Oi, gente!
A pedidos, resolvi falar um pouquinho sobre livros de literatura na alfabetização. A relação entre literatura e educação e, mais especificamente, entre literatura e alfabetização, é um tema vasto já bastante discutido por diversos autores, aos quais me remeto para ampliar a discussão. Mas vou me limitar aqui a trazer uma discussão sobre os diferentes tipos de livros literários a que podemos recorrer no processo de alfabetização e dar algumas sugestões.
Como escrevi em resposta ao comentário de Ana, os livros apropriados para essa faixa etária são muitos, mas a indicação depende também do nosso propósito. Para serem lidos para as crianças, há uma infinidade de bons títulos de livros de histórias, de contos, mais curtos, mais longos, tradicionais, contemporâneos, mitos, lendas, tudo... que não foram escritos nem destinados especificamente para apoiar o processo de alfabetização. Literatura infantil para o deleite das crianças!
Quando o que está em jogo é a leitura literária, a fruição estética, o letramento literário, o contato com os livros, com histórias diversas, com poemas, as possibilidades são inúmeras. Cabe a nós termos um bom senso para fazer as boas escolhas. Trata-se aí de ir ampliando o repertório das crianças, de apreciar diferentes textos, de formar leitores, de inserir as crianças no mundo do letramento literário. A seleção dos livros, nesse caso, vai depender de muitos fatores, inclusive a faixa etária para o qual está indicado (embora essa história de adequação seja muito relativa...), e também das turmas específicas, seus interesses, suas contingências. Há no mercado editorial livros muito bons, nacionais ou não, mas há também os que não se encaixam nessa exigência de qualidade. Quanto mais conhecemos a literatura infantil, mais vamos firmando critérios para selecionar bons livros para ler para as crianças. Assim, para o letramento, há uma infinidade de livros literários.
Alguns deles, inclusive, favorecem a leitura compartilhada com as crianças, por serem repetitivos, de estrutura simples, como os livros de repetição e acumulação e as histórias rimadas, por exemplo. A leitura do adulto pode ir, aos poucos, tendo a contribuição das crianças em algumas partes. Assim, livros como Bruxa, Bruxa, venha a minha festa, por exemplo, permitem também que as crianças memorizem partes do texto ou a sua estrutura e, pela ilustração, vão lendo do seu jeito, fazendo uma pseudoleitura, atividade leitora super importante para a formação do leitor, desde os bem pequenos. Para ter uma ideia do que eu digo, sugiro que vejam isso aqui.
Convém destacar também os livros de literatura que permitem uma espécie de leitura autônoma das crianças que ainda não sabem ler, por trazerem poucas palavras, que elas aprendem rapidamente a reconhecer e memorizam o texto. Basta citar uma coleção fantástica nesse sentido, da Brinque Book. São três livros de Jez Albourough, que trazem as aventuras do macaquinho Zezé: Alto, Sim e Abraço. Livros muito bacaninhas e que Joaquim, meu filho, lê sozinho, mostrando as figuras, fazendo as entonações de leitura, experimentando os comportamentos e procedimentos leitores que observa nos adultos que leem para ele - aspectos fundamentais da formação do leitor!
Se o que se tem em mente, entretanto, são livros que também favoreçam o trabalho com os aspectos relacionados ao sistema de escrita, aí temos ao menos três possibilidades.
Em primeiro lugar, temos os livros em geral - esses referidos acima, não específicos para dar esse suporte à alfabetização - mas que podem possibilitar a proposição de atividades de apropriação inicial da leitura e escrita, como no caso das Caixinhas de Livros que sugiro aqui no blog. Trata-se aí de poder explorar os textos também em termos de suas construções linguísticas. A ideia, nesse caso, é justamente poder estruturar atividades e materiais a partir de livros diversos, que podem ser lidos para as crianças e, depois, ter alguns de seus elementos destacados para favorecer a reflexão sobre a linguagem. Sempre, é lógico - como ressalto nos posts das Caixinhas - sem empobrecer a leitura, sem tornar o texto mero pretexto para isso, sem esvaziar a apreciação mais ampla da obra. Mas, é fato, para falar de literatura e alfabetização - no sentido mais específico de aprender a ler e escrever - é preciso tomar os textos também como objetos de reflexão sobre a linguagem: suas palavras, seus jogos de palavras, seu título, seus enunciados, e explorar diversos aspectos, como o reconhecimento de palavras por diversas estratégias, a comparação e observação da escrita de algumas palavras - suas partes menores, como sílabas, letras, partes maiores e menores que as sílabas, seus sons... Reflexão no contexto significativo do texto literário. Como nas atividades propostas nas Caixinhas de Livros.
Em segundo lugar, numa outra possibilidade, temos os livros que, em si mesmos, trazem jogos de linguagem, que não são escritos ou destinados de modo deliberado para a alfabetização, mas que, por sua natureza poética e lúdica, são de uma riqueza enorme nesse sentido. Por vezes, no entanto, nesse tipo de livro, a intenção pedagógica anda lado a lado com a literária. Nesse caso, os livros podem trazer ou não referências explícitas à presença de princípios linguísticos e fonológicos apropriados à aquisição do sistema alfabético-ortográfico, que fundamentam a alfabetização. Num caso ou no outro, tendo mais ou menos intenção de apoiar a reflexão sobre a língua, eles trazem esse caráter de jogo com a linguagem, com as palavras, de brincadeira com os sons da língua, mas sempre priorizando a função poética e lúdica da linguagem. Isso, no entanto, por si só, os tornam muito apropriados para a alfabetização, já que esta implica em prestar atenção aos sons da língua e às relações entre pauta sonora e gráfica. A matéria da poesia - os jogos sonoros, como rimas, aliterações, assonâncias, as repetições, a versificação, o ritmo etc - são também aspectos fundamentais e riquíssimos no processo de alfabetização.
Entram nesse item os livros que favorecem a reflexão fonológica, como a brincadeira com rimas, aliterações, assonâncias, sons silábicos e fonêmicos, e que ajudam no estabelecimento de relação entre os sons e a grafia. E a poesia oral e literária é rica nesses elementos. Entram aí, então, os livros com textos da tradição oral e diversos livros clássicos ou contemporâneos de poesia para crianças, como a Arca de Noé, de Vinicius de Moraes, Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles, Poemas para Brincar e Lé com Cré, ambos de José Paulo Paes, 111 poemas, de Sérgio Caparelli, dentre outros desse autor, O menino Poeta, de Henriqueta Lisboa, e outros tantos mais...
Podemos inserir aqui também os livros de alfabeto já indicados no post sobre esse tema, que por vezes podem trazer uma indicação explícita de sua intenção como suporte à alfabetização, mas sua natureza poética é mais preeminente do que sua natureza pedagógica. O post sobre os abecedários poéticos está aqui e o do Arquivo Alfabético, aqui, já material estruturado a partir desses livros.
O AEIOU, de Ângela Lago e Zoé Rios, mostra que apenas substituindo uma letra/um fonema pela(o) outra(o) é possível criar palavras totalmente novas. Como nos jogos de pares mínimos sobre os quais falei aqui.
Além das transformações linguísticas interessantes, a ilustração também é rica, lúdica e sugestiva.
Nessa categoria, entram também os livros maravilhosos de Eva Furnari, poéticos e lúdicos, especialmente provocadores da observação das rimas e outros jogos sonoros e fonográficos, num contexto delicioso de brincadeira: Assim Assado, Você Troca?, Travadinhas e Não Confunda são fantásticos jogos de rima e risadas! Aliás, o Não confunda já virou um material que fiz, mas ainda não terminei... E do Travadinhas Ana Antunes fez um material também, postado aqui no blog.
Muitos de Ciça entram aí também: O livro dos trava-línguas, Quebra-língua, Travatrovas, O livro do enrola língua, O livro do nó na língua, Trava trela, dentre outros...

O
Enrosca ou Desenrosca e o Salada, Saladinha, ambos de Maria José Nóbrega e Rosane Pamplona, dentre outros desta mesma coleção, também permitem muitos jogos com os textos da tradição oral.
Tem também um livro bacana, de Ilan Brenman e Fê, O livro da Com-fusão, que se usa justamente da confusão e com fusão de palavras, que juntas, formam outras: galinha + onça = galonça. Mil possibilidades de brincar!
Futuramente vou fazer um post sobre os bichos malucos com sugestões de livros que misturam bichos com outros, numa brincadeira com e sobre a linguagem, já altamente reflexiva sobre as palavras, sua decomposição e recomposição. (Ops, um tempão depois, já fiz, veja aqui). Esse tipo de livro certamente se encaixa também nessa categoria.
Bom, esses são apenas alguns...mas acho que já dá para começo de conversa, né?
Em terceiro lugar, numa terceira categoria, temos os livros deliberadamente produzidos e direcionados para crianças em fase de alfabetização. Esses são escritos e destinados especificamente para apoiar essa fase de apropriação do sistema de escrita e para a leitura autônoma inicial das crianças, embora guardem sua natureza literária e sejam , no geral, escritos por escritores renomados da literatura infantil. São, geralmente considerados apropriados para esse momento inicial por apresentarem certa gradação no nível de dificuldade de decodificação e reconhecimento de palavras e, por vezes - por isso ser atualmente valorizado na alfabetização atualmente - apresentarem o texto em letra de imprensa maiúscula (o que podemos discutir...). Esses devem ser escolhidos com mais critério.
Afinal, apesar de sua função de suporte à alfabetização, não devem perder seu interesse estético, sua natureza de obra literária, seja narrativa ou poética. Afinal, trata-se, antes de tudo, de formação do leitor. A apropriação do sistema é, em última instância, a conquista da autonomia do leitor, que deve ser formado para a leitura no sentido mais amplo, não apenas para a decodificação. Aliás, para além disso, como nos lembra Magda Soares, ao lado da função pedagógica, de formação do leitor, a literatura infantil relaciona-se também à arte.
Assim, vale à pena termos algumas indicações de livros infantis interessantes destinados à leitura autônoma do leitor inicial.
Quatro coleções são bem representativas dessa categoria: A Coleção Estrelinha, de Sônia Junqueira, A Coleção Gato e Rato, de Mary e Eliardo França e a Série Mico Maneco, de Ana Maria Machado, e a coleção Eu sei de cor, de Bartolomeu Campos de Queirós.
A Coleção Estrelinha compõem-se de 3 fases no domínio da leitura - Estrelinha I, II e III. E para cada fase, 6 livros.
A Série Mico Maneco também apresenta diferentes fases, com alguns livros em cada uma. Ana Maria Machado diz que a origem dessa coleção foi o desejo de ter livros para ensinar seu filho a ler e escrever quando eles moravam fora do Brasil. Após escrever esses livros para apoiar a alfabetização, ela chamou uma especialista na área para fazer uma análise da coleção em termos desse apoio ao aprendizado da língua escrita. É uma origem interessante que mistura a escritora com a mãe e, de certo modo, educadora.
A Coleção Gato e Rato, por sua vez, foi se enriquecendo ano a ano, é bem dinâmica, e conta, hoje, com cerca de 35 livros ao todo.
A coleção Eu sei de cor, de Bartolomeu Campos de Queirós, traz indicação de apoio à alfabetização, aliás, até mesmo no título da coleção, que sugere a leitura de textos que se sabe de cor, quando ainda não se sabe ler autonomamente. Os livros trazem muitos jogos de palavras, especialmente os pares mínimos (pato/gato/mato) e rimas.
Essa coleção compõem-se apenas de quatro livros: O Pato pacato, O guarda-chuva do guarda, Formiga amiga, De letra em letra.
Esses livros surgiram a partir da década de 70 para dar suporte à alfabetização e, até hoje, são usados por muitas escolas. Continham, desde a sua publicação, indicações explícitas quanto à função de apoio à alfabetização. Hoje podem até dispensar essa indicação, mas já há um espaço para eles na estante das crianças, seja para serem lidos para elas ou para sua leitura autônoma, cada vez mais fluente. Como nos lembra Magda Soares, eles surgem numa época que os textos das cartilhas e dos chamados pré-livros - textos artificiais para aprender a ler - estavam sendo questionados e criticados. E, assim, mesmo tendo o cuidado de graduarem as dificuldades apresentadas ao leitor inicial, não reduzem o repertório de palavras do texto a ponto de se tornarem pobres em coesão, coerência e qualidade literária, como a maioria dos textos cartilhados.
Os autores de literatura produziram esses livros que ensinam a ler cuidando da qualidade literária, mas que favorecem, ao mesmo tempo, tanto a aprendizagem do sistema quanto um nível de autonomia de leitura por leitores iniciantes. Isso devido à certa gradação nas dificuldades quanto às estruturas silábicas, devido aos textos serem curtos, apresentando rimas e repetições, vocabulário familiar, humor e graça. Magda chama a atenção, no entanto, de que embora cuidem das dificuldades que apresentam quanto ao sistema alfabético e as restrições ortográficas, não há neles a proposição de uma sequenciação rígida em termos do simples ao complexo, como nas cartilhas, que fazendo-o, muitas vezes comprometem a coerência dos textos, a graça, a riqueza da língua. Assim, ainda que sem essa gradação super controlada (e quem precisa dela?), essas coleções se organizam para acompanharem o leitor em seu gradual domínio da leitura, sem descaracterizar a natureza literária dos livros. Assim, aprendizagem sistemática do sistema de escrita e a possibilidade de leitura autonôma desde cedo se dá em contexto de uso da linguagem, em situações reais e prazerosas de leitura.
Hoje, no entanto, dispomos de muitas outras possibilidades, como as tantas sugeridas aqui. Variar, diversificar, desafiar, esses devem ser verbos sempre presentes no momento de escolhermos livros para as crianças em fase de alfabetização.
É isso, minha gente...
Reparem que muitos desses livros - sejam os livros em geral, os de suporte à alfabetização ou os que sugerem brincar com a linguagem - aparecem em alguns catálogos de editoras com indicações do tipo: livros para leitores iniciantes, livros para leitores em processo e livros para o leitores fluentes. essa classificação até nos ajudar a selecionar os títulos, isso considerando, no entanto, os nossos propósitos. Nada impede que um bom livro para iniciantes agrade aos que já dominam a leitura ou que os destinados a leitores fluentes possam ser lidos para os pequenos. Além disso, alguns são indicados para a leitura autônoma de certa idade, mas pode ser lido para crianças menores. Essa classificação, em se tratando de literatura, não é - nem poderia ser - rígida e inflexível. Assim, é apenas um critério de seleção, ao que cada um deve juntar os seus próprios critérios - como o conhecimento das crianças, do tipo de livro que gostam, do contexto da leitura, enfim, uma série de aspectos, polvilhado sempre com o bom senso que, quanto mais conhecemos a literatura e as crianças, mais aprendemos a ter.
Além de todos esses tipos de livros, temos ainda os livros de imagem, sem texto, que apesar de não trazerem a linguagem escrita, propõem, de qualquer modo um tipo de leitura especial, a leitura de imagens. E, muitos deles, inclusive, uma leitura das imagens encadeadas, narrativizadas, que contam, de toda sorte, uma história, e que evocam, de algum modo, a linguagem verbal. Mas deixemos esses por ora de lado. Mas só por ora.
Destaco, no entanto, aqueles de tirinhas que contam a história em alguns quadros, como os de Eva Furnari, da bruxinha, quase uma história em quadrinho.
Gosto particularmente do O amigo da bruxinha, com histórias de seis quadros ao menos, como podem ver ao lado (a história ainda continua...). Ele é bom para "ler", inventar a história com suas palavras, escrevê-la do seu jeito e - se virar material, como o ilustrado abaixo - para ordenar as tiras antes de contar. Ótimo trabalho com a estrutura da narrativa e a produção oral ou escrita de textos!
Termino dizendo que em termos de literatura na escola, tudo depende da situação, do nosso propósito e do que queremos propor às crianças. Mas que literatura sempre é, antes de tudo, para dar prazer, se emocionar, apreciar, ampliar as experiências com a linguagem e a cultura.
É isso gente, por ora...
Lica
Fonte de pesquisa e citação: SOARES, Magda. Alfabetização e literatura. In: REVISTA EDUCAÇÃO: guia da alfabetização. Escrita e leitura: como tornar o ensino significativo. São Paulo: Segmento, CEALE, 2010. n. 2, 90 p. Edição especial.