Post 2 – Miscelânea conceitual: letramento,
construtivismo, whole language, método global, ideovisual ... tudo num saco só?
Letramento e/ou literacia? Consciência fonêmica: pré-requisito e/ou
consequência?
Introdução
Aos desavisados, que possam reclamar
do textão, volto a esclarecer: trata-se de textos para estudo, cujos
interlocutores são, em geral, estudantes, professores do ensino básico,
buscando relacionar os estudos do campo da alfabetização ao panorama atual das
políticas públicas em nosso país, e especialistas, aos quais junto minha voz para
contribuir com esse debate – propósitos enunciados no início da série.
Portanto, o texto é “explicudo”, tem glosas necessárias ao estudo, ao
aprofundamento necessário para compreender a seriedade das distorções perpetradas
pelos que atacam concepções sem fundamento e com muita desonestidade
intelectual. E, por vezes, tem também alguns juízos quanto ao que se diz, ao
como se diz e a quem – de que lugar – diz, para rebater juízos que não se sustentam,
o que revela minhas indignações, indignações que cabem nesse gênero de texto –
postagem de blog. De todo modo é contrapondo-se a argumentos, não à pessoa,
embora, por vezes, seja difícil mesmo separar isso, nesse momento, não é? Ademais,
refletir não apenas sobre o que se diz, mas como se diz e o próprio processo de
dizer do enunciador e as condições de sua produção, também faz parte do campo
de estudos da linguagem. Aqui é um blog, não um periódico científico, nos qual
teço minhas considerações a partir de outras organizações discursivas e linhas
argumentativas.
Lê quem quer e quem precisa. Se você quer
comentários mais breves, sínteses e estudar não é bem o que procura, o lugar é
o Facebook, lá teço minhas considerações também. Aqui sou eu, indignada,
perplexa, em luta! E o estudo compartilhado é um modo de lutar! Porque por trás dos discursos há um problema de fundo que diz respeito aos usos do dinheiro público para livros e materiais didáticos, e todo o movimento de mercantilização da educação. Desconstruir esses discursos nos ajudam a pactuar com o que realmente importa!
Vamos lá, continuando e
aprofundando...
1.
Miscelânea conceitual
Continuando...vamos seguir na
argumentação sobre o vídeo “Letramento é o vilão da alfabetização”, iniciada no
Post 1 dessa série que discute o vídeo. Os argumentos de Nadalim, nesse vídeo,
seguem com outros tantos equívocos conceituais. Falaremos, nesse post, de
outros equívocos relacionados aos já enunciados. São tantos, que só textão mesmo
para dar conta!
Como ele confunde letramento e
construtivismo, colocando tudo no mesmo saco – ou acredita que o letramento é a aplicação da teoria
construtivista na alfabetização (sic!!!), como discutimos no post anterior –
ele acha, igualmente, que “o letramento é também uma espécie de ambientação
latino-americana, especialmente brasileira, do whole language” – nas palavras dele. Nada mais incorreto! O whole language, ou linguagem integral, é uma perspectiva
psicolinguística holística dos anos 1970, cujos representantes são Ken Goodman e Frank Smith, e faz parte das querelas dos métodos nos Estados Unidos, se contrapondo
à perspectiva fônica.
O whole language
gerou, nos EUA, propostas pedagógicas em que as relações fonema–grafema não são
objeto de ensino direto e explícito, sua aprendizagem decorreria de forma
natural da interação com a língua escrita, com os textos. A aprendizagem sobre
a notação da língua se dá, nessa perspectiva, na imersão na linguagem escrita,
sem investimento no ensino sistemático do funcionamento alfabético da notação
da língua. A decifração era evitada ou adiada. Embora vejamos hoje os limites dessa proposta, ela também traz uma importante contribuição no sentido de cuidarmos de, na abordagem das unidades que estruturam o sistema para aprender sobre seu funcionamento, não nos descuidarmos da linguagem significativa, das próprias particularidades sonoras quando se analisa os fonemas no contexto das palavras, das variedades linguísticas - aspectos muito importantes, dentre outros, que Goodman sinaliza.
Agora, a pergunta é: onde é que a perspectiva do letramento, defendendo
a interação com as práticas letradas, implica em não ensinar a notação
alfabética? Onde é que falar em inserir as criança na cultura letrada implica
em ensinar a ler pelo todo sem abordar o funcionamento do sistema, sem ensinar
os procedimentos de decifração? Onde ele viu isso? Em que livro de Magda
Soares? Esse “livro” não existe!!! A perspectiva do letramento, ainda mais a de
Magda, que é diretamente atacada no vídeo, enfatiza tanto a faceta
sociocultural e interativa da língua e de sua apropriação, quanto as
aprendizagens relativas ao sistema de escrita alfabética. Não há negligência
com essa faceta linguística, referente à notação alfabética da língua, sua base
fonológica, os procedimentos de decifração. Não necessariamente e, categoricamente,
não na perspectiva da autora que ele critica abertamente no vídeo. Aliás, é
justamente a isso que Magda Soares se refere quando fala de alfabetizar letrando
e letrar alfabetizando, defendendo a especificidade da aprendizagem do
funcionamento alfabético na apropriação da língua escrita. É o que ela chamou
de “reinvenção da alfabetização”, em um artigo de 2003!!! Mais de 15 anos! Então...o
que você acha? Ele leu Magda Soares? Reinventar a alfabetização é, segundo a
autora, justamente voltar a colocar foco nessa especificidade do processo de
alfabetização, do ensino do funcionamento alfabético, que foi um tanto
negligenciada pelo foco nos aspectos psicogenéticos e socioculturais da
apropriação da escrita – que ela denominou de “desinvenção da alfabetização”.
Justo ela – que embora seja uma voz importante no campo dos estudos do
letramento, defende tanto esse ensino explícito do sistema – sendo atacada por
algo completamente dissonante em relação ao que defende. Ele com certeza não
leu Magda Soares! Letramento não tem nada a ver com whole language, Sr. Nadalim!!!
Numa postagem no blog de Nadalim, há
um
texto de um professor, Luiz Carlos Faria da Silva, adepto do homeschooling, que, após juntar
Vygotsky, Luria e a neuropisicologia, também nesse mesmo saco, diz: “Aprender a
ler com base em textos, aprender a ler privilegiando as habilidades cognitivas
superiores, aprender a ler do todo para a parte, aprender a ler dando valor à
função social da linguagem, tudo isso
é whole
language, tudo isso é construtivismo aplicado à alfabetização, tudo isso é
letramento” – atestando, ele também, a sua miscelânea completa. Quanta asneira!
Quanta desconsideração por tantos campos de conhecimento! E Vygotsky, diga-se
de passagem, entrou de gaiato no saco apenas por defender o óbvio, de que o
ensino da língua deve se dar no uso vivo da linguagem – coisa que até hoje,
ainda nem conseguimos, de verdade, garantir. Na certa, para esse professor,
validado por Nadalim, construtivismo também é uma etiqueta que cobre a
perspectiva histórico-cultural, sociointeracionista, e um monte de coisa mais. Dizem
que “construtivismo” é vago, porque há tantos conceitos de construtivismo
quanto autores que o defendem (segundo Luiz Faria, no Blog
Como educar seus filhos), mas eles mesmos fazem uma mistureira sem fim. Sim, o
construtivismo terminou por agregar diversas referências e ajustes são
necessários para entender as nuances entre teorias e discurso pedagógico e
político-pedagógicos. Mas daí a desqualificar as perspectivas contrárias aos
ideais deles e igualá-las todas é muita desonestidade... Em outro
texto, esse
mesmo professor diz: “aplicado ao ensino de leitura e escrita, o construtivismo
ganhou no Brasil o nome de letramento”. Então, finalmente, entendi de onde
Nadalim tira essas afirmações esdrúxulas e a empáfia de dizê-las com tanta
convicção. Esses caras são loucos!
Agora, para não ficar apenas na
perplexidade, vamos tentar entender... É fato que essa perspectiva do whole language se aproxima de como, no
Brasil, o construtivismo foi didatizado na alfabetização (o construtivismo, não
o letramento. Lembram? Não é a mesma coisa!).... E isso a própria Magda Soares
afirma, reconhecendo as aproximações. As próprias Emilia Ferreiro e Ana
Teberosky (1985) abordaram, em seu livro sobre a pesquisa psicogenética, os
princípios de Goodman e Smith, se alinhando a eles e abrindo a brecha para tal
aproximação. A didática de cunho construtivista, no Brasil – estabelecida na
alfabetização, principalmente, com o PROFA no início dos anos 2000, a partir dos
PCNs, segue fundamentando projetos municipais e é bastante presente no discurso
pedagógico, com propostas didáticas que se aproximam daquelas do whole language.
A hegemonia do discurso pedagógico construtivista e suas concepções sedutoras
quanto à aprendizagem das crianças, de fato favoreceu o tensionamento com a
perspectiva fônica, pois, bem ao contrário da ênfase exagerada na relação
fonema-grafema no método fônico, a didática construtivista é pouco intencional
e efetiva quanto às estratégias didáticas de ensino explícito do sistema
alfabético. E, de fato, adota-se aí princípios e procedimentos (como a leitura por predição), que
se aproximam muito de princípios ose procedimentos da perspectiva do
whole language, que julga produtiva a leitura por predição e não
por decifração. Propondo um ensino do funcionamento alfabético mais casual,
incidental, deu espaço para se pensar que as crianças devem descobrir quase que
por si mesmas o princípio alfabético, as relações fonema–grafema, na interação
com material escrito em diversas práticas de leitura e de escrita.
Ao defender que a criança é capaz de
descobrir por si mesma as relações fonema–grafema, na interação com o material
escrito e nas práticas de leitura e de escrita, sem investir nos procedimentos
de decifração, é como se, então, priorizasse o que se denomina como letramento.
Ah...o letramento... E aqui chegamos a um ponto importante. Talvez seja por isso
que Nadalim e seus gurus se acham no direito de colocar esses conceitos –
letramento e construtivismo – no mesmo saco. Percebem? Só que precisa forçar
bem a barra para concluir, então, que o letramento é o mesmo que whole language.
E também para jogar fora, de forma desrespeitosa e autoritária, toda a
perspectiva construtivista, em função de certos equívocos que sua didatização e
hegemonia nos discursos e políticas operaram no campo da alfabetização. A sabedoria
de aparência de Nadalim é quase sofismática. Como lembra Artur Gomes de Morais
(2006), o debate já se originou, no Brasil, de forma inadequada, pois importou
a antiga discussão entre “método global” e “método fônico”, ‘whole language’ e ‘phonics’ em outros países, tomando a premissa equivocada dos
partidários do método fônico de que a didática construtivista de alfabetização
se igualaria ao método global.
Mas continuando... Sabemos que Emilia
Ferreiro, ela mesma, não criou nenhuma didática, apenas estabeleceu princípios
a partir da pesquisa e da teoria, que foram didatizados com pouca ênfase no
ensino do funcionamento alfabético. Nem na perspectiva psicogenética, nem na
perspectiva do whole language, nem na
didatização do
construtivismo, no
entanto, ignora-se os aspectos fonológicos e notacionais da escrita alfabética.
A própria Telma Weisz (2004), representante maior dessa didática no Brasil afirma – assim como Goodman (1997) – que não
se pode negar o processo de tomada de consciência dos aspectos fonológicos da
língua no processo de alfabetização. Goodman (1997) afirma que essa abordagem não ignora a fônica, apenas a coloca na perspectiva da leitura e escrita reais. Mas é fato que as propostas baseadas nessa abordagem não se ocupam e até negligenciam aos procedimentos didáticos sistemáticos de tais
aspectos, dando margem à polarização em relação à perspectiva fônica. Embora
a didática dita construtivista não ignore as relações da escrita com a pauta
sonora da língua falada – inclusive, nem poderia, já que a perspectiva
psicogenética busca, justamente, compreender como as crianças vão construindo
essas relações – as aprendizagens nesse sentido, especialmente no que se refere
à apropriação do princípio alfabético, são mais incidentais do que resultado do
ensino sistemático e explícito do funcionamento da notação da língua. Como a própria Telma Weisz (2016, p.
18) afirma, “desde que haja informação disponível e espaço/condições para a
reflexão sobre o sistema de escrita, os alunos constroem os procedimentos de
análise necessários para que a alfabetização se realize”. Ao professor, nessa
perspectiva, cabe organizar a atividade e agrupamentos produtivos, colocar as
“boas perguntas” nos pequenos grupos ou duplas, que orientem as análises das
crianças, orientar a busca por fontes de pesquisa (ex. modelos estáveis de
escrita convencional, como os nomes próprios), oferecendo informações
específicas apenas quando necessário. Ora, precisamos mais do que isso. E esse
“mais do que isso” não precisa ser, necessariamente mecânico, desconsiderando
como a criança pensa, como alguns defensores também sectários dessa didática
argumentam por aí também.
Ou seja, da perspectiva de
alfabetização à qual me alinho, a crítica de Nadalim, sobre o whole language, teria algum sentido se
direcionada a esse aspecto da didática construtivista – crítica que eu também
faço. Mas não, ele direciona sua crítica à dobradinha construtivismo-letramento,
ao construtivismo em geral e ao letramento como sinônimo de construtivismo no
Brasil. E, ao que parece, o faz “fundamentado” (com aspas mesmo!) nesse Luiz Faria
– e, com uma ênfase ainda maior no letramento e em Magda Soares. A birra maior
dele parece ser o letramento, Magda, tudo volta para isso, com distorções
argumentativas. E justo ela que não pertence a uma perspectiva de letramento
que se ocupa mais da imersão na cultura letrada do que dos processos de
alfabetização propriamente dita. Justo ela, que, como já dito, fala na
necessidade de recolocar foco na especificidade das aprendizagens relativas ao
funcionamento alfabético do da notação da língua e sua relação com a base
fonológica da língua falada. Justo ela que escreveu o último livro justamente
sobre a especificidade da alfabetização.
Nadalim aproxima construtivismo e
letramento da abordagem do whole language
devido a essa perspectiva se preocupar com as práticas reais de leitura e
escrita, mas desconsidera completamente o que de fato está em jogo na discussão
sobre letramento (não sabe o que, lembram?) e ignora desonestamente o fato de
que, na perspectiva da alfabetização em contexto de letramento da qual fala
Magda, não há a negligência com o ensino do sistema de escrita alfabética –
muito pelo contrário! Ou seja, ou ele
parece ignorar completamente a perspectiva da autora, pois a critica por falta
de algo que ela, justamente, faz tão bem, ou ele é muito má fé mesmo! Ou os
dois, provavelmente os dois.
Além da má fé, mostra desconhecimento
mesmo, deve se basear em discussões de segunda ou terceira mão. Mesmo sem
conhecer a obra da autora, sua perspectiva, se arvora a criticá-la e de modo
tão tosco e fraudulento. Ele não sabe o que é letramento e se arvora a misturar
tudo numa argumentação frágil com ares de sabido que teria descoberto a falha
do outro, distorcendo, mal intencionadamente, a perspectiva da autora, para
caber em sua argumentação raivosa, arrogante e desrespeitosa, para validar sua
retórica e “vender” a sua própria perspectiva, o seu “milagre”, em cima de uma
grande desonestidade intelectual (e vender aí também no sentido literal, seu curso on-line "Ensine seus Filhos a Ler - Pré-Alfabetização" custa quase 3 mil reais!!!). Mal sabe ele que os defensores mais sectários
da didática construtivista – que, inclusive, associam procedimentos fonológicos
a perspectivas epistemológicas positivistas e posições políticas conservadoras
– criticam Magda e a abordagem da consciência fonológica (com premissas
equivocadas também), e atribuem quase um valor de “palavrão” a unidades da
língua como fonemas e sílabas, associando-as a procedimentos, necessariamente,
mecânicos e não significativos. Ou seja, tão sectários quanto, criticam Magda
justamente pelo contrário do que Nadalim critica: por ela defender aspectos
que, ele, por outros caminhos e com outras ênfases, defende. Curioso não é? Muito
curioso...
2. Letramento, práticas sociais e literacia
Há, visivelmente, nesse vídeo, um
birra com o letramento. Outras perspectivas também relativizam a necessidade
desse conceito, inclusive a própria Emilia Ferreiro, mas num outro tipo de
argumentação. A questão é se há necessidade dessa separação entre letramento e
alfabetização e o que estaria implicado nisso. Mas nenhuma dessas perspectivas
desconsideram a escrita como uma prática social, seja referindo-se a
letramento, seja referindo-se a cultura escrita ou a alfabetização como
englobando tanto isso quanto o sistema notacional. Mas reparem que, nesse
governo, vão tentar abolir das políticas públicas o termo letramento. Tanto nos
anúncios da mídia sobre os planos do governo, quanto no próprio Decreto n.9.465 de 2 de janeiro de 2019 do MEC, nos artigos 28 a 31, que tratam da instituição
da Secretaria de Alfabetização e das três diretorias que ela engloba, observa-se
o uso do termo literacia em vez de
“letramento”, ambos importados do termo literacy,
usado em referências anglo-saxônicas. Usam aqui literacia – como em Portugal –,
para não usar o termo letramento em uso no Brasil – o que diz muito sobre as
rusgas com o campo e os rumos do que pretendem. O pesquisador da ciência da
leitura e neurocientista português, professor emérito da Universidade livre de
Bruxelas, José Morais, usa preferencialmente esse termo, mesmo referindo-se ao
Brasil, e um de seus argumentos é que letramento traz uma dimensão social nem
sempre existente nos textos que circulam – como diários íntimos! Ao que remeto
a minha argumentação no primeiro post da série. Outro argumento que já ouvi a
esse respeito é de que letramento seria mais a apropriação inicial, enquanto
literacia não – argumento que não se sustenta. Essa aprendizagem inicial é
referida por eles como reading
acquisition, reading instruction, beginning litteracy, enquanto literacia
seria, segundo José Morais (2013, p. 4), o “conjunto das habilidades da leitura
e da escrita (identificação das palavras escritas, conhecimento da ortografia
das palavras, aplicação aos textos dos processos linguísticos e cognitivos de
compreensão).” Ou seja, a dimensão sociocultural é que parece ser problemático
para eles, que focam apenas a dimensão individual, autônoma, da literacy/literacia/letramento, e não sua
dimensão social. Enfim...Brian Street neles! Agora, percebam que o que eu ressalto aqui não é o uso do termo, em si, pois se usassem "letramento" nesse sentido restrito aí, de habilidades cognitivas, escolares, seria pior ainda. Seria reduzir o letramento ao letramento "autônomo", como nos ensina Street. Assim, nesse caso, usar outro termo, como literacia, é até mais coerente. A despeito de nem literacia, em Portugal, nem literacy terem um único sentido, também sendo usado (menos) em sua perspectiva mais sociocultural, "literacia" combina melhor com essa visão da PNA. A questão é, para onde jogaram o letramento? E essa é uma escolha motivada, nada neutra.
No blog “Como educar seus filhos”,
de Carlos Nadalim, o professor Luiz Faria diz, com a mesma empáfia e equívoco
que “o termo “letramento” foi inventado no Brasil e tem sido empregado como
substituto do termo ‘literacia’”. Ora, tanto “literacia” quanto “letramento” são termos que derivaram do inglês “literacy”, neologismos que surgiram em
função de necessidades de ampliações conceituais no campo e, como é normal em
toda língua e todo campo científico, novos termos podem ser criados e, por
vezes, a partir de termos usados em outras línguas. Mas o professor comete
nessa breve oração dois pressupostos equivocado e eivado de preconceitos.
Primeiro, quando usa o termo “invenção”, como se o termo letramento não fosse
válido, por ter sido “inventado”, e pelo fato de ter sido inventado no Brasil –
porque, se é assim, “literacia” também foi “inventado”. Só que por ter sido
inventado na Europa (Portugal usa “literacia” para “literacy”) tem valor, não é? O fato de sonoramente se assemelhar mais importa? É tão bandeiroso que diz que usamos
“letramento” como SUBSTITUTO de “literacia”!!! Não, querido, ambos os termos foram
gerados do termo literacy e, no campo das teorizações conceituais, tomaram conceitos diferentes. Quanta
síndrome de colonizado, de vira-latismo, my god! Na verdade, tem ainda isso: o termo literacy, usado com referência a um letramento autônomo (Brian Street), escolar, teve uma tradução brasileira como alfabetismo. O termo letramento, no Brasil, ganhou um sentido mais amplo, vinculado aos estudos dos New literacy studies, que expandem esse conceito para os aspectos sociais, os letramentos críticos, letramento no plural! E nesse caso, se usar letramento com esse sentido expandido de literacy fosse invenção do Brasil, que bom seria, não é? Nosso crédito!
Mas ainda além disso, como já mencionei, o termo literacia também tem,
em Portugal, diferentes sentidos, a depender da perspectiva considerada. Também
lá, como no Brasil, o conceito está em processo de construção no campo, e é
heterogêneo, múltiplo, plural, embora haja a tendência ao seu uso mais restrito, ligado a perspectivas da educação mercantilizada, da testagem, das habilidades cognitivas - já que esse é um movimento mundial, não brasileiro. Mas é fato que o campo de estudo das culturas escritas é complexo e não unificado, como já argumentaram Maurizio Gnerre (1985) e o próprio Brian Street (2014). Faz parte da pluralidade de áreas do conhecimento, ver os conceitos sob óticas diversas. Mesmo o fato de ser ainda impreciso e controverso, tem
relação com a dinâmica do campo. A imprecisão conceitual do termo letramento
referida por esse professor no blog “Como educar seus filhos” existe também em
outros lugares, porque faz parte do processo de constituição de novos
conceitos, porque implica os usos diferentes que são dados a eles em diferentes
perspectivas, diferentes visões de mundo e, aliás, porque é da dinâmica da própria linguagem. Como podemos
ler no editorial da revista Escrita, do Ceale/UFMG, a apropriação do termo
literacy, na França, tem se deu por meio de três formas: littéracie,
littératie, litéracie. Alguns autores parece que resolveram adotar os três,
justamente em função das diferenças conceituais entre eles. Percebe? Outros autores, da perspectiva de alfabetização como processo discursivo, a exemplo de Cecília Goulart, problematizam o conceito justamente por motivos opostos, por enfatizar a dimensão social e discursiva da própria alfabetização. Vale a pena a leitura de artigo da autora nesse sentido. Os conceitos estão sempre submetidos a serem esgaçados, ampliados, reduzidos, reconfigurados, isso não é obra de desarranjos tupiniquins, não, certo? É produção de conhecimento! Além disso, depende também da perspectiva que se adote: antropológica, linguística, psicológica, pedagógica. Não é coisa do Brasil, não, Luiz Faria! Desonestidade é querer fazer parecer que aqui é tudo mal-amanhado e que só a perspectiva de vocês é que vai salvar o campo dessa “bagunça”. Tem dó!
A necessidade do conceito pode até ser circunstancial, negociável, como podemos ver no próprio Glossário Ceale, mas não pelos argumentos postos pelos senhores.
Em Portugal, tampouco todos o
conceituam literacia como José Morais, pelo contrário, há pesquisadores que o conceituam
muito mais próximo do conceito brasileiro de letramento – inclusive os
processos que engendraram tal conceito – enfatizando um significado mais amplo,
que se refere à capacidade de utilização da língua escrita em contextos
sociais. Aliás, também lá há instabilidade no uso do conceito, uns o associam
às competências de leitura e escrita, outros a sua utilização social. Mas é
enorme a capacidade desses caras de serem desonestos a ponto de achatar também
os usos dos conceitos e todo o campo científico estrangeiro, além do
brasileiro... Se quiser ver um panorama histórico do conceito de literacia, em
um trabalho acadêmico de mestrado na Escola Superior de Educação de Coimbra,
fique à vontade. Nas páginas 21 a 24. Nessa entrevista esse conceito também aparece aproximado do que entendemos como letramento.
A simplificação da linguagem, para
esses caras, que parecem não saber que os conceitos são historicamente
determinados (é muita ideologia para eles isso, né? Ironia localizada), que não
dão conta da linguagem viva, com seus conceitos que ganham novos sentidos a
depender do contexto de uso, reduz a dinâmica dos sentidos, dos usos dos termos
da língua a um dicionário onde só se encontrasse palavras com uso objetivo,
literal, denotativo. Eita mundo chato!
3. Considerações sobre a consciência fonêmica
Mas sigamos com os problemas
conceituais presentes no vídeo, saído do letramento e indo à especificidade do
sistema de escrita e do papel da consciência fonêmica nessa apropriação. A
certa altura do vídeo, Nadalim usa uma citação do pesquisador José Morais para
“provar” (sic!!!) que a tomada de consciência dos fonemas não é automática, que
depende do ensino explícito do “código” (sic!) alfabético. E ele cita o trecho
abaixo do livro “Os neurônios da leitura”, de Stanislas Dehaene, da Artmed.
Ora, é isso mesmo que afirmam vários
autores e, pasmem, inclusive Emília Ferreiro diz algo semelhante. Embora a
autora, adequadamente, não chame o sistema alfabético de “código”, ela defende
que a consciência fonêmica se dá, justamente, a partir da compreensão do
funcionamento alfabético. Ela, inclusive, usa esse argumento para criticar que
se deva trabalhar com os fonemas na oralidade, previamente à escrita, já que
são unidades altamente abstratas, sem realidade sonora. Para ela, uma vez que
vão aprendendo o funcionamento alfabético, no contexto de palavras que se põem
a ler e a escrever, e não a partir de relações soltas de grafemas e fonemas, é
que a consciência fonêmica se desenvolve. Essa aliás, é uma perspectiva quanto
à relação entre consciência fonêmica e leitura. Há quem pense, como Nadalim,
que a consciência fonêmica é pré-requisito à leitura, há quem pense, como
Emilia Ferreiro, que é uma consequência de ter aprendido a escrita alfabética
(ou seja, a consciência fonêmica não é automática, ela depende da compreensão
do sistema, como diz Morais aí – a diferença é que Emilia coloca foco na
aprendizagem, não no ensino), e há que pense, numa via em meio termo, que há
uma causalidade recíproca, alguns aspectos da consciência fonêmica (que não é
um bloco homogêneo, mas composta de várias habilidades) são necessários para
compreender a escrita alfabética e outras habilidades se desenvolvem com a
compreensão do princípio alfabético. Essa perspectiva interativa é a que José
Morais (2013) admite hoje aceitar. E mesmo antes disso, enfatizava que a
consciência fonêmica se desenvolve com a apropriação da escrita alfabética –
exatamente como defende Ferreiro –, incluindo-se aí a apresentação das letras e
a descoberta do que elas notam. Embora eu ache que o contexto das palavras seja importante na consciência dos fonemas (e não de letras isoladas), vale lembrar que, em seu livro "A arte de ler", José Morais afirma que a análise da fala em fonemas é pouco eficaz sem que sejam tornadas explícitas as suas relações com os signos escritos, que a consciência fonêmica não precede a aprendizagem do funcionamento, ainda que parcial, do sistema alfabético. Ou seja, surgem simultaneamente - o que revela a ideia da causalidade recíproca e não da consciência fonêmica como pre-requisito para aprender o sistema. Ele cita, inclusive, um estudo em que o autor diz que os fonemas se tornam "audíveis" apenas com o alfabeto, a consciência do fonema se dá quando assumem uma forma visível, nas letras. E Nadalim, em seu Ebook fala de apresentar os
fonemas antes das letras, pasmem! Conclusão: já sabem, né? José Morais é tido
por Nadalim como uma referência...mas... Acho até que dá sim para brincar com fonemas - os fricativos, por exemplo, que podemos esticar e os oclusivos em sua repetição em trava-línguas - chamando a atenção para esses sons menores em atividades epilinguísticas, que podem se desdobrar em atividades metalinguísticas, mas é no confronto com as palavras escritas que as crianças tomam verdadeiramente consciência dos fonemas como unidade distintiva. Para discutir mais sobre isso, ver
post aqui no blog.
Todas essas três perspectivas têm
defensores e detratores, mas, ao que parece, nosso secretário só conhece e
admite uma delas, ou melhor, nem sabe o que defende, pois se contradiz. Parece
que nem entende bem o que José Morais argumenta aí, pois, em seu e-book, Nadalim fala
claramente em treinar as crianças nos sons isolados das letras previamente à
apresentação das letras, da escrita, que é uma perspectiva didática que supõe
que a consciência fonêmica é pré-requisito para aprender o princípio
alfabético. Percebem a contradição em relação ao que defende José Morais? Pois
é! Nem os autores que ele refere como pares nas suas argumentações, ele parece,
de fato, conhecer. Pega trechos descontextualizados de livros, de vídeos, sem
consideração do todo da obra dos autores, dá nisso!
Ou seja...quem é mesmo que acha que a
consciência dos fonemas se dá de forma automática? Está dialogando com Smith e
Goodman? Certamente não é com Emilia Ferreiro, nem com Magda Soares, que enfatiza,
inclusive, a natureza grafo-fonônica da consciência fonêmica, preferindo,
inclusive, falar em consciência grafo-fonêmica, justo porque as vê de modo
integrado, não os fonemas previamente às letras, às palavras.
Isso para vermos o tanto de equívocos,
de desconhecimento dos autores que ataca e mesmo dos autores aos quais se
alinha.
Bom, na continuidade da conversa sobre decifração e predição abordada aqui, seguiremos no POST 3, falando um pouco mais sobre o processamento da leitura. Esse assunto tem um crocotó, um apêndice, uma barriga, um adendo, um “a mais”, que não podia ficar de fora dessa análise. Então, se você quiser encarar um pouco
mais de aprofundamento no assunto das misturas e imprecisões conceituais de
Nadalim e seus pares, siga adiante... Assunto árido...mas completa esse estudo. Ficou
grande...por isso, fiz o crocotó...o POST 3! J
Referências
Obs.: As referências bibliográficas usadas em todas essas postagens da série, salvo os artigos indicados nos links, virão ao final do estudo.
EDCB85 - Mariluse
ResponderExcluirApós leitura do textão, faço reflexão no pensamento de Alliende e Condermarín (1987)”. Nesta mesma perspectiva, retorno as observações do nosso texto, considerando as proposições didatizadas de Nadalim e seus métodos de alfabetização e entusiasmo com o homeschooling. Compreendendo a alfabetização como o processo de aprendizagem onde se desenvolve a habilidade de ler e escrever, é instigante nos interrogar o porquê do descredenciamento de pesquisadores que já possuem conceituada experiência desse processo? É nesse sentido, que o texto nos convida a refletir o que se diz, quem diz e de que lugar.
Referindo-se a implantação de política pública se faz necessário conhecimento analítico, teórico e empírico, não sendo possível, negligenciar, desqualificar vivências e pesquisas de autores como Magda Soares e Paulo Freire. Para além de experiência em alfabetização, há também, o conhecimento essencial do contexto histórico, econômico, social dos sujeitos a quem a política é destinada. Destarte, qualquer proposição para melhoria do processo de alfabetização deverá considerar as experiências desenvolvidas.
O outro fator que o texto nos convida a observar, é justamente a troca dos termos “letramento por literacia”. O decreto de nº 9.765, de 11 de abril de 2019, que institui a Política Nacional de Alfabetização, traz em seu bojo a “alfabetização baseada em evidências científicas, com a finalidade de melhorar a qualidade da alfabetização no território nacional e de combater o analfabetismo absoluto e o analfabetismo funcional”. Como formar leitores com habilidade interpretativa? Não é a partir da leitura de mundo que o aluno pode compreender a realidade em que ele está inserido e chegar a importantes conclusões sobre o seu mundo e os aspectos que o compõem?
Compreender tudo que há nas entre linhas dessas proposições é fundamental para embasar as práticas de sala de aula e nos posicionarmos enquanto futuros professores.
Mariluse,
ResponderExcluirO problema é que ele só valida como referencial importante os autores e pesquisas da concepção que ele abraça. O problema é que além de eliminar o letramento, mesmo o processo de alfabetização propriamente dito, de ensino do funcionamento alfabético, tem várias vertentes, não uma única. E ele quer silenciar esse campo. Mesmo a abordagem fônica não existe uma só. Ele defende o método fônico sintético, bem mecânico, inclusive consciência fonêmica prévia a aprender as letras - isso nem autores da ciência cognitiva nos quais ele se embasa, defendem. O problema é que para ele, conceituado são só os autores de uma determinada perspectiva, os outros ele joga no lixo.