas dos teóricos e é isso que enriquece o debate, a utilização da parábola dos cegos e o elegante expressa muito bem isso, sobre os diferentes pontos de vista.
    Já Nadalim, não tem legitimidade nenhuma para discutir esse assunto de tamanha relevância e nem capacidade de estabelecer uma crítica fundamentada a autoras brilhantes como Magda Soares.

    Rebeca Brito - EDCB-85 noturno

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    1. A fábula, de fato, é fantástica para isso!
      Até magda a cita em seu livro...

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