quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Mais abecê nordestino!

Desde 2019, formalizei, em um estudo e uma pesquisa exploratória, um interesse antigo que era entender a origem de nosso abecê nordestino e discutir sobre sua legitimidade cultural e linguística, para tentar compor argumentos que contribuíssem para o seu não desaparecimento, ao menos na Bahia, em que ainda se usa e, sim, ainda se ensina esse modo diferente de pronunciar as letras. Tenho falado em diversos contextos, entrevistas e eventos, tenho escrito sobre (aqui blog tem várias postagens, tem publicação em jornal e já há artigos publicados e a caminho). E sempre que sou interpelada sobre isso - como fui pela entrevista para a matéria que saiu no g1 recentemente, volta em mim a comichão de espalhar conhecimento e da militância quanto à manutenção de nosso abecê. Nos próximos anos, se tudo conspirar a favor, teremos novidades. Em 2026 deverá sair um novo artigo e em 2027 saio para Pós-Doc para aprofundar e arrematar os estudos. A ideia é tentar finalizar o livro que estou escrevendo sobre essa temática, que interessa não apenas ao campo da alfabetização, mas a nossa cultura.

Por isso, vira e mexe eu saio "futucando" a internet para encontrar material sobre o assunto, em geral muito incompletos e, algumas vezes, preconceituoso (sobre os preconceitos, ver post Quinta provocação, aqui no blog). Mas há também muito reconhecimento cultural, com a valorização da variante regional dos nomes das letras e, mais raramente, reconhecimento do valor linguístico para a alfabetização de crianças. Entretanto, ainda há muitas compreensões parciais ou equivocadas quanto a esse modo de pronunciar as letras. Por vezes a ênfase para validá-lo apoia-se apenas na questão da variação linguística, quando temos diversos elementos outros para argumentar sobre a legitimidade cultural e linguística desse abecê. No meu estudo, lanço mão de quatro principais argumentos para desvendar suas origens, seus usos e afirmar sua legitimidade, combatendo o desaparecimento gradual do nosso abecê.

A matéria no g1 ajuda a fazer essa discussão chegar a mais pessoas no Brasil - tem gente que NUNCA ouviu falar desse abecê, nem no forró de Luiz Gonzaga e Zé Dantas! Mas embora feita com muito zelo por Emily Santos - que foi alfabetizada na Bahia, nos anos 2000, e conhecia daí esse abecê - uma matéria é sempre muito curta e não dá para aprofundar muito. Mas serve muito como aperitivo, além de, mais uma vez, renovar meu interesse e minha labuta em torno dessa questão. Veja a com chamada dela à matéria no canal do g1.

Bom, nessas tantas reedições de meu interesse e pesquisas na internet, encontro sempre novos materiais por aí, e resolvi fazer esse post comentando um material que encontrei na última varredura que fiz na internet - que mostra o quanto essa publicação que está ainda no forno é necessária e já está mais que em tempo de sair. Vamos conhecer mais sobre o abecê nordestino? Mas enquanto a obra não sai, sigo falando em pequenas doses, comentando aqui e ali.

A matéria, que saiu já há uns 2 anos, é essa, no quadro "De onde é que vem?", do programa Você em Dia, da TV Record Sergipe. A matéria toca em pontos importantes, arrodeia outros, ficando apenas na superfície, e traz também alguns pontos que podemos problematizar, sem que se minimize a boa abordagem que deram, em geral, à temática, considerando o contexto de uma rápida reportagem de TV.

Começo afirmando que a matéria valoriza alguns pontos extremamente importantes:
1. Apresenta o abecê nordestino como portador de uma sonoridade gostosa, "aprazível aos ouvidos" - diz o linguista entrevistado - sem afirmar equivocadamente que as letras nordestinas são sons e as oficiais são letras. Fê, guê, ji, lê, mê, nê, rê, si - não são sons, são nomes de letras! Ponto para eles!
2. Apresenta esses nomes mais próximos dos sons das letras como muito produtivo para a alfabetização - aspecto que podemos observar empiricamente nas salas de aula, mas que também tem validação em pesquisas científicas de alguns campos.
3. Apresenta ambas as formas do abecê usadas no Brasil como corretas, sem entrar na ladainha do certo x errado, feio x bonito, culto x iletrado. Reconhecem esses nomes de letras como variedade regional do Nordeste, afirmando a variação linguística positivamente. Por incrível que pareça, é um ponto ainda a afirmar, dadas às tantas incompreensões e aos preconceitos que circulam por aí.
Mas sobre esse último ponto, a matéria não menciona sobre as dinâmicas históricas e sociais que engendraram a mudança na educação referida, que, em verdade, remete a uma "colonização" do nosso abecê pelo dito oficial, culto e certo. Afinal, as mudanças não vêm "do nada", muito menos de uma suposta e efetiva superioridade atestada do outro abecê - que é o que fica subentendido, se não é problematizado. E digo suposta, porque nada valida tal ideia.
O quadro se chama "De onde é que vem?", mas essa questão, no fim, nem é respondida - não é simples mesmo responder. Mas nos meus estudos, busco argumentos para descortinar possíveis cenários e fazer hipóteses, quando não é possível afirmar, fundamentando-se tanto na história da constituição do alfabeto quanto na história da alfabetização no Brasil. O professor que fala sobre isso até menciona a história do alfabeto, mas apenas para, então, argumentar sobre as diferentes variantes que surgiram depois do alfabeto latino constituído. Não, essa história nos dá muito mais pistas! A historiografia é lacunar, mas há pistas para ter um entendimento melhor da questão. Mas, claro, não é possível aprofundar em uma matéria na TV. Precisaria ser uma reportagem mais longa. Só assinalo, desse ponto, que o argumento da variação linguística, embora seja um argumento bem importante, não é o único!
O nosso abecê, definitivamente, não é o abecê do Luiz, como dito na reportagem! Não é a linguagem dele, como se ele a inaugurasse. E, portanto, não é licença poética ele cantar o nosso abecê. O abecê nordestino tem uma história. Nosso querido Luiz Gonzaga, junto com Zé Dantas, de fato, nos trouxe uma enorme contribuição com o delicioso forró "ABC do Sertão", que levou esse nosso jeito de pronunciar as letras para ouvidos de todo o Brasil. Não podemos negar nem minimizar a delícia de forró. Mas esse abecê não é exclusivo do sertão e, talvez, essa ideia possa ter reforçado, sem querer, a ideia de que é de uso dos matutos, iletrados, ensinado por professoras leigas do interior nordestino. Ele mesmo, ao lado da exaltação, faz certo deboche, como se ele, de origem "matuta" do sertão, estivesse de fora, não é? O abecê nordestino, depois de ir desaparecendo em outras regiões e localidades, inclusive as mais urbanas, seguiu sendo usado no sertão, na zona rural, e em especial, na Bahia. Por isso foi referido como "do sertão". Mas rebobinando um pouco para trás na história, não era exclusividade do sertão e nem mesmo do Nordeste! Pasmem!
Então é isso gente! Vemos nas entrevistas, os participantes "mais antigos", que ainda têm memória de usá-lo e aprendê-lo, já misturando os dois abecês, ao falar o abecedário - o que prova o quanto a memória vai se esvaindo. A reportagem mostra uma criança, então, já totalmente "trabalhada" no abecê dito oficial - o de efe, gê, jota, ele, eme, ene, erre, esse. Os mais velhos têm, sim, ainda uma memória do abecê que aprenderam com as avós, pais ou na escola, porque, como eu disse, a tal "colonização" tem sido efetiva. Mas isso não autoriza a sugerir que seja um alfabeto antigo, não mais usado, como se ouve muito declararem por aí, sem nenhum fundamento. Ele ainda é usado, os nomes dessas letras ainda são referidos no cotidiano, há memória dele em várias gerações, ao menos na Bahia, litoral ou interior, zona rural ou urbana, e ainda é ensinado, sim, em algumas escolas, que seguem valorizando-o, cultural e linguisticamente. A pesquisa empírica, exploratória, que realizei em 2019 aponta isso. E com a minha voz, meu papel na formação de alfabetizadores, espero que novas gerações de docentes baianos possam seguir ensinando-o, mostrando que, no Brasil, temos dois jeitos de nomear certas letras, e defendendo-o do desconhecimento e do preconceito, a partir de fundamentos - que é o que pretendo com esse estudo, as publicações dele decorrentes e esses esclarecimentos em diversos contextos.

Convido a quem se interessa pelo assunto e que, realmente, gostaria de saber mais sobre isso, a acompanhar as postagens, seja aqui no blog (marcador Abecê Nordestino) e na BIO e Destaques dos IGs @oficinasdealfabetizacao e @lap_faced (Instagram). Aqui no blog, há cerca de 20 postagens sobre o assunto e nas BIOs e Destaques dos IGs indicados, outras tantas. Inclusive links para artigos. Na BIO do LAP - Laboratório de Acervos e Práticas que coordeno na FACED/UFBA, tem mais links do que aqui no blog, mas aqui tem já textos iniciais aprofundando um pouco nessa questão e nos argumentos que serão objeto do livro que vou terminar e publicar daqui a um tempo. Como eu disse, sair para Pós-Doc em 2027 tem como objetivo principal terminar essa publicação. Até a capa eu já tenho, feita pelo mestre J.Borges, que já nos deixou, mas me deixou esse presente.

É isso, gente! Tenho estado menos frequente aqui, mantendo as postagens nos dois IGs do Instagram, mas é significativo que eu volte aqui para falar justo disso... É que está me convocando, me interpelando...de novo! Preciso atender a esse chamado de terminar esse estudo. Penso que será uma contribuição importante. Como me disse Mabel Veloso, que também quis saber de onde vinha esse abecê quando era professora, mas não achou nada: "nunca deixe de pesquisar isso"! É uma missão que assumi, Mabel! Para que nenhuma professora nunca mais queira saber mais sobre isso e não encontre nada.

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