ATENÇÃO: O caso da letra G é especial, pois ambos os nomes, gê e guê, dão pistas de um dos valores sonoros que a letra assume no sistema, ambos sendo oficialmente reconhecidos, e o caso do J também, pois tem um processo de nomeação diferenciado. De qualquer modo, no nome jota ouvimos muitos sons que não fazem parte do valor sonoro da letra J, sendo o nome ji mais simples, como o si. Discutiremos sobre isso mais em detalhes na publicação sobre essa temática.
sexta-feira, 27 de outubro de 2017
Abecê Nordestino. PARTE 2: Argumentos da história do alfabeto
Oi, gente!
Vamos à Parte 2 de nosso estudo sobre o abecê nordestino, trazendo argumentos da história do alfabeto. A parte anterior a essa está aqui.
Quando
o alfabeto surgiu entre os povos semitas, as letras, como nos lembra Cagliari
(2009a), partiram de uma lista de palavras (alef,
beth...), cada uma com um som inicial diferente e cujos significados
remetiam à forma figurativa dos hieróglifos egípcios que foram adotados.
Ou
seja, parece que as letras eram motivadas pelas imagens do objeto designado
pela palavra e a letra inicial dessa palavra remetia ao som dessa letra. Isso é
muito importante para nossa discussão. Cagliari (2009, p. 40-41) diz que “essas
palavras passaram a ser os nomes das letras e um modelo de referência para se
achar qual letra deveria ser usada, ao se analisar as palavras em seus
segmentos fonéticos consonantais”.
O
exemplo clássico disso é a primeira letra do alfabeto semítico, nomeada de aleph, que significava boi, e era
representada pelo hieróglifo para boi. Assim, esse hieróglifo ficou sendo a letra
que representava aquele som inicial da palavra aleph, o som /a/ - que era meio gutural, não como nossa vogal hoje.
Nessa
origem do alfabeto, “um princípio acrofônico era a chave para decifrar e
escrever o alfabeto: bastava saber o nome das letras, reconhecer o som
consonantal e usar o caractere correspondente para escrever as consoantes que
iam sendo detectadas nas palavras a serem escritas” (CAGLIARI, 2011, p. 3). Ou
seja, isso de os nomes das letras darem a pista de seus sons, é que se chama de
princípio acrofônico e, como estamos vendo, esse princípio está presente desde
a origem da escrita alfabética. Aliás, é por isso mesmo que Cagliari
(2009b, p. 14) diz que quem inventou a escrita inventou ao mesmo tempo as
regras da alfabetização”.
Então,
essa lista de palavras – primeiro abecedário, por assim dizer – serviu de base
para o princípio acrofônico e acabou originando os nomes das letras. Embora
remetendo a formas figurativas da escrita hieroglífica, o que guiou o
estabelecimento dos nomes das letras foi, desde o início, a pista dos seus
sons. Como Cagliari enfatiza, o alfabeto foi inventado através do princípio
acrofônico: no nome das letras (em geral no início da palavra, mas não
necessariamente) ocorre o som mais característico que a letra representa no
sistema. E no início, era a letra inicial do nome que remetia ao som das
letras.
Os
gregos adaptaram o alfabeto semita dos fenícios aos fonemas sua língua e também modificaram os nomes das
letras, que passaram a ser apenas nome de letras – nomes próprios – não mais
vinculadas a um significado outro. Mas, em essência, mantiveram o mesmo
princípio, ou seja, o funcionamento do alfabeto pelo princípio acrofônico: os
nomes das letras gregas davam pistas do som dessas letras, e também nesse caso,
de forma mais direta – era a letra inicial que se remetia ao valor sonoro da
letra. Suas formas gráficas também perderam o caráter icônico, os nomes das
letras, assim, já não seguiam o sentido, mas tão somente o princípio
acrofônico.
Percebam,
então, que esses sistemas, que foram a base do nosso alfabeto latino, seguem
esse princípio acrofônico pelo som
inicial dessas palavras, ou seja, o som /a/ era representado pela letra alfa, cujo som inicial /a/ corresponde
ao som daquela letra; o som /b/ era representado pela letra beta...
Chegando
ao alfabeto latino, percebeu-se que, como a escrita alfabética se baseia na
relação entre fonemas e grafemas, que o que importa é o som das letras, não era
necessário que as letras tivessem nomes próprios. Assim, ao se apropriarem do
alfabeto grego, por meio dos etruscos, e estabelecerem o alfabeto latino, os
romanos modificaram os nomes das letras. E como nomear as letras? – Eis a
questão. É Cagliari (2009a) quem continua a nos contar sobre isso. Os romanos
entenderam que, se a chave para decifrar
as letras estava nos seus nomes, não era necessário ter nomes próprios,
especiais, para essas letras, como no alfabeto semita ou grego, bastava o nome
remeter ao som das letras. Ou seja, se a escrita alfabética é baseada no
princípio acrofônico, bastaria identificar os sons das letras para constituir
seus nomes.
Com os
sons orais das vogais, que são fonemas que soam, era fácil nomeá-las: bastava
lê-las e esse era o nome delas: A, E, I, O, U. Como as consoantes precisam do
apoio de uma vogal para serem pronunciadas, optou-se, para nomeá-las, por usar
uma vogal de apoio. Desse modo, pareceu prático designar as letras por monossílabos
iniciados com o som mais representativo
de cada uma delas, seguidas de uma vogal, no geral a letra E, tornando esse
nome pronunciável. “Assim, as letras
passaram a se chamar a, bê, cê, dê,
etc” (CAGLIARI, 2009a, p.70). Por essa lógica, as letras F, L, M, N, R, por
exemplo, deviam seguir esse mesmo sistema: fê,
lê, mê, nê, rê... E o autor continua assim: “No começo, as consoantes se
diziam pelo som inicial mais a vogal E, exceto K, que se dizia ka, Q que se dizia qu e X que se dizia iks”
(CAGLIARI, 2009a, p. 70). Se essas eram as exceções, então a afirmação nos faz
pensar algumas coisas:
1) que
sim, de início se dizia fê, lê, mê, nê, rê...;
2) que
os nomes das letras mudam na história.
Em
outro texto (CAGLIARI e MASSINI-CAGLIARI, 1999, p. 177), afirma-se também que em
algum momento da história do alfabeto latino, “havia duas maneiras de se dizer
os nomes das letras, pois algumas tinham sofrido uma mudança de nome passando a
ser ditas com um -e inicial, seguindo o som da consoante, como em ef, el, em, em, er e es”. Então, vejam
que coisa interessante!
Cagliari
(2009a,1999) relata que na época de Varrão (116-27 a.C.) havia os dois modos de se referir aos nomes das letras – ou seja, pronunciados de forma mais direta
como na origem do alfabeto latino, com a letra inicial dando pistas do som que
representam (ou seja fê, lê, mê...) e a versão com o -e anteposto ao F, L, M, N, R.
De qualquer modo, isso
quer dizer que, indo longe na história do alfabeto, essa forma precede à forma efe, ele, eme, erre...Varrão foi um
filósofo e enciclopedista romano, que escreveu a mais antiga gramática latina.
Nela, há uma sistematização, além de outras coisas, dos nomes das letras, pelo
critério seguinte: distinguindo as consoantes oclusivas das demais, as não-oclusivas (fricativas, laterais, vibrantes e nasais) recebiam a
vogal de apoio – a letra E – antes do som consonantal representativo do som da
letra, ou seja: ef, el, em, en, er, es
(depois pronunciadas em português como efe,
ele, eme, ene, erre e esse).
Assim,
na época de Varrão havia as duas designações possíveis para essas letras – a
antiga, fê, lê, mê, nê, rê – e essa
estabelecida pelas regras novas. Se foi proposta do próprio Varrão ou não, não é fácil comprovar. Há quem remeta a mudança na nomeação das letras ao alfabeto etrusco, intermediário entre o grego e o latino. E essa forma nova de dizer o nome das
letras em latim passou, depois, de algum modo, para muitas das línguas europeias,
como o português (mas não apenas para as línguas neolatinas). Vê então que,
indo lá para trás, podemos questionar a precedência e mesmo a lógica dessa
nomeação? Por razões históricas, a sistematização da época de Varrão ficou valendo, mas
poderia nem ter ficado.
Notem que, para novas letras que foram surgindo depois - porque as línguas e suas notações são dinâmicas e mudam na história -, essa regra do -e antecedido nos nomes de letras que representam fonemas não oclusivos nem foram mais consideradas – o que nos faz relativizar a necessidade e pertinência da regra. As letras V e Z, embora representem fonemas fricativos (ou seja, não-oclusivas), sendo – tal qual usadas hoje – incorporações tardias no alfabeto latino, não entraram nesse sistema para as não-oclusivas. Ou seja, pela regra de formação dos nomes das letras dessa época, uma vez ganhando esses outros valores sonoros, as letras V e Z deveriam se chamar eve e eze...!!! E foi assim? Não, né?
Quando essas letras, com esses
sons, surgiram, deram-lhes os nomes mais diretos, como se fossem oclusivas,
pelo sistema da época de Varrão: vê, zê. Então
para onde foi a lógica? Isso nos leva a pensar na arbitrariedade da
determinação dos nomes das letras e, consequentemente, sobre o que seja certo
ou errado nesse contexto. Essa determinação pode, realmente, ser tomada como o
parâmetro, a medida de todas as outras alternativas de nomeação das letras? Nessa época, os estudos gramaticais enfatizavam muito essa diferença entre os fonemas constritivos e oclusivos - essa distinção ir parar nos nomes das letras pode ter sido um arranjo bem próprio ao conhecimento gramatical da época, não é? E ainda assim, arbitrário e sem um lógica interna que, de fato, justifique-o. Tudo bem que, por algum motivo (não exatamente linguístico ou lógico), esse modo de nomear ficou valendo, no curso da história, e se consolidou - mas a questão é: isso pode ser determinante para se tornar o único abecê legítimo?
Assim, esse
aspecto da história do alfabeto nos remete, novamente, à nossa discussão sobre o abecedário nordestino,
seja em termos de sua validade cultural, seja em termos de sua funcionalidade
na alfabetização (sobre isso aprofundaremos mais nas partes 3 e 4). Saber dessa
origem dos nomes das letras – seja em uma ou na outra realização – não nos
ajuda a relativizar o uso do alfabeto “oficial” simplesmente porque “é o
certo”? Não nos ajuda a recuperar a possibilidade de transmissão de nosso saber
cultural de forma mais contundente? A assumirmos que no Brasil temos duas
formas de nomear as letras? Tudo o que muda, exige historicidade para não se
julgar inadvertidamente sobre o que seria “certo” ou “errado”, naturalizando o
que tem história e, por vezes, uma história que não justifica, exatamente,
tomar as coisas – mesmo no recorte de um dado momento histórico – como verdade
dada, única, regida pela dicotomia certo/errado.
Se o alfabeto
que se firmou como modo valorizado de designar as letras na língua portuguesa foi
constituído historicamente, essa origem nos ajuda a relativizar essa história
de “correto” e de “precedente”. A história nos ajuda a ver que nada é dado,
assim, não pode ser considerado, essencialmente, e em si mesmo, o “correto”.
Esse modo legitimado, “oficial”, não o é por razões necessariamente
linguísticas, mas históricas, sociais, culturais, envolvendo relações de poder,
a distribuição do poder entre os falares das regiões e dos sujeitos sociais.
Desvelar
essas raízes e essa precedência não implica, no entanto, usar tais
conhecimentos para argumentar sobre um suposto alfabeto “mais correto”, seja
qual for, ou coisa do gênero, não se trata de disputa. Na verdade não é o que
veio primeiro que importa, de fato, mas mostrar que, justamente, isso não
constitui um argumento válido para legitimar uma forma em detrimento da outra.
O que propomos é um reposicionamento da questão.
A
história do alfabeto, contando-nos sobre a origem dos dois modos de designar as
letras, também nos ajuda a entender que não procede dizer que efe
é nome e fê é som – e muito menos
fonema – pois mostra que os nomes das letras, desde o início, foram dados a
partir do princípio acrofônico, e inicialmente, pela relação mais direta: a
primeira letra do nome da letra dando pista do fonema (ao menos de um dos
fonemas) que essa letra representa. Por que, então, essa insistência em afirmar
que se trata da oposição nome e som? Por que achar estranho lê, fê, rê...serem nomes, se bê, pê, tê...o são sem nenhum problema? Fê só soa estranho (para alguns) porque
se acostumaram com efe, não porque fê seria intrinsecamente estranho.
Naturalizar o circunstancial por desconhecimento pode não ser o problema, o
problema maior é não querer considerar as circunstâncias para continuar
defendendo o que lhes “soa melhor”.
As
consoantes F, L, M, N, R e S, que mudaram de nome, tendo o som consonantal
precedido da vogal E (ou I, no caso do S), em vez de seguido dela como as
demais letras, são as que se distanciaram mais do princípio acrofônico. Ainda
são regidas por esse princípio, pois o som da letra de referência continua lá
(o fonema /f/ se ouve em efe), mas
não é mais no início da palavra, como nas escritas fenícia e grega e,
inicialmente, também no alfabeto latino. Ou seja, o que a história parece
mostrar é que, com esse sistema de nomeação da época de Varrão, afastou-se mais o nome de algumas letras de
suas formas sonoras correspondentes, e por razões bastante arbitrárias.
Certo é
que a representação do som da letra seguida da vogal favorece mais o
estabelecimento da relação entre nome da letra e o fonema que ela representa,
pois esse nome, construído como é no alfabeto nordestino, é mais aproximado de
seu valor sonoro nas palavras – discutiremos adiante as implicações disso na
alfabetização, o próximo post traz
argumentos que reforçam essa ideia.
Os
argumentos da história do alfabeto, entretanto, se nos ajudam a desvelar a origem
dos dois abecês, não explicam exatamente os usos do abecê no Nordeste do Brasil
–especialmente no sertão, mas não apenas, amplamente na Bahia, mais não apenas –em
tempos bem mais próximos de nós, antes de o modo oficial de pronunciar as
letras chegar às suas escolas.
É sobre
isso que discutiremos no próximo post, o Post 3, em que traremos argumentos da história da alfabetização no Brasil.
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Bom dia Lica!
ResponderExcluirAdorei o texto. Cagliare traz que se a escrita alfabética é baseada no princípio acrofônico, bastaria identificar os sons das letras para constituir seus nomes? De início se dizia fê, lê, mê, nê, rê... que maravilha! Então havia uma forma dupla de dizer o nome das letras e os romanos perceberam isso. O nome das letras em latim, passou de algum modo para muitas línguas europeias como o Português. Isso demostra que o abecedário nordestino é válido culturalmente e tem funcionalidade na alfabetização. Não podemos cair na dicotomia do certo e do errado. Há dois modos de designar as letras mas isso não significa dizer que efe é nome e fê é som e muito menos fonema. São apenas dois modos de designar as letras. Foi assim que entendi, certo?
Joston Darwin
ABCB85
Isso mesmo, Joston!
ExcluirPodemos defender nosso abecê com propriedade!
Valeu!
Liane
Olá professora Liane.
ResponderExcluirQue incrível saber que essa forma de falar o ABC é legítima. É muito interessante conhecer essa história e a origem da forma com que denominamos as letras no nordeste. Isso nos assegura a originalidade das duas maneiras de nomear as letras. Eu compreendo que a influência dos brasileiros de outras regiões, por questões de preconceito com o povo nordestino ao longo dos anos, influenciou para que muitos de nós duvidássemos dessa originalidade, permitindo que essa referência de “erro” ocasionasse no abandono de sua maneira cultural e original de fala. Por isso concordo ainda mais contigo quando diz que não podemos deixar essa riqueza se perder.
Abraço!
Daniele Farias
EDCB85 2021.1
Exato, Daniele. Demorei de responder, mas está valendo!
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