quarta-feira, 20 de março de 2019

O campo da alfabetização no Brasil, breve panorama - POST 0

A tendência do MEC será o de recomendar o método fônico como metodologia única ou prioritária de alfabetização, a despeito do posicionamento de diversos especialistas e pesquisadores do campo, pois, ao que parece, estão considerando apenas os especialistas da perspectiva que elegeram, supostamente única validada pelas “evidências” – discutiremos sobre essa questão em outro momento, mas, por ora, indico a leitura desse artigo fundamental de Mortatti, que aborda bem essa questão, bem como discute sobre o método fônico se apresentando como novidade salvacionista. Com o intuito de compreendermos melhor o campo de disputas e discussões referentes ao rumo das políticas públicas de alfabetização e sua relação com o campo da alfabetização no Brasil, vou fazer uma série de postagens, iniciando por essa, de contextualização da discussão. Independentemente do que virá, sinto-me impelida a contribuir com a reflexão sobre essa situação toda, para além dos posts breves que já venho fazendo. Por isso decidi fazer postagens mais longas sobre essa temática. Mas essas postagens dialogam com outros textos, sejam artigos, sejam textos diversos que estão circulando na internet e que, para adensar a discussão, é fundamental conhecê-los. Por isso marquei, e irei marcando no decorrer das postagens, os links desses outros textos (ou vídeos). Ou seja, trata-se de postagens emaranhadas com esse hipertexto maior, de muitas vozes.

Embora a proposta de adoção do método fônico como solução para os problemas de alfabetização do Brasil não seja nova (o artigo referido de Mortatti bem retrata essa situação), os novos acontecimentos no cenário das políticas do MEC nesse novo governo atualizam e dão uma concretude maior a essa questão. Em afinação com as condutas do governo federal de indicar nomes desqualificados – mas calculados – para cargos no MEC (e em outras pastas também), e da atmosfera de mediocridade instituída e representada que estamos vivendo atualmente no Brasil, no início de janeiro de 2019 Carlos Nadalim foi nomeado para secretário, na recém criada Secretaria da Alfabetização do MEC. Lógico que ele não vai trabalhar sozinho – em 25 de janeiro a professora Maria Regina Maluf  já foi nomeada para exercer o cargo de “Diretora de Alfabetização Baseada em Evidência”, dessa Secretaria de Alfabetização. A professora é pesquisadora do campo, na perspectiva da ciência cognitiva da leitura e fala de um lugar qualificado e fundamentado, no âmbito da concepção de alfabetização que defende. Podemos concordar, discordar, debater, ponderar, encaminhar junto a ela um debate científico, ainda que dissonante. Mas não com ele.

Nadalim é, além de queridinho do guru fake desse governo fake, Olavo de Carvalho, uma espécie de youtuber que fala de alfabetização sobretudo, para os pais, em um canal  e um blog intitulados “Como educar seus filhos” – título que já dá notícia de sua perspectiva prescritiva, prometendo soluções simples e instrumentais para alfabetizar os filhos em casa. Dá pistas também de seu posicionamento quanto à escola e aos professores, pois a todo momento minimiza o papel da escola, já que os pais podem se informar do passo a passo “infalível” (do método e dicas dele) para seus filhos terem sucesso na alfabetização.  

Desde a ocasião dessa indicação e de anúncios de que o método fônico defendido por ele seria adotado como metodologia do MEC, autores (como Magda Soares, diretamente atacada por Nadalim em um de seus vídeos) e grupos de instituições diversas têm vindo a público manifestar-se a esse respeito. Eu mesma, tenho me manifestado, seja nas redes sociais (Facebook, Instagram), seja comentando em sites ou páginas institucionais no Facebook, seja em outras mídias, como um texto recente que foi publicado no jornal A Tarde. Como professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, pesquisadora da área de alfabetização, sinto-me comprometida em  contribuir, com minha voz, para divulgar essa discussão em todos os canais possíveis: artigos, eventos, mídias, mas também nas redes sociais e nesse blog de trabalho.

A secretaria está silenciosa por enquanto, sabe-se lá tramando o que...dizem que preparando o programa de alfabetização. Já prevendo nossas reações – já que o posicionamento inicial anunciado gerou mobilização e contra argumentações de muitos (como o Manifesto da ABAlf e outras instituições, com petição aberta a assinaturas) – podem estar, igualmente, “estudando” as estratégias para conseguir adesão, ou avaliando como vão articular os interesses dos que lá estão com as vozes, que serão resistência, de defesa das conquistas do campo. OU como vão passar por cima dessas vozes. Uma manifestação  que julgo interessante e bem alinhada ao que penso também é a de Claudemir Belintane, nessa entrevista. A própria Magda Soares, citada em vídeo do secretário, foi procurada pela mídia e também se manifestou, brilhantemente, quanto à questão, aqui e aqui

Além de trazer uma contextualização à temática e alguns argumentos que julgo fundamentais para discutirmos a questão, pretendo aqui fazer duas coisas, em especial: comentar o vídeo de Nadalim em que ele atribui ao letramento os problemas da alfabetização no país e a desconstruir o “seu” suposto método milagroso para alfabetizar as crianças. Essa postagem faz parte de uma série sobre políticas públicas de alfabetização. Essa contextualização constitui o POST 0. A postagem comentando o vídeo e o e-book serão desmembradas em várias. Muitas coisas a comentar. O assunto é longo, rende, e eu sou espalhada na escrita, certo?

Gostaria de dizer, de cara, também, que a discussão sobre melhor método é antiga e contraproducente, e o que tem por trás disso são outras muitas coisas. Mas como eles usam esses discursos para fundamentar seus argumentos equivocados, e esses terão consequências nas políticas do MEC, na produção e distribuição de material, e em uso do dinheiro público, faz parte da resistência desconstruir esses argumentos até que se chegue ao que realmente importa. Embora o MEC não possa impor um método às secretarias, às escolas, aos professores, o apoio às redes de ensino, a produção de material didático, as formações continuadas, tudo isso terá impacto da linha adotada pelo MEC. Nessa entrevista Magda Soares argumenta sobre a relatividade do verbo "recomendar" (usado no lugar de "impor" um método), revelando sua inconsistência quando atrelada a esses outros aspectos.

Comecemos pelo contexto.

No seu livro “Os sentidos da alfabetização” Maria do Rosário Longo Mortatti (2000) apresenta, de forma brilhante, a dinâmica das mudanças e continuidades, permanências e rupturas, que operam, simultaneamente, no campo da história da alfabetização, articulando teorizações, concretizações na prática pedagógica e as normatizações das leis e políticas públicas. O campo da  alfabetização sempre foi, e segue sendo, um campo de conflitos e disputas de concepções sobre o que é e como alfabetizar, da dialética entre novo e antigo, tradicional e inovador, o novo tornando-se antigo e o inovador, tradicional, nos discursos que se sucedem. Magda Soares (2016) também comenta a alternância histórica das propostas metodológicas para a alfabetização, e não apenas no Brasil.

Em meados do século XIX, os métodos sintéticos (que partem das partes para o todo), em especial o da soletração, usado desde o Império, e o fônico e, depois, o silábico, eram os métodos vigentes,  que passaram a ser questionados, no final do século, pelos métodos analíticos (que partem do todo para as partes), sendo esses também de diversos tipos, a depender desse “todo” considerado. Essa disputa entre métodos sintéticos e analíticos centrava-se, basicamente, nas unidades de partida de ensino da escrita, as “partes”: o nome das letras, os fonemas representados pelas letras, ou as sílabas (métodos sintéticos, respectivamente soletração, fônico e silábico), ou o “todo”: as palavras, as sentenças ou pequenos textos (métodos analíticos de palavração, sentenciação e globais a partir de pequenos textos). Em meados da década de 1920, essa disputa dá lugar à disputa entre métodos analíticos ou métodos mistos (que unem a análise e a síntese), pois a marcha sintética, que parte de unidades sem significado, foi amplamente questionada. Os métodos analíticos analisavam as palavras em seus constituintes menores, sejam as sílabas ou os fonemas. 

Apenas um dos métodos analíticos, o global ideovisual, não investia sistematicamente na análise dessas unidades menores, focando sua atenção no todo da palavra, ou seja,  a aprendizagem da linguagem escrita se daria pela identificação visual das palavras. Nos outros, como a palavração ou sentenciação, partia-se de palavras e sentenças, mas chegava-se a sílabas ou fonemas, analisando-se as palavras em suas unidades menores. No caso do método ideovisual – que foi apresentado por Decroly  – não havia esse investimento, pois partia-se da ideia de que a criança aprende a ler e escrever por imersão na linguagem escrita, associando diretamente as palavras a seus significados. Tal perspectiva buscou fundamentos, depois, na psicologia da Gestalt, que pressupõe que o todo é maior que a soma das partes. Aplicada à alfabetização, esse pressuposto supunha que a forma global das palavras forneceria dicas importantes aos leitores iniciantes e, assim, a leitura das palavras se daria por reconhecimento de seu todo gráfico, e a sua distinção pela observação de semelhanças e diferenças entre elas. A análise de sílabas de letras poderia até ser feita ao final, mas esse não era o foco da abordagem, as correspondências letra-som seriam aprendidas naturalmente pelas crianças, nessa imersão, após o reconhecimento total da palavra estar bem estabelecido. 

Todos os outros métodos analíticos, no entanto, investiam sistematicamente na observação das unidades menores que as palavras, seja com foco na grafia ou nos sons, sendo a análise em sílabas o procedimento mais difundido e adotado nas cartilhas de alfabetização – talvez por ser a menor unidade de emissão sonora e não ser artificial como o fonema (voltaremos a isso adiante). A adoção preferencial dos métodos analíticos ou mistos a partir do século XX, que parte de unidades significativas, não significa, entretanto, que a operação de síntese estivesse banida, ela sobreviveu nos métodos mistos, que operam, ao mesmo tempo, com análises e sínteses. Mas o ponto de partida do ensino do sistema deixou de ser as unidades isoladas, não significativas. Para um ótimo resumo da história dos métodos, sugiro as obras (artigos, materiais) de Isabel Frade, do Ceale/UFMG, e sua entrevista ao CENPEC (inclusão posterior ao texto), já no contexto da discussão sobre a PNA. Relembro, de toda sorte, que a articulação entre significado e significante na abordagem do signo linguístico - como faz os métodos analíticos -, deve somar-se ainda a dimensão das práticas letradas, que também não era ainda uma preocupação tão direta desses métodos, que, aliás, muitas vezes se utilizavam de pseudotextos para alfabetizar. O foco era o sistema de escrita, a identificação de palavras, a decodificação, ainda que a entrada se desse por unidades de sentido – palavras, frases, textos. 

Historicamente, a alfabetização foi considerada por muito tempo como o ensino da escrita tomada como um código de transcrição da fala a ser memorizado, tendo seu foco, exclusivamente, no ensino do funcionamento alfabético. Mesmo os métodos analíticos, que partiam de unidades significativas, preocupados com o sentido, focavam a decodificação. Por isso a preocupação maior era com o método que seria mais adequado para alfabetizar. Acreditava-se que, uma vez que o professor seguisse os procedimentos tais que apresentados no método – seja ele sintético, analítico ou misto – a aprendizagem de todos seria garantida, já que esta era vista como um acúmulo de informações adquiridas de modo mais ou menos passivo pelo sujeito que aprende. 

Nos anos 1980, a partir de contribuições de campos diversos, novas concepções de linguagem, tomada como interação social, e de ensino e de aprendizagem, que colocam foco em como os sujeitos aprendem, de forma ativa, sobre os objetos complexos de conhecimento, favoreceram mudanças consideráveis nas concepções de alfabetização, que, a despeito de suas diferenças, passaram a tomar a língua escrita como uma prática sociocultural e a escrita alfabética como um sistema complexo de notação da língua. 

Essa virada no campo da alfabetização coloca a questão dos métodos tradicionais de alfabetização em outro patamar, esvaziando-se essa querela, com a tendência crescente a relativizar a importância do método. Todos esses métodos – analíticos, sintéticos ou mistos –, a despeito de suas diferenças e especificidades, possuem características comuns questionadas pelas novas concepções de alfabetização, dentre as quais se destacam: a) foco na escrita como código de transcrição da fala; b) não se ocupam da dimensão da cultura escrita, das práticas letradas, do uso da linguagem escrita; c) a concepção de ensino e aprendizagem subjacente a todos eles é de base empirista, mecanicista, associacionista. Registre-se: TODOS ELES! O artificialismo das cartilhas e sua falta de relação com as experiências reais de linguagem foram amplamente questionadas. 

E cada um dos métodos tem também suas especificidades que podem ser analisadas e discutidas nesse sentido. Quantos aos sintéticos, o método de soletração, por exemplo, que é o do bê-a-ba, revelou-se inadequado há muito tempo; o fônico, pensando no método de natureza sintética, artificializa a língua, pois os "sons" das letras isoladas não são unidades sonoras com existência concreta; o silábico, por abordar uma unidade natural de segmentação das palavras na nossa língua, a despeito do artificialismo do ensino pelas famílias silábicas, teve uma sobrevida nos métodos mistos, nas operações de síntese. Quanto aos analíticos, embora partam do todo, de de unidades significativas (palavras, frases ou pequenos textos), nem sempre o contexto das palavras e o texto eram, de fato, significativos. Textos cartilhados e palavras soltas eram comuns nessas cartilhas.

Mas, a despeito das críticas, os métodos tradicionais podem alfabetizar? Podem, claro! Alfabetizaram muitos – mas convém lembrar, que se tratava, antigamente, de crianças que tinham acesso à escola, já amplamente inseridas em famílias letradas, pois com a democratização e universalização do ensino básico, novos desafios se colocam à alfabetização. Assim, o problema desses métodos – eles tomados como conjuntos de procedimentos estruturados de ensino – é justamente esses: sua base associacionista, mecanicista, que ignora o sujeito de aprendizagem e de linguagem; a escrita tomada como um mero código de transcrição da fala; o fato de que não consideram os aspectos socioculturais da linguagem escrita, de não trazerem a linguagem em sua dinâmica viva, comunicativa e significativa. Caso é que esses métodos permanecem e precisamos também ponderar, como faz Isabel Frade, se essa permanência é uma questão de conservadorismo ou estaria ligada à natureza de um dos conteúdos da alfabetização, um de seus componentes, que precisam ser abordados, referentes às unidades menores da língua e sua relação com o sistema alfabético. 

Evidentemente, também não é o caso de “desmetodizar” a alfabetização, como foi por um tempo pensado, pois seguir procedimentos para alcançar um fim faz parte da didática da alfabetização. Método é um caminho, direção que conduz a um fim determinado, são os procedimentos para ordenar a atividade. Não podemos, evidentemente, “jogar o bebê fora com a água do banho”. Não se trata de “jogar fora” a questão dos métodos na alfabetização. Método, em alfabetização, é o conjunto de procedimentos sistemáticos que possibilitam o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita. Magda Soares, em seu livro mais recente “Alfabetização: a questão dos métodos” trata bem disso. Houve, de fato, uma má interpretação, quando do questionamento desses métodos mecanicistas, quanto ao lugar do método no processo de alfabetização, como se as novas perspectivas socioculturais e construtivistas não combinassem com métodos. Mas essa questão já foi revisitada. A questão é que, hoje, essa discussão sobre métodos não tem o mesmo teor que tinha antigamente – a partir de querelas dicotomizadas sobre qual a unidade de partida para o ensino do sistema alfabético e que operação (análise ou síntese) é mais produtiva. Essas discussões tornaram-se menor a partir de diversos entendimentos tanto relativos às aprendizagens sobre o uso efetivo desse sistema – antes desconsiderado pelas metodologias de alfabetização – quanto relativos à própria apropriação da escrita alfabética, tomada como uma sistema complexo cujo funcionamento exige a compreensão de diversas propriedades e construções e não como um código a ser memorizado.

Há, no campo atual da alfabetização, concepções diversas sobre a apropriação da linguagem  escrita, que ora se distanciam, ora dialogam e se articulam. No campo teórico, a perspectiva de base construtivista ora dialoga, ora se distancia de perspectivas de base sociointeracionista ou histórico-cultural, como o interacionismo linguístico, da perspectiva de alfabetização como processo discursivo e mesmo da perspectiva de alfabetização em contexto de letramento, que envolve diversos aspectos e facetas. Embora tenham pontos em comum, essas perspectivas não se recobrem totalmente, não são a mesma coisa, muito embora também possam dialogar. Por vezes trazem diferenças significativas em suas abordagens. Já no campo da didática da alfabetização, propostas baseadas nessas perspectivas podem aparecer em conflito ou diálogo, muito frequentemente há conflitos quanto ao modo como o construtivismo foi didatizado. Lembramos também que o construtivismo, bem como outras concepções, não são métodos, mas teorias – no caso, teoria sobre como o sujeito aprende. O construtivismo tampouco é uma concepção do processo de alfabetização. Baseada no construtivismo piagetiano, que concebe um sujeito que constrói conhecimentos de forma ativa, é a didática dita construtivista que se desenvolveu a partir desse referencial - e de outros - que pode ser analisada no âmbito de seus  procedimentos metodológicos, mas não o construtivismo em si mesmo. Voltaremos a isso adiante.

Dentre essas perspectivas referidas, há também aquelas que defendem o ensino mais sistemático do funcionamento da escrita alfabética, das correspondências entre letra e som no sistema e as que não investem, por outro lado, nesse aspecto da apropriação da língua, defendendo uma menor ênfase na decifração da escrita. Dentre essas últimas, ora enfatizam mais as situações de leitura e escrita, o uso dos textos nas situações comunicativas, mas sem negligenciar o ensino do sistema alfabético, ora investem na questão da utilização de informações contextuais no ensino da leitura e da escrita, em detrimento da decifração. No campo didático, hoje, há uma perspectiva construtivista mais sectária quanto à não abordagem explícita e sistemática do funcionamento alfabético, mas há perspectivas mais conciliadoras de alfabetização em contexto de letramento, que não negligenciam o aspecto fônico, defendendo as aprendizagens referentes ao sistema de escrita e sua base fonológica, ao lado e articuladas às aprendizagens mais amplas referentes às práticas letradas de leitura/compreensão de textos.

Ou seja, trata-se de perspectivas diversas e não um bloco único que se oporia, em massa, à perspectiva do método fônico. Por tudo isso que não é possível colocá-las, todas elas, no “mesmo saco”, para opô-las, em conjunto, à perspectiva fônica, como faz o nosso secretário da alfabetização, e como a mídia tem repetido por aí, reduzindo a complexidade do campo a uma disputa binária e que iguala diferentes perspectivas, tal qual veremos mais adiante. E essas perspectivas não têm nada a ver com métodos analíticos ou globais. É outro tempo, outros desafios, outras propostas. Reduzi-las ao método analítico é uma estupidez sem tamanho, repetida a quatro cantos pelos defensores do método fônico. E a perspectiva fônica, por sua vez, outra concepção que circula atualmente, ora se apresenta em sua vertente sintética mais tradicional, como "método fônico", ora aparece como uma perspectiva fônica fundamentada na psicologia cognitiva da leitura, não necessariamente sintética, que, de fato, tem muito a nos ensinar sobre alfabetização. Mas, como todo arcabouço, esse referencial da ciência  cognitiva da leitura não trata de TODOS os aspectos do ensino da língua, de TODAS as facetas importantes no processo de alfabetização e letramento, outros aspectos precisam ser considerados, em especial aqueles ligados às facetas interativa e sociocultural de que fala Magda Soares (2016). A ciência da leitura não é um conhecimento de propriedade do método fônico. Isso é fundamental entender. O fonics, ou a "fônica" - frequentemente traduzida como "método fônico", mas sem um termo equivalente em português - não é necessariamente sinônimo de método fônico sintético. Diz respeito à abordagem da dimensão fonológica da escrita e, em especial, o estabelecimento de relações entre fonemas e grafemas na compreensão do funcionamento alfabético da escrita. Abordar as relações entre fonemas e grafemas, refletir sobre os sons da língua, não são exclusividade dos métodos fônicos - é nisso que precisamos insistir! E essa ênfase no fonics pode ser de diferentes graus, desde um grau mais incidental até o ensino explícito, assim como o modo de propor a reflexão sobre esse aspecto bastante diversa, reflexiva ou mecânica, de treinamento fonêmico. Mas voltaremos a essas questões em breve, quando da análise do vídeo e da proposta fônica do E-book de Nadalim e no seguimento de nossas conversas sobre isso. 

Dito isto, cabe esclarecer que conhecer, minimamente, a história dos métodos de alfabetização, os discursos e dialéticas em torno das rupturas e continuidades que são operadas nessa história (como discute MORTATTI, 2000), e esse campo de concepções teóricas em jogo nesse cenário, é fundamental  para compreender o modo discursivo com que as novas querelas no campo da alfabetização são postas. É preciso conhecer esse campo para não associar as querelas atuais diretamente e de modo equivocado às velhas querelas da época da “guerra dos métodos”, do final do século XIX e início do XX, em que o foco de preocupação era “qual o melhor método?”.  Mortatti bem sublinha, nesse cenário, as disputas pela hegemonia de projetos político-educacionais e os interesses editoriais envolvidos no discurso persuasivo de validação de um método único como solução para o país. Ou seja, não é exclusividade da querela atual a retórica da eficiência de um único método sobre os outros, sem que se considere os limites internos de cada um, e o discurso de que aspecto seria o preponderante. Na história da alfabetização, como bem nos insistem Mortatti e Frade, cada discurso, de cada método, foi sempre baseado em apontar os problemas dos métodos que o precedem - e que sempre pode ser algo antigo requentado. E enquanto isso, as crianças precisam ser provocadas em diversos aspectos. Por isso, aposto nos professores na sala de aula, e em nós, que queremos ajudá-los a fundamentar seus discursos e didáticas, para sair desse reducionismo...

Considerando tudo isso, enunciar que a situação atual nas políticas públicas, como a mídia vem anunciando, que se trata de "substituição do método global pelo método fônico" é assumir que o que temos hoje é o método global. Confundir letramento e mesmo a perspectiva construtivista como um todo com método global é um equívoco que precisamos não reforçar. Precisamos desmistificar, primeiro, esse equívoco que se apresenta como premissa, e sair dessa linha argumentativa deles. Precisamos rebater e argumentar com outros argumentos, e não voltando a velhas querelas como se a querela atual fosse uma versão requentada da mesma de antigamente. Não é bem assim. Ainda que possamos falar em procedimentos semelhantes aos procedimentos da marcha analítica, fazer equivaler método analítico ou global a construtivismo - e pior, a letramento, é um equívoco usado insistentemente como premissa. Está certo que a didática de cunho construtivista que, baseada não apenas na psicogênese, mas também em Goodman e Smith e na perspectiva da whole language (voltaremos a isso no próximo post), terminou por reforçar esse equívoco ao negligenciar o ensino do funcionamento alfabético da notação da língua. Mas não podemos confundir nem aceitar que confundam, espertamente, letramento e mesmo construtivismo, com método global. Nem que seja isso o que temos hoje. Cartilhas de método analítico podem partir de palavras, de sentenças e de pequenos textos, inclusive pseudotextos bem cartilhados, e podem propor a análise em sílabas ou fonemas de modo bem mecânico, como o ba-be-bi-bo-bu tão famoso. Isso não tem nada a ver com ocupar-se das práticas letradas no ensino da língua escrita e refletir sobre o sistema nesse contexto, como um sistema que amplia a possibilidade de participação letrada. Magda Soares já desmistificou essa questão em um artigo de 2004!!! E estamos em 2019 ainda colocando as coisas em termos de fônico x global??? Não vamos entrar nisso de tornar simplórias as coisas que são complexas e reproduzir esse binarismo. 

O ensino explícito do sistema de escrita e sua base fonológica não é exclusividade do método fônico, bem como abordar procedimentos fônicos não significa adotar um método fônico sintético. Trabalhar a consciência metalinguística - metacognitiva -, a consciência fonológica de rimas, sílabas, fonemas não é, necessariamente, aplicar o método fônico ou silábico. A consciência fonêmica não se reduz a propostas de segmentação de palavras em fonemas e muito menos de pronunciar fones isoladamente - algo artificial e impossível, pois a fala é co-articulada. O fonema, por sua vez, não é som, mas uma unidade fonológica abstrata, mental. Do mesmo modo, ensinar o sistema alfabético no contexto das práticas sociais de leitura e escrita não significa adotar método global e, certamente, não o global ideovisual. Nada mais equivocado! Outro aspecto muito repetido é que usar procedimentos vários, silábicos, fônicos, etc, significa "misturar métodos". Não se trata disso! A língua pode ser segmentada em várias unidades fonológicas, dentre as quais, sílabas e fonemas (mas não só), todas elas são importantes no processo de alfabetização, por diferentes motivos, em diferentes momentos. Abordá-las não é equivalente a adotar um método, nem abordá-las em conjunto é “misturar métodos”. Esse é um modo extremamente simplório que não cabe a especialistas no campo, apenas ao discurso dos medíocres, que a mídia toma como ponto de partida equivocado, a partir da voz deles. Prefiro falar em uso de diferentes procedimentos - que são procedimentos metodológicos, metodologias - em vez de dizer que se pode/deve usar vários métodos ou misturar métodos – considerando que ao referir a "métodos", geralmente remetemos aos métodos tradicionais, esses que se critica por terem características bem diversas dos procedimentos silábicos ou fônicos que se propõe hoje como reflexão metalinguística sobre a escrita e sua base fonológica. Estamos muito distantes desse modo simplório de ver os conflitos de concepções do campo da alfabetização hoje. As propostas muitos autores e pesquisadores da área não se encaixam nessa lógica. Precisamos sair desse modo discursivo que reforça o que queremos questionar. Artur Gomes  de Morais já discutia isso em 2006 (!!), em um artigo que vale a leitura nesse momento. Por outro lado, recentemente, referindo-se à polêmica brasileira atual tanto quanto às readings wars nos EUA, Catherine Snow, pesquisadora alinhada à perspectiva da ciência da leitura, disse, muito ponderada, que o posicionamento de uma perspectiva em contraposição total ao outra apresenta-se como uma discussão “supervalorizada” e “contraproducente”, já que é preciso investir tanto no sistema alfabético quanto nas práticas significativas, reais e as ricas experiências com a linguagem, e associá-las a perspectivas políticas é prejudicial para a aprendizagem das crianças. Diz ela nessa entrevista: "Quando a disputa se torna política, as pessoas se alinham de um lado, por paixão, e deixam de perceber e de apreciar o que há de valor científico ou metodológico na posição do outro. E aí a questão técnica e o reconhecimento das verdadeiras necessidades das crianças são abandonados ou ficam desequilibrados" - e ela é do campo da ciência da leitura, certo?

Bom, de todo modo, diante de tudo o que foi discutido, reafirmo que letramento não tem nada a ver com método silábico, global, whole language, jogo psicolinguístico de adivinhação – só o nosso secretário para repetir uma asneira dessa, sem tamanho, associando letramento e construtivismo como se também fosse uma coisa só. O segundo post dessa série vai, justamente, comentar o vídeo em que ele faz essa miscelânea toda, atacando, de modo irresponsável e desrespeitoso uma autora fundamental no campo da alfabetização, reconhecida e respeitada, nesse campo, mesmo por autores de diferentes perspectivas – Magda Soares. Logo ela que defende muito pertinentemente a importância da consciência fonológica e do ensino sistemático do funcionamento alfabético. 

Aprender o funcionamento do sistema alfabético da notação da língua é fundamental para se alfabetizar e poder ler e escrever com autonomia e fluência. Quanto a isso, no geral, as diferentes concepções atuais de alfabetização estão de acordo, o que varia é o peso que dão ao ensino explícito e sistemático desse funcionamento, indo de uma perspectiva com foco maior na imersão a uma perspectiva de treinamento fônico. Retomaremos essa questão, que é essencial no nosso argumento sobre as querelas atuais no campo da alfabetização.

Fato é que essa aprendizagem do funcionamento alfabético não garante, entretanto,  a leitura e escrita competentes de textos de diversos gêneros, a compreensão leitora, os procedimentos de escrita e, muito menos a função social da linguagem que circula na cultura escrita. Assim, é preciso investir nessas diversas facetas (como diz Magda Soares), para formar leitores e produtores de textos. A alfabetização, assim – no sentido amplo – não se constitui em um aprendizado meramente técnico e nem mesmo procedimental. Quando se propõe o termo letramento é, justamente, pensando em abarcar as questões mais amplas relativas às capacidades de interagir com cultura escrita, reservando o termo “alfabetização” para o processo de apropriação do sistema de escrita, mas isso, no sentido de ampliar a participação nas práticas letradas, a partir da competência de decifração da escrita alfabética – ou seja, essa aprendizagem é também parte do processo de letrar-se. O processo de apropriação do funcionamento da notação alfabética, no entanto – a alfabetização propriamente dita – pode ser conduzido de forma reflexiva, metacognitiva, e não mecânica, associacionista, artificializando a língua como faz o método fônico sintético, que toma a perspectiva do conteúdo e do adulto sobre a estrutura da língua, não considerando a perspectiva da criança que aprende. 

Construir metodologias de alfabetização para dar conta da especificidade da alfabetização no contexto da linguagem viva e dinâmica e dos sujeitos que com ela interagem, bem como metodologias para abarcar as diversas facetas da linguagem e de seu ensino, é um desafio que precisamos enfrentar para não negligenciar os aspectos linguísticos nem tomá-los de modo mecânico, a partir de metodologias mecanicistas, mantendo ou voltando aos velhos métodos. A formação de professores precisa mesmo investir mais no conhecimento didático sem sectarismos em relação a concepções e métodos de alfabetização. Por isso que hoje se diz que a questão principal não é mais, exatamente, sobre decidir-se sobre que método é melhor, mas discutir todos os procedimentos que são necessários para se apropriar de todas as facetas da língua escrita e, em cada faceta, suas especificidades. Na faceta propriamente linguística há a possibilidade de abordar as diversas unidades da língua, como palavras, sílabas, fonemas, unidades maiores e menores que as sílabas, e isso não significa adotar tal ou tal método, ou misturar métodos, como já referido.

Essa síntese, que não traz nenhuma novidade, mas tem o propósito de contextualizar as questões que vamos discutir sobre as políticas públicas de alfabetização. E, em especial, prepara as próximas postagens: a análise do vídeo “Letramento, o VILÃO da Alfabetização no Brasil”, de Nadalim, que argumenta de forma desrespeitosa sobre o letramento e o construtivismo, para justificar a validação do método fônico como panaceia para todos os problemas de alfabetização no Brasil, e o tal E-book de sua autoria, com o passo a passo aplicacionista que garantiria a alfabetização das crianças. Esses serão os próximos posts, começando pela análise do vídeo.

Vamos que vamos!


Referências

MORAIS, Arthur. Concepções e Metodologias de Alfabetização: Por que é preciso ir além da discussão sobre velhos métodos? Brasília, DF: Secretaria de Educação Básica. (Trabalho apresentado no Seminário Alfabetização e Letramento em Debate), 2006.

MORTATTI, Maria do Rosário Longo. A “querela dos métodos” de alfabetização no Brasil: contribuições para metodizar o debate. Revista Eletrônica Acolhendo a Alfabetização nos Países de Língua Portuguesa, v.8, n 14, 2014.

MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização (São Paulo 1876-1994). Editora UNESP: COMPED, 2000.

SOARES, Magda. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2016.

SOARES, Magda. Letramento e Alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação. Minas Gerais, n. 25, jan/fev/mar./abr, 2004. 

segunda-feira, 11 de março de 2019

Alfabeto Nordestino no jornal

Saiu no dia 09/03/2019 um artigo meu no jornal Correio da Bahia sobre o alfabeto nordestino, estudo que venho fazendo para divulgar mais sobre a legitimidade cultural e linguística de nosso jeito de nomear as letras do alfabeto. Há várias postagens aqui no blog sobre isso e sobre esse estudo e a pesquisa empírica que estou desenvolvendo sobre a temática. pesquisem pelo marcador Abecê Nordestino.

Vamos lá professoras e professores baianos!
Vamos cultivar nosso abecedário, que é legítimo, bonito e muito funcional. Vamos ensinar às crianças que temos dois jeitos de nomear essas oito letras no Brasil! E dar a ver essa nossa particularidade cultural ao resto do país, quebrando esse preconceito, de início, entre nós mesmos.

Print do jornal:

Página do jornal on-line:


O link para ler o texto no jornal on-line: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/alfabeto-nordestino

Referência: Correio da Bahia, ano XL, nº 13278, Artigo, p. 2, Sábado, 09 de março de 2019.

O artigo foi indicado no Jornal Pensar a educação em pauta, aqui, do Pensar a educação, pensar o Brasil, aqui: http://pensaraeducacao.com.br/pensaraeducacaoempauta/educacao-em-debate-edicao-228/

Estou sem tempo de avançar e terminar esse estudo e pesquisa - concentrada que estou em fechar minha outra pesquisa, bem como as demandas da UFBA - mas não o deixo de lado, esse meu xodó de abecedário!

E para não perder a oportunidade, mostro aqui o que disse uma "sem noção" no twitter do Correio sobre esse artigo. Prefiro, evidentemente, o tweet de cima, mas vejamos o "nível" da argumentação..."Sem noção" é pouco, né, gente? Coitada...


...E se é para radicalizar, tudo isso e mais gostoso de falar e ouvir, sim, Ary! 

sexta-feira, 1 de março de 2019

Manifesto da ABAlf e outras entidades

Segue a manifestação pública da Associação Brasileira de Alfabetização - ABAlf, ao Ministro da Educação, quanto à tendência de indicar o método fônico como metodologia adotada pelo MEC.  O manifesto tornou-se Petição Pública, e qualquer interessado pode assinar.

Segue o documento:



E os grupos e instituições assinantes, de diferentes concepções e perspectivas, mas todos convergentes quanto a essa questão:





 


Nós, na Faculdade de Educação da UFBA assinamos tanto pelo Geling - Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Linguagem, quanto pelo NEPESSI - Núcleo Integrado de Estudos e pesquisa em Infâncias e Educação Infantil e também pelo GEPEICI - Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Infantil, Crianças e Infâncias, sendo que eu faço parte desses dois primeiros.