Post 3 – O que dizem mesmo os experts; Predição ou decifração OU
predição e decifração?; ler é decifrar? Ler é compreender? Ler e compreender? Leitura:
conceito polissêmico; modelos de processamento da leitura.
Esse post é um crocotó, um apêndice, uma barriga,
um adendo, um “a mais”, que continua o post anterior, o POST 2, e é meio
pretensioso, eu confesso. Mas não resisto a fazer esses comentários
elucidativos, que reforçam os equívocos conceituais do vídeo.
No vídeo “Letramento, o vilão da
alfabetização”, além de igualar letramento e construtivismo, e essa
“dobradinha” à whole language, Nadalim
iguala tudo isso também a método global, a método ideovisual, forçando caber na
perspectiva do letramento a ideia de leitura por predição e do “jogo
psicolinguístico de adivinhações”, procedimentos defendidos pelo aporte da
whole language (um dos principais teóricos da estratégia de predição é Goodman
em “Reading: a Psycholinguistic Guessing Game”, 1985). Quando chegamos a essa
parte do vídeo, vemos que a mistureira é sem fim. E o saco está ficando grande
demais, não acham, não? Nada mais equivocado...pra variar. Isso tudo se configura,
no entanto, como uma estratégia bem montada de generalizar bem o lado do
adversário, cabendo tudo ali, para, então, apresentar o seu antídoto. Aliás mais
do que uma estratégia, é um estratagema, por seus componentes: astúcia,
subterfúgio, ardil, sabotagem.
No post 0 argumentei sobre isso das propostas
atuais de alfabetização em contexto letrado não ter nada a ver com método
global, muito menos com propor que o reconhecimento de palavras se dê por sua
configuração, seu desenho gráfico, sua identificação ideovisual. Mas não
bastasse isso, mais adiante no vídeo, voltando a esse amalgama mal amanhado de
construtivismo-letramento (e multiletramento ele inclui aí também) com a
perspectiva da whole language, ele diz que “um dos grandes erros dessa
perspectiva é acreditar que as crianças podem aprender a ler e a escrever por
meio de um ‘jogo psicolinguístico de adivinhações’, a partir do levantamento de
hipóteses e predições sobre os textos, estabelecendo elas mesmas,
autonomamente, as relações entre grafemas e fonemas, descobrindo os significados
das palavras por meio do contexto”. Volto a dizer que, se isso poderia até ser
atribuído a algumas estratégias defendidas pela didática construtivista, que
investe na leitura por predição, sem considerar intervenções intencionais e
planejadas sobre unidades sublexicais (unidades menores, fonológicas e
gráficas, constitutivas das palavras, como morfemas, sílabas, fonemas, letras...),
não tem, no entanto, nada a ver com o letramento, como já argumentado – e é ele que é atacado como vilão da
alfabetização (“invenção do construtivismo”, lembram?). E a didática construtivista, como argumentei
no post anterior, de fato se aproximou da perspectiva da whole language...
Mas de todo modo, nem a didática
construtivista ignora as reflexões sobre as relações entre partes do oral e do
escrito. Não as aborda de modo sistemático no ensino, mas pressupõe que as
crianças usem seus conhecimentos sobre a escrita para tentar decifrar e
escrever. É importante ressaltar que as situações de pesquisa inteligente das
crianças sobre o escrito, suas reflexões a partir da análise de diversos
aspectos do texto e das palavras, não podem ser vistas como da ordem da
adivinhação. E, desde que entre nessa pesquisa inteligente também as
informações sublexicais, rumo à crescente possibilidade de decifração precisa
das palavras, esse “ler sem ainda saber ler”, usando informações contextuais,
fazendo predições e usando, ao mesmo tempo, informações sublexicais para
decifrar as palavras e partes das palavras, pode ser produtivo, sim. Produtivo
para os aspectos textuais, a compreensão do texto, os processos descendentes
(top-down) da leitura.
Mas é fato: não podemos deixar de considerar
que as informações fonológicas, fonográficas e ortográficas têm um papel preponderante
na leitura propriamente dita. A leitura por predição, ou seja, o uso do
contexto do texto, da semântica, para ler, ajuda no desenvolvimento da capacidade
de inferência, de construção de sentidos, mas para a identificação das
palavras, os processos sublexicais, as informações gráficas e sua relação com a
pauta sonora da língua são imprescindíveis. O que diversas pesquisas mostram
hoje é que para o reconhecimento e identificação de palavras na alfabetização
inicial, a predição é um procedimento não produtivo. Mas não quer dizer que não
seja produtivo de todo tampouco. A leitura precisa, fluente e autônoma de
textos não é precisamente um processo de predição contínuo e de elaboração de
hipóteses sobre as palavras que o compõem. Envolve o processamento das letras e
das unidades da estrutura fono-ortográfica de cada palavra, que conduz ao seu
reconhecimento ou à sua identificação e, depois torna-se um processo automático
complexo. A decifração é um passo importante na conquista da identificação
automática das palavras que é, sim, necessária à meta de ler de forma fluente,
automática, por via lexical, ortográfica, sem decifrar letra por letra, ao lado
dos processos mais amplos de compreensão textual.
A leitura lexical, ou seja o reconhecimento
ortográfico que permite a automatização da leitura, ou seja, a leitura
eficiente sem ter que decifrar letra por letra, no entanto, depende da leitura
pela rota fonológica, no aprendizado inicial da escrita alfabética, em um
processo ainda bem misterioso para os pesquisadores da ciência cognitiva. Ou
seja, para ler de forma automática, pelo reconhecimento ortográfico das
palavras é preciso passar, na aprendizagem, pela decifração, pela rota fonológica.
Esse domínio não vem pela predição sobre a escrita das palavras na
alfabetização inicial. Ler e aprender a ler são dois processos diferentes, se
ler envolve reconhecimento automático, aprender a ler envolve também a
decifração. Penso que esses são aspectos da ciência cognitiva que, sim, é
preciso levarmos em consideração para pensar nas propostas alfabetizadoras. Então,
nem tanto, nem tão pouco.
A fluência da leitura será alcançado por meio
da prática frequente da leitura, após vencer essa etapa fonológica, que
promoverá o reconhecimento automático, e possibilitará a leitura eficiente, que
implica o jogo entre processos ascendentes e descendentes e entre as duas rotas
de leitura – fonológica (para palavras desconhecidas ou pouco frequentes) e
lexical (para as já firmadas no léxico mental).
Agora, não podemos aceitar que associem a defesa
da exposição das crianças aos textos a um ensino por predição. Além da
justificativa do letramento, colocar as crianças na alfabetização inicial, bem
no início da sua formação leitora e escritora, em contato com a leitura e
escrita de textos, antes mesmo de chegarem a ler com autonomia e escrever de
forma convencional, tem relação com o fato de que a se considera a
alfabetização como um processo que vai além do ensino da decifração do sistema
alfabético. Aposta-se que as crianças se perguntam sobre a escrita – desde que
tenham oportunidade para tal – e vão formulando hipóteses sobre seu
funcionamento, argumentando sobre suas ideias, mesmo que ainda distantes da leitura
autônoma e da escrita convencional. É isso e não exatamente e necessariamente,
porque creem que a leitura por predição e a imersão na cultura escrita bastam
para, efetivamente, se alfabetizar. Isso
porque olham pelo ponto de vista da aprendizagem e não apenas do ensino, apostando
no pensamento das crianças, em sua capacidade de indagar ativamente o objeto de
conhecimento. E aqui é uma diferença epistemológica de base em relação à
perspectiva que só considera o objeto e o ensino, sendo a aprendizagem apenas
um resultado desse ensino. E essa é uma lição do construtivismo e do
socioconstrutivismo (ou sociointeracionismo) que é inegociável.
Mas, dito isto, precisamos reconhecer o que
nisso tudo dá brecha a essas interpretações equivocadas. A questão é que a,
ainda que a didática construtivista preveja princípios e estratégias para
provocar a reflexão sobre o princípio alfabético, apostam muito alto na leitura por predição
(sem incluir nessa pesquisa os elementos sublexicais de forma sistemática) e negligenciam
as reflexões sistematizadas e provocadas coletivamente pelo professor, sobre a
dimensão sonora da escrita. E isso por acreditar que as próprias crianças
constroem os procedimentos de análise necessários para que a alfabetização se
realize, deixando a mediação docente um tanto casual nesse aspecto. Tanto é que
Telma Weisz (2016, p. 17) afirma que “nas atividades de ‘leitura’, o aluno
precisa analisar todos os indicadores disponíveis para descobrir o significado
do texto e poder decidir o que está escrito (e onde)”. E isso, conforme a
autora, pode ser feito de duas formas: pelo ajuste dos segmentos do texto
falado, memorizado, aos segmentos escritos, e por estratégias de antecipação
pelo contexto verbal ou extraverbal. Não nego nada disso. Mas esses
procedimentos não devem implicar em negligenciar a decifração, e nem se opõem a
ela, como tentarei argumentar mais adiante. Decifração, consciência fonológica,
fonema, sílaba, por vezes são termos quase proibitivos a essa didática – como
já argumentado. Eis a porta que se fecha, também aí, para dialogar mais
produtivamente com a perspectiva da ciência da leitura. Diálogos, no entanto,
apesar de epistemologias diversas, são possíveis, saindo, em ambos os casos,
das perspectivas polarizadas, sectárias.
Uma coisa é opor completamente decifração a
predição pelo contexto, como se só houvesse a possibilidade de um ou outro
processo, outra é reconhecer a leitura como um processo cognitivo complexo, que
envolve processos ascendentes (ou botton-up, foco na decifração) e descendentes
(ou top-down, foco na produção de significados, na compreensão, na formulação
de hipóteses sobre o texto, inferências, antecipações, predições). A leitura
eficiente envolve procedimentos textuais, lexicais e sublexicais. Um modelo
interativo, também teorizado nesse campo de pesquisas cognitivas, prevê um
papel importante, mas diferenciado, de ambos os processos. Nem tanto ao mar,
nem tanto à terra!
O simples convívio com textos escritos e a
leitura por predição não garante a apropriação do princípio alfabético – ao
menos Magda nunca defendeu que garante. Ler é também decifrar. Esse é um procedimento fundamental, mas não é
só decifrar, haja visto que decifrar não garante a compreensão do que se lê, os
processos inferenciais que o texto exige, a apropriação dos discursos em suas
complexidades diversas. Ler é um termo polissêmico e, essa leitura que permite
a interação plena com o escrito, não é só decifrar. Isso já sabemos, aliás, o
analfabetismo funcional é justo isso – a falta de competência de uso do
conhecimento da decifração e do domínio da escrita alfabética e ortográfica para
compreender e produzir textos, interagindo na cultura escrita. Agora, a leitura
que garante a autonomia em relação à notação alfabética é, sim, sobretudo,
decifrar o escrito. E isso Magda mesma fala, apesar de ser a ela dirigida a
crítica do vídeo, não a outros que, inclusive, dão menos ênfase à decifração do
que ela. Ou seja, essa briga sobre se ler é decifrar ou não, se é decifrar ou
compreender, é contraproducente, pois se fala aí de sentidos diferentes de
leitura. O próprio campo da ciência da leitura conclui essa querela, defendendo,
em geral, um modelo interativo que envolve ambos os processos – ascendentes e
descendentes – ou ao menos boa parte dos autores desse campo. O modelo
interativo de leitura é mais amplamente aceito na comunidade científica do que
o modelo ascendente que Nadalim defende. Novamente, precisamos ressaltar que, nem
com o campo que ele mesmo abraça, ele dialoga bem para fundamentar seus argumentos.
Pelo visto, nem ao menos as obras clássicas da ciência cognitiva da leitura,
perspectiva à qual ele diz se filiar, ele de fato leu. Existem pesquisas, nesse
campo, que indicam a importância tanto dos processos ascendentes quanto
descendentes na aprendizagem da leitura, e que coadunam com a ideia da
importância de ler em busca do significado, em práticas e textos significativos
e reais. Para uma visão mais nuançada e lúcida da perspectiva da ciência da
leitura, ver Snow e Juel (2013). Mas eles silenciam sobre isso, não é? Porque
não interessa abrir brechas para o diálogo, interessa tensionar ao extremo! E
porque? Em nome da ciência é que não é – essa é mais uma falácia!
Nesse campo, encontramos também autores
ponderados, que discutem no nível científico e acadêmico sobre suas
divergências, achados e interpretações diferentes, pois sabem que a ciência tem
também perspectivas – não é ciência exata aqui. E autores que sabem que
pesquisa não se aplica diretamente às práticas pedagógicas, que têm, essas, de
dar conta de exigências diversas, diversos fatores intervenientes. Mas o
problema é que Nadalim se baseia em autores sectários, cujos argumentos são
também carregados de viés ideológico e posicionamentos inflamados. Essas
posições, mais dogmáticas do que propriamente científicas, que criam
estratagemas para fechar o diálogo com outras perspectivas, revelam também o
enorme interesse editorial com investimentos do dinheiro público – ficarão felizes
quando essa concepção basear os documentos oficiais, não é? Só isso consegue
explicar a tomada de um partido tão radical e “cego”, sem ponderações no campo
das teorias, ciências de diversas perspectivas, e diferentes concepções de
alfabetização.
Afinal, não nos esqueçamos, tampouco, que a compreensão leitora, nessa perspectiva, toma a decifração pela via fonológica e a posterior automatização do reconhecimento lexical como elementos fundamentais para a posterior compreensão de textos. Ora, está certo que ao automatizar o processo de ler palavras, o sujeito fica com a atenção liberada para os processos superiores de compreensão. Até aí, tudo bem. Só que os processos de compreensão não decorrem apenas de uma boa decifração ou da leitura automática das palavras do texto, exigem muito mais, exigem processos cognitivos complexos e relação com conhecimentos que vão para além do texto concreto. Assim, aguardar o domínio da leitura, em seu sentido mais restrito, para trabalhar a leitura em seu sentido mais amplo, achando que isso é que vai resolver o problema de alfabetização e letramento (de literacia funcional, eles dizem na PNA) é dar um tiro no pé. Por isso, cuidado com cair na argumentação de que a compreensão leitora não existe antes de ler propriamente, pois as estratégias, procedimentos e comportamentos leitores que contribuem muito na compreensão leitora, quando as crianças tiverem autonomia de leitura lexical, podem e devem ser trabalhadas desde sempre, e não apenas ao já se saber ler. Isso é, de longe, a ideia mais perigosa e ideológica dessa perspectiva: esperar as crianças aprenderem a ler para investir na compreensão de textos. Por isso, insistamos no letramento antes da alfabetização! Nas facetas sociocultural e interativa do letramento, que inclui também os processos leitores e produtores de textos.
Afinal, não nos esqueçamos, tampouco, que a compreensão leitora, nessa perspectiva, toma a decifração pela via fonológica e a posterior automatização do reconhecimento lexical como elementos fundamentais para a posterior compreensão de textos. Ora, está certo que ao automatizar o processo de ler palavras, o sujeito fica com a atenção liberada para os processos superiores de compreensão. Até aí, tudo bem. Só que os processos de compreensão não decorrem apenas de uma boa decifração ou da leitura automática das palavras do texto, exigem muito mais, exigem processos cognitivos complexos e relação com conhecimentos que vão para além do texto concreto. Assim, aguardar o domínio da leitura, em seu sentido mais restrito, para trabalhar a leitura em seu sentido mais amplo, achando que isso é que vai resolver o problema de alfabetização e letramento (de literacia funcional, eles dizem na PNA) é dar um tiro no pé. Por isso, cuidado com cair na argumentação de que a compreensão leitora não existe antes de ler propriamente, pois as estratégias, procedimentos e comportamentos leitores que contribuem muito na compreensão leitora, quando as crianças tiverem autonomia de leitura lexical, podem e devem ser trabalhadas desde sempre, e não apenas ao já se saber ler. Isso é, de longe, a ideia mais perigosa e ideológica dessa perspectiva: esperar as crianças aprenderem a ler para investir na compreensão de textos. Por isso, insistamos no letramento antes da alfabetização! Nas facetas sociocultural e interativa do letramento, que inclui também os processos leitores e produtores de textos.
De todo modo, também quanto a essa história
do reconhecimento das palavras nos textos, a birra de Nadalim, embora ele não saiba, continua sendo com a
didática construtivista, não tanto com a perspectiva do letramento – ah, esqueci que
para ele é tudo a mesma coisa! Mas é Magda, ela mesma, que é atacada e, já que
são ataques destituídos de argumentos sólidos, são ataques “ad hominen”...Aliás...ataques
a uma mulher, não é? Só por isso deve merecer todo esse desrespeito, mesmo
descabido, de quem não se deu nem ao trabalho de estudar suas obras. Ora,
bolas, mas para quem só liga para as tutelas estrangeiras, pra que ler autoras
tupiniquins, não é?
Bom, gente, é certo que essa polêmica sobre
ler ser decifrar ou compreender é vasta, não daria aqui para explorar essa
seara aprofundadamente, e sei também que algumas perspectivas, de fato,
enfatizam apenas o pólo da compreensão – o que para mim, também é equivocado –
assim como a abordagem à qual Nadalim é afiliado enfatiza apenas a decifração. Compreender,
diz ele, é algo para depois, é a finalidade da leitura, não leitura. Mas nem
todos estão situados nesses pólos extremos, como já discutido anteriormente.
Tudo depende do conceito de leitura que se considera.
Nadalim tem outro vídeo em seu canal que
fala, justamente, sobre isso. É um vídeo curto, vale a pena assistir para
continuar a discussão.
Quanto a esse vídeo, ele segue a argumentação
capciosa, polarizando dois componentes da leitura, separando-os, e prioriza
apenas a decifração no processo complexo de leitura.
Afirmar que as crianças só se apropriam da
leitura se for de forma mecânica é uma afirmação irresponsável. Além disso,
diferente dele, não queremos formar apenas leitores hábeis, mas leitores inteligentes,
críticos, sagazes.
Sobre sobrecarga cognitiva – será que sabe
mesmo o que é? Duvido muito. Afinal, dizer que tem experiência nesse ramo: quá
quá quá...é tudo que tenho pra dizer.
Mas vamos comentar, mesmo assim. Entendo que quando se fala que ler é
compreender refere-se a esse sentido
mais amplo de ler, não à capacidade de transformar a notação em sentido, via
reconhecimento das palavras (por via fonológica ou lexical), porque é óbvio que
é possível ler (decifrar) sem compreender (analfabetismo funcional é bem esse
caso), e compreender sem ler (no sentido de decifrar), como no caso de
compreender uma história lida por outro ou qualquer outra situação. Trata-se aí
da leitura como um processo interativo, reflexivo, ativo, em que o leitor não é
mero receptor das informações linguísticas do texto. Trata-se de um leitor ativo
que constrói sentidos na interação com o texto. Ângela Kleiman, Ingedore Koch, Isabel
Solé, e tantos outros autores e autoras já nos deram régua e compasso nesse
departamento aí... É dessa leitura mais ampla, que envolve a compreensão, a
produção de sentidos, o processo inferencial, de que se trata. Ler é
polissêmico! Mas – e isso é que importa sublinhar – também é equivocado dizer
que compreender é apenas a finalidade de ler, porque se fosse assim, bastava
decifrar bem para compreender os textos, e a realidade nos mostra que isso não
é assim, não é? Leitura (decifração) literal não garante a leitura
(compreensão). Há diferentes habilidades envolvidas na leitura, não apenas a
decifração. É esse entendimento que estamos tentando defender diante dos rumos
das propostas do MEC quanto às políticas de alfabetização. E não defender que
ler seja prever o escrito. Essa é mais uma argumentação falaciosa que, repetida
à exaustão, se pretende tornar verdade. Não deixemos! E aliás, essas diversas habilidades
não precisam ser abordadas sequencialmente, uma depois da outra, mas sim
simultaneamente. Até porque, aprender a ler sem pensar no sentido, sem compreensão é muito chato! Subestima-se as
crianças achar que não dão conta e, a língua sem vida torna a aprendizagem mecânica,
sem sentido para elas. Nem sempre o que é bom no âmbito da ciência é bom no âmbito
social e, nesse caso, no âmbito das práticas pedagógicas, que precisam dar
conta de um objeto de conhecimento que é multifacetado. Num país que as
crianças, aliás, não têm garantidas as ricas experiências com o mundo letrado,
é até perverso sentenciá-las a um ensino instrumental (ou é isso mesmo que
querem, né?). Como argumenta Magda Soares (2016) e Isabel Frade (2007), as várias aprendizagens que envolvem a apropriação da leitura e da escrita exigem diferentes metodologias.
Rebatendo outro argumento do vídeo, afirmar,
peremptoriamente, que o convívio com textos não permite que as crianças
construam hipóteses sobre o funcionamento da escrita, que pesquisem
inteligentemente sobre como a escrita funciona, sobre como se lê ou escreve uma
palavra, sobre o que diz um verso, um texto, está baseado em quê? Ele fez
pesquisas quanto a isso? Citou alguma? De novo ele mistura coisas diversas. Uma
coisa é fazer hipóteses sobre o funcionamento da escrita – e muitas pesquisas,
mesmos de perspectivas da psicologia cognitiva da leitura que ele assume,
indicam, assim como outras tantas pesquisas, de outras perspectivas, também
válidas. Outra coisa é fazer hipóteses e predições no reconhecimento de
palavras no texto. Ele parece misturar
isso tudo numa coisa só, alertando quanto ao perigo dessa perspectiva. Perigo de
as crianças refletirem sobre a língua? Perigo de pensarem sobre os textos mesmo
sem saber ler? Perigo de pensarem? É isso?
Bom, mas sei que tudo isso é muito complexo, não
cabe, em um post, entrar em detalhes sobre essas questões. Mas são temas a
estudar, a debater, a trazer para essa discussão, contribuições do campo da ciência
cognitiva da leitura das quais devemos nos apoderar e passar pelo crivo da
interpretação pedagógica. Mas, para quem quiser se aventurar nesse estudo,
sugiro para começar o capítulo do livro de Micotti, de 2012 (minha versão é 2017), com um resumo dessa
questão. Para aprofundar mais, podem consultar o capítulo introdutório do livro "Aprendizagem da leitura e da escrita: o papel das habilidades metalinguísticas", de Sandra Regina Kirchner Guimarães.
Deixo, entretanto, registrado o achatamento –
mais um achatamento – da questão, quando Nadalim silencia, ou melhor, elimina,
outras perspectivas, para colocar de forma impositiva – postura nada científica
– a sua própria posição. O que importa é que o nosso secretário da
alfabetização coloca sua posição unilateral como verdade última e fechada,
enquanto o campo da ciência da leitura – o campo que ele mesmo valida –
diferente desse sectarismo, segue debatendo, pesquisando, ponderando,
divergindo – nem eles fecham questão assim. Ao atribui um caráter incontestável
às pesquisas cognitivas em leitura, silenciando sobre discordâncias nesse
próprio campo, negando cunho científico às perspectivas científicas de outras
linhas, atribuindo-lhes o valor de ideologias, e desconsiderando a necessária
interpretação pedagógica dos resultados de pesquisa (já que na prática, o que
temos que dar conta é de um objeto multifacetado e de realidades não
consideradas), Nadalim – como outros dessa vertente mais sectária – fecha o
debate.
Toda a complexidade do campo se esvai em
fórmulas simplificadas e binárias frequentes em seus vídeos. Ou seja, o que
podemos concluir aí é que seus argumentos de ataque, aparentemente bem
construídos, escondem uma miscelânea de diferentes perspectivas atacadas malandramente
como se fossem uma coisa só e a adesão a uma única perspectiva como se fosse a
única válida no campo científico – o que não é verdade – reduzindo um campo
complexo a um binarismo simplório. Engodo para os pais e para os professores
desavisados.
Se defender o convívio com a cultura letrada
e aprender o sistema no contexto do uso da língua nas práticas de leitura e
escrita, tem aproximações com o que a marcha analítica defendia, confundir isso
com método analítico e com leitura por adivinhação, colocando o letramento como
vilão, é muita má fé. Mas é fato que esse não é um equívoco só dele. Vários
comentadores, que se acham “educadores” de última hora, divulgam suas opiniões
na mídia baseados em premissas equivocadas, tratando da atual querela como se
fosse a velha querela entre método sintético (fônico) X método global,
analítico – que associam ao que há hoje nas políticas de alfabetização. E os
jornalistas que escrevem as matérias, ainda que trazendo as duas visões, ainda
que, por vezes, bem intencionados e mesmo críticos da perspectiva do governo,
partem também dessas premissas equivocadas, que é o modo deles (de Nadalim, de
muitos defensores do método fônico) de colocar a questão (ver aqui, aqui e aqui, exemplos). Quanto a isso, ver também o post
0, com o panorama sobre o campo da alfabetização no Brasil, e as duas
entrevistas que já indiquei, com Magda Soares, a esse propósito, aqui e aqui.
Vamos dar uma pausa para o refrigério, mas
ainda tem mais a analisar nesse vídeo. Na próxima postagem, seguirei apontando
e discutindo sobre equívocos conceituais e afirmações que não se sustentam, mas
em posts mais breves, já que o essencial já foi discutido. Comentarei absurdos
que extrapolam as questões relativas ao processo linguístico de alfabetização,
sobre ideologia, fazendo, também, algumas considerações sobre os argumentos de
Nadalim quanto à formação de professores e o homeschooling. Sim, tem mais...Em breve...
Por ora, lembro que no meu acervo de jogos e materiais há muitas propostas que implicam em reconhecimento de palavras quando ainda não se sabe ler decifrando. Quero lembrar que, embora baseadas em propostas caras à didática construtivista, minha visão sobre elas é de que precisam incluir - nessa pesquisa inteligente que as crianças fazem sobre a escrita das palavras - os aspectos sublexicais de forma menos casual. Ou seja, trata-se de provocar as crianças, explicita e intencionalmente, a considerarem em suas reflexões também os aspectos sonoros: sons iniciais de sílabas ou fonemas salientes, rimas, relação entre as letras e os fonemas vocálicos que, por soarem, e seus nomes coincidirem com seus sons, facilitam a identificação das palavras. Fatiados, lacunados, textos enigmáticos (como os provérbios e Trava-línguas do acervo), as Adivinhas 4 opções ou o Minhas Adivinhas, são kits com essa proposta. Não se trata de contar apenas com a predição, com o que sabem oralmente sobre os textos e com estabelecimentos casuais de relação entre a dimensão sonora e gráfica.
Por ora, lembro que no meu acervo de jogos e materiais há muitas propostas que implicam em reconhecimento de palavras quando ainda não se sabe ler decifrando. Quero lembrar que, embora baseadas em propostas caras à didática construtivista, minha visão sobre elas é de que precisam incluir - nessa pesquisa inteligente que as crianças fazem sobre a escrita das palavras - os aspectos sublexicais de forma menos casual. Ou seja, trata-se de provocar as crianças, explicita e intencionalmente, a considerarem em suas reflexões também os aspectos sonoros: sons iniciais de sílabas ou fonemas salientes, rimas, relação entre as letras e os fonemas vocálicos que, por soarem, e seus nomes coincidirem com seus sons, facilitam a identificação das palavras. Fatiados, lacunados, textos enigmáticos (como os provérbios e Trava-línguas do acervo), as Adivinhas 4 opções ou o Minhas Adivinhas, são kits com essa proposta. Não se trata de contar apenas com a predição, com o que sabem oralmente sobre os textos e com estabelecimentos casuais de relação entre a dimensão sonora e gráfica.
Nota de esclarecimento: a Ciência Cognitiva
da Leitura consiste em um conjunto de pesquisas produzidas em áreas diversas,
tais que a Psicologia Cognitiva, a Neurociência Cognitiva e a Linguística
Cognitiva.