segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Avaliação de recurso: Quadrinhas Troca-Rimas

Quadrinhas Troca-Rimas

Conforme indiquei no post inicial que fala sobre o processo de avaliação e validação de recursos do/no LAP, postado aqui, vou postar aos poucos alguns comentários sobre o processo de avaliação e validação de alguns kits do acervo de materiais produzidos no Laboratório. E hoje é a vez do kit Quadrinha Troca-Rimas, de que gosto muito, também porque foi fruto de brincadeiras com meu filho. Trata-se de um material interessante, mas cujo processo de avaliação/validação ainda está em curso. Esse trabalho foi intenso quando o LAP estava vinculado à pesquisa que lhe deu origem, contando com muitos bolsistas pesquisadores e estudantes e docentes voluntários, e alguns se ocuparam dessa avaliação, a partir de um instrumento desenvolvido no LAP, também em processo de validação. No momento esse trabalho está mais parado, mas em breve, espero, retomaremos.

Esse material, em especial, foi confeccionado a partir de uma brincadeira oral de trocar as rimas de quadras populares[1], que consiste em, após as crianças conhecerem determinado repertório de quadrinhas, propormos mudar, oralmente, o par de palavras que rima no texto. A partir de uma conhecida quadrinha, o professor dá o mote da palavra no segundo verso e as crianças sugerem outras palavras que rimam, no quarto verso.

Eu sou pequenininha

do tamanho de um dedal

Carrego papai no bolso

e mamão no... avental, milharal....  

Na medida em que a situação propõe novos textos, a partir de novos pareamentos de palavras, que propõe novas brincadeiras a partir desse gênero tradicional, articulam-se aí a tradição, a renovação e a invenção, dinâmica própria a esse repertório cultural. Brincar com e a partir das quadrinhas envolve a tradição, com o conhecimento do gênero, de quadras do repertório popular; a renovação, com o seu uso para brincar de trocar rimas; e a invenção, pois se abre para outras inúmeras possibilidades no próprio movimento das interações sociais em torno dos textos e das brincadeiras, da novidade surgida de criações lúdicas e intertextuais.

Nessa brincadeira de permutar rimas oralmente, as substituições lexicais e a exploração dos elementos rítmicos e sonoros relacionam-se à própria exploração das possibilidades performáticas do gênero poético. Mas a brincadeira pode mobilizar também a reflexão sobre as sonoridades da língua. E isso acontece desde uma sensibilidade no nível epilinguístico (GOMBERT, 2013), só pelo brincar de rimar e de trocar as rimas, até operações propriamente metalinguísticas, a depender do encaminhamento dado, envolvendo, nesse caso, a habilidade de produção de rimas. A consciência fonológica de rimas, embora não diretamente relacionada à estrutura do sistema de escrita, chama a atenção para a dimensão sonora da língua e confere um perfil analítico em torno da linguagem. Pesquisas apontam que a consciência de rimas, ainda que indiretamente, contribui para a apropriação da escrita e quanto mais as crianças tiverem, desde cedo, experiências brincantes com os gêneros da oralidade lúdica, em que as rimas são frequentes, mais se familiarizam com a dimensão sonora da língua - o que contribui para a compreensão da dimensão fonográfica da escrita, que, embora não seja suficiente, pois o que rege o sistema é a ortografia, é a base da escrita alfabética.

Assim, essa brincadeira oral e o kit que materializa essa exploração envolvem a consciência de rimas, com a habilidade de produção de rimas. Entretanto, as substituições das unidades lexicais no quarto verso não mobilizam apenas a consciência fonológica de rimas, vai além disso. O próprio ato de permutar palavras - no caso palavras no segundo e quarto versos - aciona a consciência lexical, que é a consciência das palavras no texto, seja oral ou escrito. As palavras se individualizam ao serem permutadas e a busca pelas rimas chama a atenção ao significante sonoro dessas palavras e não a seu significado, articulando-se consciência fonológica e lexical. Mas como o sentido importa nesses textos, além de mobilizar a consciência lexical, a partir das substituições por novas palavras, também ao sugerir novas rimas e checar o novo texto formado, as crianças se deparam com a identificação da gramaticalidade do enunciado e com a adequação semântica e sintática e, assim, a brincadeira tem o potencial de mobilizar, igualmente, a consciência sintática e semântica, articuladas à fonológica. O riso e a graça, quando diante de sentidos engraçados ou inadequados surgidos da substituição[2], ratificam o que as crianças “intuem” epilinguisticamente, ou sabem, metalinguisticamente, sobre gramaticalidade e sentido. Houve ocorrências interessantes nesse sentido, durante a brincadeira oral no período prévio ao uso do recurso no processo de avaliação.

Há até mesmo situações em que a morfologia se apresenta a consciência morfológica também pode ser acionada, como no caso de concordar a palavra rimada com o verso, a exemplo de “me esqueci do...cobertor”, em que a preposição “de” contraída ao artigo “o”, não poderia acolher uma palavra feminina como “flor”, a não ser mudando o artigo para “a” formando “...da flor”. Alguns aspectos mencionados aqui geraram discussão nessa situação de avaliação do recurso, trazidos pelas crianças ou mobilizados pela docente da turma e avaliadores (pesquisadoras, docentes e estudantes voluntárias).

O material Quadrinhas Troca-rimas foi criado a partir das potencialidades dessa brincadeira oral e o seu uso atrela-se a essa exploração prévia, para que o sentido cultural da oralidade lúdica se preserve e o gênero quadrinha não seja apresentado de antemão como um produto da escrita, que não é. É preciso preservar a performatividade oral próprias aos gêneros da tradição, pois sem ela, e sem essa vocalidade, como diz o Paul Zumthor, sem essa corporalidade, como diz o Claudemir Belintane, a linguagem e a cultura se esvaziam.

O recurso, que também foi abordado aqui no blog nesse post, compõe-se de quadrinhas com lacunas nas palavras finais do segundo e quarto verso, que rimam, fichas com essas palavras escritas, e mais outro par de fichas, que compõe a quadrinha “renovada” por novos pares de palavras rimadas[3]. No caso do material do LAP, temos o repertório de palavras pré-definido[4], com o qual brincamos oralmente com as crianças, antes da apresentação do recurso - o que favorece a memorização das quadras e de suas rimas, aspecto importante para o uso do recurso. No exemplo acima, havia as palavras “botão/coração”, da quadrinha original, e “dedal/avental”.

Quadrinha Troca Rimas 

Por ora, apenas uma turma de 1º ano de uma escola privada utilizou o material com vistas a sua avaliação, no início do ano letivo, visando à avaliação do recurso. As crianças dessa turma produziram rimas sem dificuldade nas situações orais de brincadeiras com o repertório, pois já tinham certa familiaridade com brincadeiras orais com rimas, tanto pelo uso de jogos orais e de mesa envolvendo essa unidade sonora, quanto pela via da literatura e da tradição oral. Assim, as crianças não tiveram dificuldade em prestar atenção às sonoridades no final das palavras, demonstrando boa intuição da rima, diferentemente do que é frequente observar quando iniciamos a brincadeira com crianças não familiarizadas com essa situação ou que não conseguem identificar os segmentos sonoros no final das palavras. É comum identificarem semelhanças sonoras, mas não saberem dizer em que segmento se encontra a semelhança, se no início, no meio ou no final das palavras.

A proposta do material Quadrinhas Troca-rimas, no entanto, com as quadrinhas escritas, exige que se lance mão de outros conhecimentos. Dependendo de como for proposta a situação, o texto de origem oral, mesmo registrado por escrito, pode, igualmente, proporcionar muitas fruições e invenções. E foi o que observamos na situação de uso nessa turma - um uso do escrito que não aprisionou nem abandonou o texto oral.

Só após essa exploração da brincadeira oral e da memorização, ao menos parcial, dos textos materializados no recurso didático (era preciso lhes lembrar trechos às vezes, pronunciando-os), o material foi disponibilizado para uso das crianças. Foram distribuídos em três mesas com quatro crianças em cada, cada mesa com duas cartelas de quadrinhas e suas respectivas fichas. O recurso pode ser proposto com outros agrupamentos e dinâmicas, com pequenas adaptações[5]. A quantidade de fichas de palavras distribuídas incide na dificuldade da tarefa, já que é preciso reconhecer as palavras visadas em um conjunto de outras tantas palavras. No caso dessa turma, duas quadrinhas com oito fichas de palavras (duas do texto original e duas do texto “renovado”) foi um número adequado ao desafio, e até fácil, em alguns casos, pois havia crianças que já conseguiam ler as palavras decodificando-as. A maioria da turma, no entanto, ainda acionava outras estratégias para ler, como decodificar parte da palavra ou usar alguma dica morfológica para tentar reconhecê-la, inferir outras, lançar mão de analogias com outras palavras que já conhecem. A brincadeira oral prévia também apoiava essas reflexões. Assim, montar as duas versões da quadrinha exigia o reconhecimento das palavras por diversas estratégias, já que a maioria das crianças ainda não dominava os procedimentos de decifração. Usaram a estratégia de associar a sílaba inicial das palavras, ou segmentos maiores, a nomes próprios conhecidos de memória, como Carol, para identificar “caroço” (analogia). Uma criança achou a palavra MEL dentro de MELADO, juntou o A, MELA, e outra completo com o DO. Usaram também estratégias de decodificação parcial, como prestar atenção no som e letra inicial das palavras ou focar nos sons /s/ e /R/ para saber se qual era a palavra “jardim” e qual era “jasmim”. A partir de intervenções, usaram também estratégias de analogia evocando a rima, como lembrar de como se escreve a palavra “não” para reconhecer botão e coração pela grafia do final dessas palavras, dentre outras estratégias. Pensando nos sons das palavras e na relação entre o som e a grafia, iam achando modos de descartar e selecionar as palavras. Vale reafirmar que referendamos essas estratégias de reconhecimento como pesquisa inteligente dos sujeitos que tentam compreender a escrita, e não como adivinhação aleatória ou como investimento em estratégias ideovisuais. Nessas situações, as estratégias de decodificação são fundamentais, mas não exclusivas.

Aspectos da consciência lexical, sintática, semântica e morfológica apareceram ainda mais diante dos textos escritos. A consciência de palavras só se completa tardiamente, com a apropriação da ortografia, que de fato estabiliza a forma gráfica das palavras e seus limites no texto, mas é um processo gradativo, que começa cedo, pela individualização de palavras de conteúdo - essas que têm função semântico-referencial bem definida. Na brincadeira oral e nesse kit, já se amplia mais essa consciência, junto com o trabalho de reconhecimento de palavras que a situação estabelece, pois as fichas de palavras são ali materializadas. O julgamento de gramaticalidade foi mais presente na brincadeira oral, mas os aspectos morfológicos apareceram mais no uso do material, talvez porque diante das palavras escritas (como o “do” no verso “me esqueci do... cobertor”), a restrição (de usar “flor” em vez de “cobertor”, parece maior.

As crianças mostravam-se envolvidas com as dinâmicas, reflexões e descobertas, interagindo de forma produtiva para alcançar as respostas, mergulhadas nos textos e na tarefa. Recorriam a nossa ajuda esporadicamente, especialmente em casos de tirar dúvida, quando discordavam de algo, ou para relembrar o texto, parcialmente memorizado. A estratégia fez sucesso com as crianças, desde a brincadeira oral até a apresentação de suas quadrinhas montadas, que elas liam ajustando o oral, que sabiam de memória, ao escrito, com apoio das rimas e do ritmo dos versos. Nem sempre satisfeitas com os pares de rimas alternativas dados no material, sugeriam outras possibilidades, e ficaram muito animadas quando a professora falou que podiam fazer um material deles, também com as sugestões de rimas que deram e criando alternativas para outras quadrinhas, que podiam pesquisar nas famílias, em livros ou na internet. Na quadrinha que usamos como exemplo, sugeriram as rimas para dedal: batatal, jornal, sal, dental, digital, lamaçal. Uma criança disse que não existia tal palavra e a professora sugeriu olhar no dicionário - adoraram aprender uma nova palavra!

Vale ressaltar que, tanto na exploração oral e brincante desses textos nessa turma, quanto no uso do material, registramos episódios interessantes que revelaram explorações linguageiras ricas, vividas nas interações em torno das quadrinhas, inclusive envolvendo sensibilidade à métrica e a aspectos sintáticos. Algumas crianças questionaram, na brincadeira oral, a adequação do quarto verso de “Sou pequenininha/do tamanho de um dedal [...]”, quando uma delas sugeriu “sal” como rima a “dedal”. Nenhuma outra gostou, porque “não cabia no texto”. No geral, o “não caber” foi explicado pelo aspecto semântico, mas uma das crianças disse que não ficava bom porque “parecia faltar alguma coisa” – talvez intuindo o desajuste da métrica. A pesquisadora, então, perguntou se “[...] e a mamãe no jornal” – proposta de outra mesa – também não parecia “faltar alguma coisa”, o que dividiu as opiniões. Fato é que a criança não soube identificar o que seria esse estranhamento, mas, quando a pesquisadora sugeriu “no seu jornal”, todas acharam que combinava melhor. Esse episódio pode sugerir que, intuitivamente, a criança preocupava-se com o ritmo, elemento muito característico das quadrinhas, que é dado pela métrica de sete sílabas dos versos da quadra, para além do esquema de rimas. A redondilha maior (versos de sete sílabas poéticas) define uma métrica muito familiar na nossa língua e à qual, possivelmente, as crianças com maior familiaridade com o repertório poético-musical, podem ter uma sensibilidade implícita. É digno de nota que, embora a tarefa de produção da rima tenha sido cumprida, a criança, não satisfeita, tenha se atentado ao ritmo do texto oral, ainda que sem muita consciência disso, e a turma toda também não apoiou a proposta, nesse caso, pelo aspecto semântico. Em outro episódio, uma criança protestou diante da sugestão de “dental”, que virou “fio dental” para agradar ao ritmo. Como o que agrada a um, não necessariamente agrada ao outro, ela não achou bom “carregar a mãe no fio dental”, pelo estranhamento semântico. Ou seja, podemos ressaltar esses episódios como eventos singulares reveladores do quanto a abordagem de elementos sonoros na alfabetização (ainda que também no contexto poético e lúdico) pode ainda se imbricar de forma tão substantiva a uma abordagem mais ampla da linguagem, pois revelam a articulação de aspectos fonológicos, gramaticais, rítmicos e semânticos, além de preocupação com elementos próprios à linguagem poética e muito marcantes nesse gênero oral. São pérolas de beleza do processo de interação com a linguagem, com a poesia e também do processo de alfabetização, vistos nessas experiências linguageiras ricas, vividas nas interações discursivas, envolvendo também a consciência metalinguística de vários níveis, inclusive fonológica, bem longe de práticas mecânicas de treinamento fônico - isso, claro, se nos dispusermos a ouvir as crianças diante dessas situações.

Diante de tudo isso, o material, embora candidato a novas avaliações, em outros contextos, com outras configurações, já aponta suas potencialidades nas práticas alfabetizadoras. A partir dessa experiência de avaliação que envolveu uma turma, sua docente, a pesquisadora e estudantes voluntários, podemos fazer a hipótese de que o material tem chances de ser bem avaliado em outras turmas, com a preparação prévia necessária, que envolve familiarizar as crianças com o gênero e brincar oralmente, com a adequação ao nível das crianças e uma boa organização da situação didática, sempre com a exploração cultural brincante do gênero. Do ponto de vista didático, o recurso cumpriu seus objetivos, oportunizando a reflexão sobre a escrita, a mobilização de conhecimentos metalinguísticos e a argumentação quanto às formas gráficas das palavras e ao sentido dos textos. As situações de reflexão linguística não perderam a vinculação com o texto e com a proposta lúdica, ou seja, com as práticas sociais brincantes. O material pode ser, igualmente, estruturado como jogo, a depender do modo de organização da atividade: dividir em grupos, pontuar o grupo que montar primeiro ou montar mais quadrinhas, com dinâmica colaborativa, “cavando” as palavras sem ver e buscando a quadrinha em que ela cabe, trocando peças entre mesas ou negociando palavras entre as mesas, uma série de possibilidades. Mas mesmo apenas como um simples kit de montar, o material revelou sua riqueza, as inúmeras possibilidades de exploração lúdica. As crianças não esqueceram o dia em torno desse material e, efetivamente, cobraram da professora a confecção do kit deles, com as palavras deles - soubemos depois.

Nessa turma, de crianças já mais avançadas em seu processo de reflexão metalinguística, não houve maiores dificuldades nem com a consciência de rimas, nem com os outros elementos que apareceram, tanto nas situações orais quanto durante o uso do material escrito, mostrando a riqueza de interações em torno dessas situações. Entretanto, o material deve passar ainda por situações de avaliação em turmas de 4 e 5 anos da Educação Infantil e em turmas de 1º ano de escolas da Rede Municipal, para completar sua avaliação.

 


[1] Brincadeira experimentada com alunos, quando professora da Educação Básica nos anos 1990, e com meu filho quando tinha 5 anos.

[2] Inadequados do ponto de vista do que se espera que faça sentido, mas cabe como jogo de linguagem, já que, inclusive, o nonsense é frequente nesses gêneros da cultura lúdica infantil.

[3] O material pode ser criado de forma personalizada para determinada turma, a partir das escolhas lexicais das próprias professoras e crianças ao sugerirem as novas palavras na brincadeira oral.

[4] Os pares de novas rimas foram criados em trocas interativas entre meu filho de 5 anos (na época) e eu.

[5] E por isso também será testado com outras organizações (agrupamentos) das crianças.


Um comentário:

  1. Muito bom, parabéns aos envolvidos.
    É incrível como a ludicidade ajuda a engajar as crianças (alunos) nas atividades da aula. Gosto muito dessa maneira de ensinar e aprender.

    Marisa Segunda - EDCB85

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