sexta-feira, 23 de abril de 2021

GraphoGame: uma análise crítica - Parte 2

PARTE 2 - SÍLABAS

Ver Parte 1 - Fonemas, que antecede essa postagem.

Essa postagem segue a anterior, agora analisando as sequências do Graphogame que abordam sílabas. A sílaba, veremos, é uma unidade fonológica importante na alfabetização em língua portuguesa, mas, ao que parece, no GraphoGame, essas são tratadas apenas como um degrau para a síntese de fonemas, uma reorganização dos fonemas em unidades maiores, seguindo a estrutura do sistema e não o processo de aprendizagem, o pensamento da criança, e as próprias características da língua. Por isso começo discutindo sobre essa questão, antes de analisar o game. 

As sílabas e o processo de alfabetização

Se sairmos do ponto de vista do fonema como ponto de partida, as sílabas são mais do que um degrau de reorganização dos fonemas. Embora a unidade que estrutura o sistema seja o fonema, as SÍLABAS são as menores unidades de emissão sonora, passíveis de serem pronunciadas isoladamente. Ou seja, as sílabas escritas têm unidades de emissão sonora correspondentes, observáveis no fluxo da fala. Tanto que as crianças associam um grafema a uma emissão silábica (como Emilia Ferreiro e Ana Teberosky encontraram em suas pesquisas) e, só aos poucos, começam a observar que ela (em geral) é formada por unidades acústicas e articulatórias menores, que são esses fones (que, no sistema, são representados pelos fonemas) ou, ao menos, a conseguir grafá-los. Isso acontece justamente porque a sílaba é a menor unidade de emissão sonora (a fala é co-articulada, os fones consonantais são pronunciados junto com as vogais, que soam. Eles soam com as vogais - são con-sontes). 

Assim, a segmentação de palavras em sílabas não é uma segmentação artificial da língua, a fala é segmentável em emissões silábicas facilmente, tanto que as crianças aprendem cedo a fazê-lo oralmente, conscientemente, muitas vezes sem ensino explícito. Bem pequenas já segmentam palavras em sílabas orais: ma-ca-co. Aliás, essas segmentações são observadas e realizadas até mesmo brincando com a oralidade lúdica, com os textos poético-musicais tradicionais da infância: “u-ni-du-ni-tê, sa-la-mê, min-guê”... “Lá vai a bo-la a gi-rar na ro-da...”, ou “chi-co-tinho-quei-ma-do, va-le-dois-cru-za-dos...” São geralmente segmentações de sílabas poéticas, no próprio fluxo prosódico do texto recitado ou cantado. Em vários de seus textos, Claudemir Belintane diz que essas possibilidades brincantes já tornam a língua altamente alfabetizável. E em contexto de práticas orais lúdicas e letradas! Em um nível ainda incipiente, vai se desenvolvendo essa sensibilidade fonológica no contexto dessas brincadeiras, que, depois, claro, podem ser retomadas metalinguisticamente para refletir de forma deliberada e explícita sobre essas unidades sonoras - e melhor, na continuidade de práticas brincantes! Tanto a cultura lúdica como a literatura infantil ofertam contextos riquíssimos de jogos de palavras em que diversas unidades linguísticas são recortadas e enfatizadas, podendo se tornar observáveis, para além da sensibilidade implícita: sílabas, rimas, segmentos morfológicos, aliterações etc. Que desperdício seria/é não lançar mão disso para refletir sobre a língua! 

Quer ver mais sobre essa importância da sílaba? Quando a criança consegue observar que FORMIGA é maior do que GATO - as palavras pronunciadas, não os animais - ela está prestando atenção ao significante sonoro das palavras, não a seu sentido semântico (o animal gato é maior do que a formiga). Poder prestar atenção ao significante sonoro e gráfico e não ao significado é ESSENCIAL para a alfabetização. A criança que consegue comparar as palavras pelo tamanho (que tem a ver com a quantidade de unidades de emissão sonora) supera o chamado realismo nominal, e já não avalia a língua pelas propriedades físicas dos objetos que representam. Essa é uma fase importante no processo de reflexão sobre a língua, revelando também os conhecimentos que vão construindo sobre a natureza notacional e arbitrária da escrita. No caso do significante sonoro, na oralidade, passam a poder analisar as palavras pronunciadas em termos de sua segmentação silábica - FOR-MI-GA e GA-TO - para julgar que palavra é maior, independentemente do sentido semântico, do tamanho dos animais, objetos ou o que seja que essas palavras representem e signifiquem. Essa é a mágica de um sistema de representação arbitrário! 

E como nossa língua é muito silábica - essa emissão é muito natural - e como, a despeito das diversos padrões silábicos existentes, o português tem estrutura silábica simples, essa unidade é muito pregnante para as crianças pensarem sobre a língua escrita. Da mesma forma que segmentos morfológicos são muito importantes em outras línguas, como o francês. No português, como em outras muitas línguas, a segmentação silábica é muito menos abstrata para a criança do que o fonema e, portanto, poder observá-las antes dessas unidades menores, para então, poder analisar esse todo em pedacinhos ainda menores, é muito mais condizente com o que a criança pode, de fato, aprender antes de compreender o funcionamento alfabético. Isso não é muito mais valioso do que aprender unidades fonêmicas, artificiais, isoladamente, para, só depois, entender para que serve esse treinamento, e só depois associá-lo a itens lexicais? De fato, a análise da língua em fonemas só se apresenta como necessidade a partir da apropriação da escrita alfabética. Mas argumentar que, justamente porque o fonema é artificial, seu ensino precisa sê-lo, me parece desonestidade intelectual. Pensar (PENSAR!) sobre a escrita indagando sobre seu funcionamento, implica em considerar, de toda sorte, a segmentação silábica. 

As sílabas dão pistas sobre os fonemas, inclusive! No contexto da sílaba as crianças vão observando que tem coisinhas menores ali. Lembro-me tanto de meu filho com 5 anos dizendo: “Ô, mãe, em ZI (de Ziraldo, que lia a seu modo) e ZE (de Zé, apelido de seu pai), tem uma coisinha parecida e uma coisinha diferente!”. Pois é...a coisinha diferente é o fone /z/, que ele logo entendeu que era o que a letra Z fazia nessas palavras, ao comparar a grafia de ambas. Agrupados em sílabas, no contexto das palavras, é possível vislumbrar o fone como realização acústica e articulatória menor, desenvolvendo a consciência fonêmica, bem como vislumbrar o fonema como unidade distintiva. Fonemas, como discutimos no primeiro post, o são em oposição a outros fonemas, assim, analisá-los em oposição em sílabas de diferentes palavras RATO-GATO-PATO-MATO (como o próprio Graphogame, ao que parece, propõe mais adiante, ao menos na versão de outras línguas) faz mais sentido do que fonema/fones isolados, como o game propõe. Analisar a invariância do fonema em sílabas diferentes iniciadas com o mesmo fonema também é produtivo: RUTE, RITA, RAFAEL, ROBERTO, REGINA... Observar essas aliterações ajuda a entender que entre RA e RU, por exemplo, tem algo diferente e algo parecido. Como o ZI e ZE de meu Joaquim! Apoiadas nas vogais que soam, as crianças podem perceber observar esse /R/ aí. Essas são operações de consciência fonêmica em contexto de palavras, em que a sílaba dá pistas sobre os fones/fonemas, chegando-se a essas unidades que estruturam o sistema de modo muito mais natural, menos artificial, e condizente com o pensamento e a aprendizagem da criança. Aliás, o contexto da palavra, justamente, também favorece a não confusão entre fone e fonema, instalada no GG. Qual o mistério em ver que isso é muito melhor do ponto de vista da criança que aprende? Consciência fonêmica não é, necessariamente, sintetizar e segmentar palavras em fonemas e muitíssimo menos tratá-los de forma isolada e associados aos grafemas, de forma meio torta como o “GG Brasil” faz. Essas são algumas das habilidades, mas tem outras, como essas que citei, de reconhecer e poder produzir duas palavras com mesmo fonema inicial ou palavras que mudam pela troca de um fonema inicial: RATO/GATO. Tudo isso leva à consciência fonêmica, e no contexto das palavras! Tudo isso leva à compreensão do princípio alfabético - isso sim necessário à alfabetização. Tudo isso pode ser alcançado considerando as explorações infantis sobre a notação da língua e sua base fonológica! O próprio José Morais refere às escritas espontâneas das crianças, nas quais exploram alguns pares de relações letra-fone que vão conhecendo, constituindo-se essas explorações em “pesquisas fônicas” (A Arte de ler, 1996, 273). Reconhece que mesmo imprecisas, são importantes para compreenderem a relação entre as formas escritas e as formas faladas das palavras. E se o autor refere a explorações de pares letra-fones, sabemos que as crianças, nessas explorações também prestam atenção à segmentação silábica. E fazem isso seja atribuindo uma letra para representar a sílaba inteira - como interpreta Ferreiro e Teberosky -, seja tentando dar conta, ainda imprecisamente, dos sonzinhos menores que observam na formação das sílabas - como interpretam algumas pesquisas e correntes da ciência cognitiva. O importante é que fazem, refletindo sobre a língua e sua emissão sonora.

Percebe como a unidade sílaba é importante na alfabetização? Percebe que argumento sobre isso porque ela é uma unidade mal compreendida, seja porque é o fonema que estrutura o sistema alfabético, seja devido a sua fama numa abordagem associacionista, nos ditos métodos silábicos ou mistos, especialmente nos que propõem atividades de ba-be-bi-bo-bu, muito mecânicas? Percebem que argumento sobre a importância da unidade sílaba de forma mais contundente, e não defendendo nenhum método silábico sintético nem o famoso ba-be-bi-bo-bu (a que se chegava por via sintética ou analítica)? Digo tudo isso porque a sílaba é uma unidade MUITO importante no português, mas ela aparece no método fônico sintético sobretudo como uma etapa da síntese de fonemas, como o reagrupamento de fonemas, um degrau até chegar à síntese em uma palavra completa. Pois eu defendo que a sílaba é uma unidade ANTERIOR ao fonema, se seguirmos tanto a emissão sonora da língua quanto o pensamento das crianças. A segmentação e síntese fonêmica, no início do processo, são procedimentos MUITO artificiais! E partir de fonemas isolados mais ainda! 

Não seria mais natural, numa língua tão silábica como a nossa, chegar ao fonema pela sílaba? E por sílabas contextualizadas em  palavras? Mesmo com foco na consciência fonêmica e instrução fônica, esse não seria um caminho mais natural, do ponto de vista da aprendizagem? Há quem defenda o phonics, mas em estratégias analíticas, em perspectivas menos artificias de abordagem da dimensão sonora da língua, sem segmentar palavras em constituintes sem realidade sonora no fluxo da fala (pronunciamos ma-la, não /m/ /a/ /l/ /a/). Mas parece que eles têm que dificultar e, no âmbito dessa concepção de alfabetização, escolher o pior dos caminhos. O raciocínio é: se os fonemas são abstratos demais, precisamos ensiná-los, treiná-los, massacrar as crianças até que entre a ferro e fogo! Começar por eles! Começar pelo mais abstrato!  Garantir para o futuro. Argumentam, por vezes, que resultados de pesquisa, evidências científicas, revelam a superioridade de procedimentos sintéticos. Mas nem todos os autores da ciência cognitiva da leitura defendem isso. Muitos não o fazem. E de todo modo, será mesmo que resultados de pesquisa que, porventura, indiquem a eficácia de treinamento fônico sintético, descontextualizado, bem mecânico, são os únicos dados relevantes para, na ação educativa, justificar tal distorção da língua e tal assalto ao caminho do pensamento das crianças ao tentar compreender nosso sistema de escrita e sua base sonora? Pois eu pergunto: se focarmos e considerarmos apenas o que FUNCIONA (e funciona em que sentido? Para quem? A preço de quê? O que é funcionar?), podemos estar perdendo o que verdadeiramente IMPORTA, em termos de apropriação da língua e da linguagem escrita. Resultados de pesquisa em áreas externas à Pedagogia, precisam de interpretação pedagógica! Levando para o absurdo, se pesquisas mostrarem que a violência social diminui se cada ser humano matar outro uma vez na vida, vamos adotar esse sistema de controle? Reparem que não estou defendendo métodos tradicionais analíticos, nem silábicos - as operações de análise e síntese são operações mentais, não processos de um ou outro método (eles enfatizam mais ou menos uma dessas operações, mas não donos delas - são operações cognitivas e linguísticas), as unidades sílaba, fonema, palavra etc, tampouco são propriedade desse ou daquele método - são unidades da língua! Não estou defendendo nenhum método tradicional, nem sendo conivente com a perspectiva fônica. Estou tentando analisar “por dentro” da perspectiva que eles trazem, me apoiando nos seus próprios referenciais e argumentos, e não apenas argumentando “de fora”, do ponto de vista de outra concepção de alfabetização. Teríamos outros tantos argumentos aí... 

Vamos ao Game 

Mas, dito tudo isso, vamos à análise do GraphoGame em si mesmo. Como o aplicativo envolve o método de marcha sintética, na fase que introduz as sílabas, segue com a junção entre esses sons/letras que vinha apresentando nas fases anteriores, para formar sílabas. 

As tarefas iniciais incluem parear dois segmento áudio (dois fones isolados) e sua representação visual (grafema) para formar uma sílaba, iniciando com a estrutura canônica CV e seguindo, meio rapidamente, por incrível que pareça, para padrões silábicos mais complexos. E sem explorar generalizações nas sílabas simples. Incluem também colocar as letras da sílaba ouvida na ordem; e  acertar o modelo dado da junção de fonema+fonema=sílaba, reconhecendo-a dentre outras sílabas. Primeiro é dado um modelo, com alguns sons/letras e depois apresenta as tarefas para o jogador realizar, sempre repetindo esse modelo: encontrar dentre as representações visuais aquela que corresponde ao som ouvido, emitido fonema a fonema ou a sílaba completa. Há essa variação nas tarefas, mas sempre no modelo estímulo-resposta. 

O feedback, como nas fases anteriores, é imediato, quando o jogador acerta ou erra a tarefa. No decorrer das sequências, mais opções são dadas como alternativas, para dificultar a tarefa de apontar a sílaba ouvida, mas sempre aquelas já mapeadas, já bem treinadas. A dificuldade que vai sendo introduzida é em termos da quantidade de opções dadas para encontrar a sílaba alvo, como no segundo vídeo abaixo. 



No cômputo final, nessa fase inicial das sílabas fica ainda mais observável que os procedimentos do aplicativo não apostam em  operações de generalização e abstração, em reflexão sobre a estrutura da língua. Além do que já discutimos sobre não tratarem a sílaba como uma unidade de emissão sonora importante, e de serem sílabas também soltas, sem as palavras.  

Os procedimentos não parecem fundamentar-se nos resultados da própria ciência cognitiva da leitura, que indicam que, ao aprender habilidades fônicas as crianças generalizam este conhecimento para a leitura de palavras novas (no caso aqui, para sílabas novas), pois vão entendendo o princípio geral. Ou seja trata-se de cognição, e ainda mais metacognição, que passam longe dessas propostas de treino. Não há, em geral, procedimentos de dar a formação de algumas sílabas, e pedir outras junções não fornecidas de antemão, para que se possa generalizar o funcionamento. Por exemplo: dar /p/ com /a/ = PA e /t/ com /o/ = TO, e pedir /p/ com /o/ e /t/ com /a/, para formar PO e TA. O básico da generalização, ausente!!! Abstração não é visada. Só treino repetitivo, só memorização individual de cada formação silábica, e repetição. E são os próprios pesquisadores da ciência cognitiva da leitura - ciência na qual a PNA diz se fundamentar - que argumentam sobre a generalização e abstração, indicando a não necessidade de mapear todas as relações fonema-grafema possíveis nem todas as suas combinações em sílabas. Pesquisas dessa corrente mostram como as crianças chegam ao princípio alfabético e às correspondências fonema-grafema muito antes desse mapeamento exaustivo - e mais, revelam também que podem chegar a isso por muitos outros métodos!!! Ainda que defendam a suposta superioridade do método fônico, mostram que não é o único possível! Uma atenção ao phonics, sim, metódo fônico, não necessariamente. Não são sinônimos, como aqui querem fazer parecer que são. Então, não, não é necessário passar por essas fases todas, tão enfadonhas, sem resquícios de pensamento ou de linguagem, para se alfabetizar. Não, não é necessário que sejam procedimentos fora do contexto das palavras. Nem motivação podemos assegurar aí - e olha que a ciência cognitiva também refere ao papel da motivação nesse processo todo! Então, não, esses procedimentos não se associam, em si mesmos, por serem vestidos de game, a práticas culturais lúdicas e atividade significativa, como alardeiam ao propagandear o GG. É uma gamificação muito mal feita do objeto de conhecimento, isso sim! Nem a forma como a “interatividade” do game é projetada, nem o interesse das crianças em aprender a ler e escrever podem garantir interação lúdica e significativa nisso aí. Voltaremos a essa discussão quando terminarmos a análise do GG do ponto de vista linguístico. 

Sílabas complexas

Assim como os dígrafos na fase dos fonemas, nas fases das sílabas também há um foco em aspectos que só se colocam como questão mais adiante nas aprendizagens das crianças, especialmente quando da conquista da escrita ortográfica. Como o caso do treino dos sons de QUE, QUI, QUA, GUE, GUI em oposição a GE, GI, CE, CI, CA. Como argumentei lá na parte dos dígrafos, isso, para crianças pequenas de 4 e 5 anos, não faz o menor sentido, e não contribui em nada com a apropriação da natureza fonológica da escrita e seu funcionamento alfabético - isso sim aprendizagens anteriores a essas particularidades da ortografia. Trata-se de convenções ortográficas necessárias para escrever ortograficamente, mas não para compreender, inicialmente, o funcionamento alfabético do sistema. Ou seja, adiantam questões que não são para a alfabetização inicial, misturando o que é necessário para aprender o princípio alfabético, e poder ler palavras, grafar alfabeticamente, e o que é necessário, posteriormente, para a fluência de leitura e para escrever ortograficamente. Acho um absurdo! 


E depois as fases continuam com as ditas sílabas complexas: abs, obs, ins, mir, can, cons, dins, lor, sans, mens, tom, vim, per, guin, prin, pons...e por aí vai! Gente, uma monte de síntese de fonemas em sílabas inclusive bem raras em palavras do universo das crianças, e na própria língua portuguesa: mirtilo, sânscrito, menstruação, tombador, constituição, lorde???? Não pensaram nisso? Certamente sim, mas será que se fiam na ideia de que memorizar esses segmentos vai ajudar a fixar na memória correspondências de segmentos maiores que, supostamente, apoiarão a leitura automática de palavras. No futuro? Ao preço da linguagem? Os próprios pesquisadores da ciência cognitiva ressaltam a importância do amálgama grafia-pronúncia e significado dos itens lexicais (palavras), para que o nosso poderoso sistema mnemônico armazene grafias para nosso reconhecimento automático, lexical das palavras na leitura fluente. Nas palavras de Ehri (2013b, p. 57), “as conexões entre grafias, pronúncias e significados são armazenadas como amálgamas representando palavras individuais na memória.” Esse processo,  ainda um tanto misterioso, mas que passa pelo processamento fonológico, conta com diferentes modelos explicativos no âmbito da própria ciência cognitiva - como a teoria de Ehri e a teoria da dupla rota de leitura de palavras. O certo é que o significado das palavras, as representações ortográficas - ou seja, a presença das palavras - é importante nesse processo todo. Pesquisas cognitivas apontam, igualmente, que unidades maiores como morfemas e sílabas podem ter também um papel importante, para além da exclusividade da relação mais miudinha entre fonema e grafema. E o GG - essa versão do GG -  foca apenas na memorização de fones e sequência de fones relacionados à grafia, seja lá a que custo! Se o sistema reagrupa os segmentos fonêmicos em sílabas e morfemas que, a depender da língua têm um papel fundamental na possibilidade de leitura e escrita das palavras, nesse game, a própria escolha das sílabas - muitas delas tão pouco frequentes na língua - parece revelar ainda mais que o aplicativo elege apenas esse aspecto fonêmico, apagando outros, a ponto de não importar muito a natureza das sílabas abordadas. Copiaram sílabas de outra língua? Será? Não me espantaria.

Será que são palavras muito familiares das crianças para ter tanto treinamento prévio dessas combinações? Procurei na memória do nosso léxico e encontrei palavras difíceis...ou não encontrei. A sílaba “pons” faz que palavras mesmo? Nem sei se existe essa sílaba em português, mas desafio quem achar uma palavra, que me responda se é parte do léxico das crianças!!! Pois tem pons lá! Só achei pons no plural de pompom e na sílaba inicial de um medicamento ... Para mim, é francês! Ainda se fosse PON, de ponte, ponta, pontapé!!! Mas para quem foca instrução fônica sintética, até pseudopalavra e "pseudo sílaba" serve, né?  

Para que essas combinações de padrões silábicos tão distantes das apropriações da alfabetização inicial, gente? Tão distantes da linguagem real!!! Vira uma mera cantilena que vai distanciando as crianças  dos sons reconhecíveis de sua língua, das palavras, da linguagem, em vez de aproximá-las. É só pseudo sílaba para treino de síntese fonêmica!!!! Depois, treinam a leitura completa das sílabas - quer dizer, dessas sequências de letras/sons que “ai de quem diga” que as crianças estão entendendo que são pedaços de palavras. Não há palavras - só as que eventualmente as próprias crianças, inteligentes que são, possam associar a esses sons. Mas pons? Mir? Cons? Blas? E mesmo guin - o que é um “guin” sem o guincho, o guindaste? E sendo assim, cadê atividade significativa?  Só porque por vezes é um sapo que acerta a flor ou um canhão que acerta um balão com essas sequências esquisitas de sons? Complicado! Aliás, a interatividade projetada do game não tem nada a ver com o conteúdo do jogo, em si. Mera distração para maquiar o fato que, se olhar bem, só tem treino maçante. 

Isso sem contar nos absurdos, seja porque fica estranho as sílabas soltas das palavras, seja porque não consideram a variação linguística, seja porque as combinações podem aparecer em contextos que não são sílabas. 


Me diga aí se O com R dá, necessariamente o som /or/ com o R bem tremido como em variantes sulistas? Me diga se A com M (que também podem estar em sequências que não formam, sozinhas, uma sílaba) dá /ã/ necessariamente, se consideramos as palavras? O som de AM em CAM de CAMARÃO por exemplo, é sempre /ã/? Na Bahia falamos mesmo /kã/ na sílaba inicial, mas em outras variedades se diz /ka/, sem nasalizar o A. Mas aí você pode dizer, se trata apenas de AM numa mesma sílaba, como em AMBOS, AMPARO (ou ANTA, com o N), ou CAM-PO, CAN-TO. Pois pergunto: a criança vai considerar só o contexto de AM em sílabas? Ela lá sabe que o que se pede é sílaba? BRUN é sílaba de quê? PONS?

E tem mais...nessas sílabas com M e N usadas em posição pós-vocálica, não há as propriedades acústicas e articulatórias das consoantes nasais, o que há é uma nasalização das vogais que as antecedem, essas letras M e N aí conferem a nasalidade vocálica. Mas no GG, no modelo dado, seus “sons” de consoante, com seu padrão articulatório, são “pronunciados”,  e depois, na pronúncia da sílaba inteira, vira só uma vogal nasal (o /m/ e o /n/ perdem, inclusive, sua capacidade distintiva, pois produzem o mesmo “som” nessa posição). Pronunciar o /a/ + /m/, de consoante nasal, e daquela forma bem forçada para ser isolado, e depois, esse som se perder na pronúncia da sílaba, que vira /ã/, é uma deturpação completa dos usos desses caracteres gráficos. Essas consoantes nasais não têm valor de consoantes aí, apenas nasalizam a vogal, então essa associação é equivocada. Contrariando essas sínteses que separam equivocadamente os fones vocálicos e nasais pós-vocálicos, em certo momento há tarefas que associam as unidades gráficas IN ou ON aos fones vocálicos nasais "inteiros": /p/ /õ/ /s/ e não /p/ /o/ /n/ /s/ ou /d/ /ῖ/ /s/, e não /d/ /i/ /n/ /s/ - o que seria, realmente, um absurdo. 

Problema semelhante vemos nas ocorrências do L em OL, AL, em que a letra tem som de U nessa combinação, não é? O L não tem aí valor consonantal tampouco, mas é pronunciado isoladamente (e artificialmente /l/), como se na sílaba tivesse o mesmo valor sonoro - mas não é (aliás, que som é esse do L, N e M?). Um pouco mais de fonologia aí ajudaria a não propor procedimentos tão esdrúxulos!  Sem contar que CRO, BLO, BRO lê-se crô, blô, brô...E pergunto: onde fica cró, bló, bró como em  BLOCO, BROCA? Ai, ai, viu? E CROCODILO, como se pronuncia? Certamente diferente a depender de sua região! 

As fases seguem, nessa proposta de muitas sequências de sons para formar sílabas e pseudo sílabas descontextualizadas, sem nenhuma aparente lógica interna na escolha dos conjuntos de sílabas, apenas combinações dadas, repetidas, pedidas e, eventualmente, a serem montadas dentre outras possibilidades dadas. Mas sempre só treino. Quando ouvimos no início de cada treino de modelo o “Temos mais sílabas para você brincar”, chega dói!!! Brincar? Onde? Que falta fazem as palavras!!! E que tipo de aprendizagem é essa que se faz pelo cansaço, pela passividade, pelo vício de seguir adiante, pela mera recompensa de acertar? Eu mesma segui “jogando”, enfadada, pela causa, mas sem conseguir parar...Vicia a seguir, provavelmente. Que aprendizagem é essa que as crianças farão pelo vício, pelo gesto de continuar, sem nenhum interesse no âmbito da língua, da aprendizagem de um instrumento cultural? É sério que são aprendizados básicos, prévios, necessários para se alfabetizar? Ou que é isso alfabetizar? Entrar a todo custo? É isso que queremos mesmo? Certamente, não. Muitos de nós, não! Temos aí, com certeza, uma questão epistemológica de fundo, assim como de concepção de linguagem. Isso, claro, já sabemos. Mas constatar que a proposta não se sustenta nem no âmbito da fonologia e da própria ciência que reclamam como fundamento, me deixa perplexa. Será um problema, em grande medida, da adaptação brasileira? Um aplicativo usado em tantos países, será que é tão limitado assim em suas outras versões? Eis outras pesquisas a se fazer. 

No final da sequência 19, as sílabas formam palavras como dão, deu, dor, zen...mas parece bem aleatório. A fase continua sendo intitulada de “sílabas complexas” e volta depois às sílabas soltas e pseudo sílabas (ao menos algumas estão longe de ser do universo de palavras das crianças). Não, não eram palavras... 

A partir da sequência 20 parece que vão aparecendo outras combinações, não treinadas, mas misturadas com as treinadas. A sequência 20 começa como se houvesse pulado alguma coisa, pois já inicia com tarefas, sem dar os modelos. Apresenta novas combinações, ainda não treinadas... e também bem arbitrárias. Será que houve outro erro aí, pularam a fase de treino, começando na tarefa? Poderia ser provável, já que é bem diferente de como vinha sendo o passo a passo, e o game já apresentou outros erros. Mas em sequências adiante, de novo, acontece. Escapa um pouco ao padrão dos procedimentos do GG até aqui, então pensei: será que “pularam” porque eu me saí bem nas fases anteriores? Mas duvido muito, a única coisa que reparei nesse sentido foi a de ter mais repetição quando eu errava de propósito uma sequência. Então, será que, enfim, chegamos a alguma  generalização? Mas são sílabas por vezes tão raras e tão aleatórias, que vislumbro pouco essa opção. Em todo caso, se assim de fininho começam a vislumbrar alguma ação menos passiva das crianças, o que continua sendo a tônica dos procedimentos é o padrão modelo-identificação de modelo dado. Por incrível que pareça, por enquanto são os únicos passos em que, para avançar de fase, exige-se alguma generalização das crianças, já que não houve modelo... Mas isso denotar um vislumbre de sujeito mais ativo na tarefa dada, ainda acho cedo concluir. E se as crianças que responderem já estiverem mais adiantadas em seu domínio do funcionamento alfabético, pergunto: para que precisam seguir nessa tortura de treinamento exaustivo? Sim, o treino segue... Não acaba nunca! Mesmo tendo começado sem modelo, e haja repetição!!! Repete com sapo, com canhão, com cinema, com balão...

É digno de nota que a forma como organizam os conjuntos de sílabas de uma tarefa não deixa muito claro se pretendem que as crianças prestem atenção aos fonemas ou se investem em memorização do todo da sílaba - o que seria um procedimento estranho a essa perspectiva. Mas o fato de parecer sílabas meio aleatórias, com apenas uma ou outra apresentando um som distintivo, fica parecendo que contam com uma memorização do todo também, não? Apenas algumas como FLA, FLU; CLA, CLO, CLE, e FLA, CLA, formam pares mínimos (de sílabas, não de palavras) - e colocam as crianças no desafio da análise fônica. Ou esperam que nesse ponto as crianças já estejam analisando as sílabas em fonemas? E aí de novo se coloca a questão - para as que já identificam as segmentos decodificando, para que esse treino seguir tão exaustivo? E as que não decodificam, seguem como? Memorizando o todo? É já visando ao reconhecimento lexical, automático? E as que ainda só conseguirem via rota fonológica, e as que nem isso? Duvido que haja pesquisa brasileira sobre os diferentes níveis das crianças na interações com essas tarefas. Até porque, o que vale para eles é reproduzir a instrução fônica treinada, o nível é medido pelos acertos e erros... Coitadas das crianças! 

Bom, o aplicativo segue, interminavelmente, nesse treino de sílabas que em nada lembra a linguagem efetivamente falada/escrita! Os defensores da PNA argumentam que os modelos fônicos não devem ser confundidos com os antigos modelos de natureza comportamentalista, cuja prática pedagógica, essencialmente associacionista, consistia em estímulos e respostas. Mas é isso que é o GraphoGame faz... Só há treino de estímulo e resposta, sem pensamento, sem entendimento nem do que estão treinando. E argumentam isso reclamando as evidências científicas da ciência cognitiva da leitura. Só que eles elegem, dessa ciência, alguns aspectos, silenciando e apagando completamente outros. Recortam a seu modo o campo científico para validar suas escolhas pífias, que são, não nos esqueçamos, atravessadas de interesses mercantis e elementos altamente ideologizados. 

Dito tudo isso, então, não, o método fônico sintético não é o único método que garante a consciência fonêmica e a apropriação das relações fonema-grafema (que chamam de instrução fônica, já indicando na expressão certo modo mais restrito de abordá-las). Não, o método fônico sintético não é sinônimo de phonics, nem de consciência fonológica, fonêmica. Aliás, sim, o método silábico ou de palavração - que continuam sendo aplicados aqui amplamente - chegam a isso também. Pesquisas na área revelam que grande parte de docentes seguem aplicando procedimentos que focam na decodificação. Então, não, no Brasil não adotamos uma metodologia global ideovisual, whole language - como argumentam, para dizer que é novidade isso de defender o ensino explícito e sistemático da estrutura do sistema de escrita.

Atenção! Não estou defendendo tais métodos em si mesmos, os métodos tradicionais foram questionados por diversos motivos (ver aqui), mas as unidades que eles focam, são unidades da língua, e certos procedimentos que elegem como caminho para alfabetizar  remetem a certas operações linguísticas e cognitivas, nada disso é propriedade de cada método nem deve ser jogado fora com a água do banho. Estou dizendo que o princípio alfabético e a consciência fonológica e fonêmica não são domínios do método fônico, ainda mais do sintético (na origem ele é sintético, mas depois ganhou outras roupagens). Estou dizendo que os resultados de pesquisas cognitivas não são unânimes em afirmar que o único caminho válido para alcançar a alfabetização é seguir a estrutura do sistema (dos fonemas isolados ao seu reagrupamento em unidades maiores, ou seja, à síntese em sílabas e palavras). E não, nem todos os adeptos do phonics dizem “não” ao processo de aprendizagem, ao pensamento da criança (em que as crianças abstraem e dão conta, gradativamente, das unidades fonêmicas, ao irem se apropriando da língua escrita, e não previamente). Nesse modo de reduzir o phonics a esse procedimento sintético artificial estabelece-se uma dicotomia, sim, entre esse treinamento e a apropriação da linguagem escrita em sua complexidade. Argumentar que a escrita, diferentemente da fala, não é natural, não é justificativa para defender uma artificialização da língua e do seu ensino. O fonema não é natural - isso é justificativa para tornar o seu ensino mecânico? As crianças pensam sobre a língua, sobre a dimensão fonológica, e podem abstrair o fonema com situações de reflexão, com ensino sistemático que considere o pensamento da criança e a língua efetivamente falada e escrita, não um arremedo de língua e escrita. Ademais, se podemos compreender que o sistema é uma ferramenta artificialmente criada e até que o cérebro precisa se adaptar para essa nova capacidade - como argumenta a perspectiva que embasa o Graphogame - ele é também um instrumento cultural e precisa ser tratado como tal, como já defendia Vygostsky nos anos 1930! 

Enquanto essa perspectiva se esforça para estreitar o que conta como evidência ou conhecimento válido para pautar a alfabetização de crianças, muitos defendem a natureza multifacetada da linguagem escrita e modos mais significativos, contextualizados e reflexivos de abordar a sua faceta linguística. Há modos de se refletir sobre as diversas unidades fonológicas, bem como a sua representação gráfica, de forma significativa, reflexiva, verdadeiramente lúdica e letrada. Mas mesmo dentre as pesquisas e os pesquisadores da ciência que a PNA reclamam como base de suas formulações e, consequentemente, do Graphogame, há muito mais complexidade e muito menos unanimidade do que nossos governantes e seu ministério querem fazer parecer. Entre resultados de pesquisa cognitivas e o que funciona para alfabetizar crianças há muito menos certezas do que se prega e, jamais, um caminho único e verdade última como quer a retórica da “alfabetização baseada em evidências científicas” - ou baseada na ciência, como se não o fosse antes disso. Aliás, desde quando se preocupam mesmo com ciência, em outras áreas? A retórica da ciência é muito bem montada para lustrar uma perspectiva muito reducionista e robotizante de alfabetização de nossas crianças. Ideologia, não ciência. O próprio José Morais, guru dos defensores da PNA, a despeito de enfatizar procedimentos de síntese e segmentação fonêmica, diz, comentando sobre as relações fonema-grafema: “Que relações devem ser instaladas entre decodificação e significação? As correspondências podem e devem ser aprendidas no contexto das palavras” (A Arte de Ler, 1996, p. 274). E não apenas por uma questão de motivação, mas devido ao apoio que isso dá, diz ele, à elaboração de representação mental dos padrões ortográficos das palavras, necessário ao domínio da leitura e escrita. E o GraphoGame... 

Insisto nisso, pois é preciso reconhecer que aprender a ler e escrever são processos complexos, que envolvem salas de aula, famílias e culturas, não podendo ser simplificados de tal modo que se perca de vista a linguagem, a cultura, o pensamento e os sujeitos. O que funciona em termos de alfabetização? Vamos mesmo crer e apostar todas as fichas de que a consciência fonêmica e instrução fônica sintética, como ponto de partida e núcleo central de todo o processo de alfabetização, vão resolver a alfabetização das crianças? Mesmo no âmbito de um método direto-sintético, por que escolher iniciar pelo caminho dos fonemas isolados e da ausência de palavras? Será que a explicação de que para o cérebro se adaptar às exigências da escrita, e se especializar no reconhecimento de letras e palavras, é preciso uma prática contínua das correspondência grafema-fonema, justificaria tal abordagem a um preço tão alto? Há contradição entre prática contínua e generalização, metacognição? Ainda que treinamento de instrução fônica sintética resultasse em habilidades melhores de decodificação e leitura fluente (e os dados não são unânimes aí), precisamos apostar todas as fichas nesse aspecto ao preço de tantos outros? Ainda mais que há dados que mostram que as crianças aprendem o phonics por outros caminhos? Então gente, como li num artigo internacional sobre o GraphoGame - repito: no esforço de determinar o que funciona, podemos perder de vista o que importa.

E aí eu faço mais uma pergunta sobre isso: o que importa aprender na pré-escola? O GG é para crianças desde 4 anos! Poderia responder a isso com vários argumentos relativos ao que acredito do ponto de vista das concepções de linguagem, aprendizagem, infância e Educação Infantil que acredito. Mas deixo isso em suspenso, por ora, e respondo com um argumento do próprio José Morais (A arte de ler, 1996, p. 281): “Deve-se preparar a criança para a aprendizagem da leitura tentando ensinar-lhe análise fonêmica desde a escola maternal? Minha resposta é não!”. E ele continua: “O treinamento para a análise fonêmica é prematuro fora da situação de aprendizagem da leitura, mas isso não deve eliminar da escola maternal toda a atividade de reflexão metalinguística”. E o autor segue falando, justamente, de reflexão (reflexão!!!) sobre segmentos maiores da língua e, quanto a sua forma sonora ele ressalta, justamente, que segmento? A sílaba! A capacidade de analisar a fala em sílabas! Mas o GraphoGame...

Claudia Moreira estudou, do ponto de vista da linguística, o papel da sílaba na alfabetização e ressalta que é na correlação entre essa unidade fonológica - que a criança conhece, conscientemente, na oralidade, desde cedo - e as unidades gráficas, que a criança descobre e compreende a natureza alfabética da notação escrita, em suas explorações do material gráfico. Justo porque a sílaba é a unidade mínima de emissão sonora, justo porque a sílaba dá pistas dos fonemas, justo por tudo isso é que é por ela que se chega ao fonema, abstrato e não prévio à escrita alfabética. Tudo isso favorecido porque as crianças pensam, desenvolvem estratégias, generalizam, constroem analogias, analisam e reorganizam seu pensamento a partir dessas explorações e das mediações docentes. Já no Graphogame... Para que mesmo, então, torná-lo prévio, forçadamente, e desde os 4 anos? Para supostamente prevenir possíveis dificuldades no processamento fonológico de uns e outros? Justifica?   

Quer saber mais sobre alguns aspectos da reflexão metalinguística na Educação Infantil, veja esse artigo meu. E mais o capítulo aqui.

Na próxima postagem, vamos discutir as fases do GG que chegam às palavras. Sim, só mais ao fim chega às palavras! Mas, para começo de conversa, as fases já se iniciam sem dar bola para as sílabas, justamente... focam a síntese de fonemas da palavra completa, nenhuma atenção à segmentação silábica das unidades lexicais...nenhuma atenção a essa unidade mínima da emissão sonora, a sílaba, que desaparece aí (ao menos nesse início). A escolha é sempre a estrutura do sistema, jamais o ponto de vista da aprendizagem da criança.  

E veja aí... ainda escolheram a palavra RIU (pretérito perfeito do verbo RIR) em vez de RIO (substantivo) para não confrontar a criança com a letra O com som de U, mas criando uma confusão pela falta de contexto enunciativo: que criança vai pensar em um verbo conjugado em vez do rio onde toma banho ou vê cortando as terras com suas águas? Sem o contexto para essa palavra, RIU, de novo, essas escolhas do GG denunciam tanto a complexidade da linguagem quanto a inoperância do aplicativo para dar conta dela.

Mas falaremos em breve das palavras! 

 

Referências (algumas)

As considerações feitas nessa postagem são frutos de estudos a partir de diversas fontes. Por ser um gênero post, menos informal, me atenho a poucas referências de minhas argumentações. Quando isso virar artigo, as referências serão mais bem cuidadas, claro. De todo modo, indico aqui as obras básicas da ciência cognitiva da leitura e da linguística que guiam minhas reflexões nesse post.

EHRI, C. L. aquisição da habilidade de leitura de palavras e sua influência na pronúncia e na aprendizagem do vocabulário. In: MALUF, M. R.; CARDOSO-MARTINS, C. (orgs). Alfabetização no século XXI: como se aprende a ler e a escrever. Porto Alegre: Penso, 2013.

MORAIS, J. A arte de ler. São Paulo: Ed. UNESP, 1996.

MOREIRA, C. M. A sílaba na alfabetização de crianças e adultos. Curitiba: Appris, 2017.

SNOWLING, M. J.; HULME, C. (orgs). A ciência da leitura. Porto Alegre: Penso, 2013.

 

13 comentários:

  1. Esse material me fez lembrar um pensamento que tive outro dia. Vi que um professor que alfabetizava uma garotinha que conheço, levou atividades de separação silábica, então fiquei pensando: "mas ela nem sabe formar palavras, como já vai separar sílabas?". Com essa leitura e sobre o que Cláudia Moreira menciona, conforme diz o artigo, a sílaba como unidade fonológica da pistas do fonema, e a criança deve ter acesso a isso desde cedo, percebi que tinha fundamento a ideia do professor. Eu ainda sou muito influenciada pela maneira tradicional com a qual eu mesma fui alfabetizada. O bom é que as referências que tenho vão aos pouquinhos sendo substituídas e virando só lembranças. Tatiana Feitosa - EDCB85 - UFBA.

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    1. Todas as unidades linguísticas são importantes de serem abordadas, Tati. A questão é COMO. Elas podem ser exploradas de forma bem mecânica ou de forma potente, reflexiva e chamadas a atenção no momento adequado, no sentido de não artificializar a língua nem desconsiderar a produção intelectual da criança, seu pensamento, sua capacidade de reflexão sobre aquilo. Seguiremos vendo esse COMO!

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  2. Ah! Seus textos são bem leves, professora. Quando menos esperamos, pelo menos comigo foi assim, terminamos de ler. Parabéns!!! Muito legal mesmo. Tatiana Feitosa - EDCB85 - UFBA.

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    1. Obrigada, Tati! Procuro ser leve e acessível, mas sem deixar de fundamentar bem os argumentos. Seu feedback me faz pensar que consigo...

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  3. Kellen Laís - T02 - Alfabetização e Letramento - 2021.220 de outubro de 2021 às 04:25

    A PNA apoia a ideia de alfabetização de uma forma mecanizada e inversa. A própria alfabetização da Língua Portuguesa já é um processo abstrato e complexo, quando feita fora de contextos, acarreta na mecanização, ignorando outro processo muito importante que a PNA já vem fazendo também, que é o Letramento.
    O GraphoGames, que é um jogo que veio de outro país e que foi adaptado, que segue justamente os parâmetros esperados pela PNA, ignorando o processo de aprendizagem das crianças.
    Além disso, arrisco-me dizer sobre a criação de jogos pedagógicos tão mecanizados em busca de seus objetivos, que acabam se tornando desinteressantes para as crianças, fazendo mais parte de avaliações pedagógicas do que lazer.

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  4. A aprendizagem das sílabas se torna um processo natural na vida da criança, como a professora traz em seu texto nas cantigas, nas brincadeiras cantadas. Ao ler e ouvir um trava-língua percebemos a entonação das palavras com sons parecidos… e num processo gradual saímos das sílabas e vamos para os fonemas. Durante esse processo, tantas vezes podemos perceber dificuldades ao estudar e compreender os fonemas, me questiono como fica a cabeça da criança ao se deparar primeiramente com essa unidade.
    E o GraphoGame vem justamente com esse intuito, partir do fonema e ir para as unidades silábicas. Ao ver os vídeos apresentados no post, muitas vezes me senti confusa ao ouvir a junção dos fonemas em sílabas e me perguntava como mais abstrato seria na cabeça de um estudante em processo de alfabetização.
    O PNA vem com essa proposta de alfabetização baseada no método fônico e se apoiando em diversos estudos internacionais e em materiais como o GraphoGame, ignorando totalmente todo material confeccionado pelas instituições e autores de alfabetização brasileiros. Levando a educação a um processo engessado e mecanizado, podando todas suas outras linhas de pensamento.

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    1. Isso, Carolina! As unidades fonológicas diversas podem ser abordadas de forma contextualizada e acompanhando as reflexões das crianças sobre as segmentações da linguagem, e não com um treinamento prévio de da segmentação mais abstrata que é a fonêmica. Dizem se basear na ciência cognitiva, mas o que propõem mesmo é um método fônico sintético bem mecanicista. A ciência cognitiva fala de cognição, metacognição, reflexão, generalização , não de um mero treino mecânico e memorização de relações fonemas-grafemas. Os autores dessa perspectiva não validam isso de pronúncia isolada de fonemas - mas é o que chove nas implementações da PNA, não é?

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  5. Ana Luzia do Outeiro - EDCB85 Professora Lica, estou impactada com as reflexões e análises sobre as diretrizes, materiais e propostas da PNA e suas consequências nefastas para a educação e formação do povo da nossa nação. O aprendizado que venho desenvolvendo em suas aulas, a partir dos conteúdos do componente EDCB85 do curso de Pedagogia da UFBA, assim como estudos neste blog, dentre outros materiais de educadoras importantes, veem embasando meu olhar crítico sobre a temática. A PNA foi instituída por decreto sem a possibilidade de uma prévia discussão com mentores intelectuais da área, sem uma leitura adequada da nossa realidade como por exemplo, o viés da condição social para poder atingir critérios como imprimir o material colorido para apresentar às crianças; fazer um chocolate quente antes de familiares lerem para filhos; não considerar a população alvo como sujeitos históricos e de direitos, como se fossem tabulas rasas que não trazem nenhuma contribuição para seu processo de aprendizagem. A instituição de um livro didático único, cartilha engessada, que tira a autonomia da professora, com receitas de como alfabetizar, num papel tecnicista de transmitir um treino, numa a posição de não diálogo, é uma aberração dentre ouras. A política de alfabetização traz consigo “algemas” e erros estruturais como a questão de desconsiderar ações já existentes no ensino da alfabetização, que vinham dando certo, em vez de incrementar ações bem elaboradas nas fases posteriores como a de compreensão e interpretação de textos, que é onde a população do nosso país está mais defasada, chamada de analfabetos funcionais. Esta, dentre outras medidas, para “a nova ordem nacional”, no campo da alfabetização, estão comprometendo o desenvolvimento do país, com bolsões feitos de população despreparada para o trabalho, sem conseguir obter níveis de formação acadêmica que a capacite para o exercício pleno da cidadania e que contribua para o desenvolvimento do país. Triste realidade!

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    1. Para mim, o pior é falarem em compreensão leitora e produção escrita apenas APÓS o domínio da escrita alfabética! Esse aspecto chega a ser perverso e desconsidera todo conhecimento de outras perspectivas e da empiria do campo educativo mesmo, pois a história mostra que não é assim. Um horror!

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  6. Ameeei o Grafogame! Não conhecia... Mais um para englobar minhas ferramentas no auxilio da alfabetização dos pequenos! Em estágio 3 utilizei o lele sílabas e o silabando. Também produzi alguns "brinquedos" para auxiliar os educandos na passagem de "nível" silábico. Vi muitos outros aqui no blog e gostei bastante. Ótima iniciativa em divulgar as ideias e trabalhos em um blog aberto ao público, assim pode trocar conhecimentos com a comunidade academica e o público em geral.
    EDC85 - Caroline de Assis.

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    1. Caroline,
      Você, evidentemente, tem todo o direito de gostar do Graphogame, mas acho que você não leu o post. Sendo um post crítico, o que espero de vocês é que, em conhecendo melhor o aplicativo (você baixou? Jogou?), possam ter argumentos para defender um ponto de vista diferente do que trago aqui.
      Seu comentário validando e amaaaando o game, sem considerar o que foi dito no post, me indica que você não deve ter lido. Porque mesmo se gostou do game, teria que fazer algum contraponto, não é? Mas você comenta como se o post estivesse apenas apresentando o game (sem criticar), ou como se fosse um post validando-o... Eu, sinceramente, não entendi...
      Comentou sem ler?

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