Quadrinhas Troca-Rimas
Conforme indiquei no post inicial que fala sobre o processo de avaliação e validação de recursos do/no LAP, postado aqui, vou postar aos poucos alguns comentários sobre o processo de avaliação e validação de alguns kits do acervo de materiais produzidos no Laboratório. E hoje é a vez do kit Quadrinha Troca-Rimas, de que gosto muito, também porque foi fruto de brincadeiras com meu filho. Trata-se de um material interessante, mas cujo processo de avaliação/validação ainda está em curso. Esse trabalho foi intenso quando o LAP estava vinculado à pesquisa que lhe deu origem, contando com muitos bolsistas pesquisadores e estudantes e docentes voluntários, e alguns se ocuparam dessa avaliação, a partir de um instrumento desenvolvido no LAP, também em processo de validação. No momento esse trabalho está mais parado, mas em breve, espero, retomaremos.
Esse material, em especial, foi confeccionado a partir de uma
brincadeira oral de trocar as rimas de quadras populares[1],
que consiste em, após as crianças conhecerem determinado repertório de
quadrinhas, propormos mudar, oralmente, o par de palavras que rima no texto. A
partir de uma conhecida quadrinha, o professor dá o mote da palavra no segundo
verso e as crianças sugerem outras palavras que rimam, no quarto verso.
Eu sou pequenininha
do tamanho
de um dedal
Carrego
papai no bolso
e mamão no... avental, milharal....
Na medida em
que a situação propõe novos textos, a partir de novos pareamentos de palavras,
que propõe novas brincadeiras a partir desse gênero tradicional, articulam-se
aí a tradição, a renovação e a invenção, dinâmica própria a esse repertório
cultural. Brincar com e a partir das quadrinhas envolve a tradição, com o
conhecimento do gênero, de quadras do repertório popular; a renovação, com o seu
uso para brincar de trocar rimas; e a invenção, pois se abre para outras
inúmeras possibilidades no próprio movimento das interações sociais em torno
dos textos e das brincadeiras, da novidade surgida de criações lúdicas e
intertextuais.
Nessa
brincadeira de permutar rimas oralmente, as substituições lexicais e a
exploração dos elementos rítmicos e sonoros relacionam-se à própria exploração
das possibilidades performáticas do gênero poético. Mas a brincadeira pode
mobilizar também a reflexão sobre as sonoridades da língua. E isso acontece desde
uma sensibilidade no nível epilinguístico (GOMBERT, 2013), só pelo brincar de
rimar e de trocar as rimas, até operações propriamente metalinguísticas, a
depender do encaminhamento dado, envolvendo, nesse caso, a habilidade de
produção de rimas. A consciência fonológica de rimas, embora não diretamente
relacionada à estrutura do sistema de escrita, chama a atenção para a dimensão
sonora da língua e confere um perfil analítico em torno da linguagem. Pesquisas
apontam que a consciência de rimas, ainda que indiretamente, contribui para a
apropriação da escrita e quanto mais as crianças tiverem, desde cedo,
experiências brincantes com os gêneros da oralidade lúdica, em que as rimas são
frequentes, mais se familiarizam com a dimensão sonora da língua - o que
contribui para a compreensão da dimensão fonográfica da escrita, que, embora
não seja suficiente, pois o que rege o sistema é a ortografia, é a base da
escrita alfabética.
Assim, essa
brincadeira oral e o kit que materializa essa exploração envolvem a consciência
de rimas, com a habilidade de produção de rimas. Entretanto, as substituições
das unidades lexicais no quarto verso não mobilizam apenas a consciência
fonológica de rimas, vai além disso. O próprio ato de permutar palavras - no
caso palavras no segundo e quarto versos - aciona a consciência lexical, que é
a consciência das palavras no texto, seja oral ou escrito. As palavras se
individualizam ao serem permutadas e a busca pelas rimas chama a atenção ao significante
sonoro dessas palavras e não a seu significado, articulando-se consciência
fonológica e lexical. Mas como o sentido importa nesses textos, além de
mobilizar a consciência lexical, a partir das substituições por novas palavras,
também ao sugerir novas rimas e checar o novo texto formado, as crianças se
deparam com a identificação da gramaticalidade do enunciado e com a adequação
semântica e sintática e, assim, a brincadeira tem o potencial de mobilizar,
igualmente, a consciência sintática e semântica, articuladas à fonológica. O
riso e a graça, quando diante de sentidos engraçados ou inadequados surgidos da
substituição[2],
ratificam o que as crianças “intuem” epilinguisticamente, ou sabem,
metalinguisticamente, sobre gramaticalidade e sentido. Houve ocorrências
interessantes nesse sentido, durante a brincadeira oral no período prévio ao
uso do recurso no processo de avaliação.
Há até mesmo
situações em que a morfologia se apresenta a consciência morfológica também
pode ser acionada, como no caso de concordar a palavra rimada com o verso, a
exemplo de “me esqueci do...cobertor”, em que a preposição “de” contraída ao
artigo “o”, não poderia acolher uma palavra feminina como “flor”, a não ser
mudando o artigo para “a” formando “...da flor”. Alguns aspectos mencionados
aqui geraram discussão nessa situação de avaliação do recurso, trazidos pelas
crianças ou mobilizados pela docente da turma e avaliadores (pesquisadoras, docentes e estudantes voluntárias).
O material
Quadrinhas Troca-rimas foi criado a partir das potencialidades dessa
brincadeira oral e o seu uso atrela-se a essa exploração prévia, para que o
sentido cultural da oralidade lúdica se preserve e o gênero quadrinha não seja
apresentado de antemão como um produto da escrita, que não é. É preciso
preservar a performatividade oral próprias aos gêneros da tradição, pois sem
ela, e sem essa vocalidade, como diz o Paul Zumthor, sem essa corporalidade,
como diz o Claudemir Belintane, a linguagem e a cultura se esvaziam.
O recurso,
que também foi abordado aqui no blog nesse post, compõe-se de quadrinhas
com lacunas nas palavras finais do segundo e quarto verso, que rimam, fichas
com essas palavras escritas, e mais outro par de fichas, que compõe a quadrinha
“renovada” por novos pares de palavras rimadas[3].
No caso do material do LAP, temos o repertório de palavras pré-definido[4],
com o qual brincamos oralmente com as crianças, antes da apresentação do
recurso - o que favorece a memorização das quadras e de suas rimas, aspecto
importante para o uso do recurso. No exemplo acima, havia as palavras
“botão/coração”, da quadrinha original, e “dedal/avental”.
Quadrinha Troca Rimas
Por ora,
apenas uma turma de 1º ano de uma escola privada utilizou o material com vistas
a sua avaliação, no início do ano letivo, visando à avaliação do recurso. As
crianças dessa turma produziram rimas sem dificuldade nas situações orais de
brincadeiras com o repertório, pois já tinham certa familiaridade com
brincadeiras orais com rimas, tanto pelo uso de jogos orais e de mesa
envolvendo essa unidade sonora, quanto pela via da literatura e da tradição
oral. Assim, as crianças não tiveram dificuldade em prestar atenção às
sonoridades no final das palavras, demonstrando boa intuição da rima,
diferentemente do que é frequente observar quando iniciamos a brincadeira com
crianças não familiarizadas com essa situação ou que não conseguem identificar
os segmentos sonoros no final das palavras. É comum identificarem semelhanças
sonoras, mas não saberem dizer em que segmento se encontra a semelhança, se no
início, no meio ou no final das palavras.
A proposta
do material Quadrinhas Troca-rimas, no entanto, com as quadrinhas escritas,
exige que se lance mão de outros conhecimentos. Dependendo de como for proposta
a situação, o texto de origem oral, mesmo registrado por escrito, pode,
igualmente, proporcionar muitas fruições e invenções. E foi o que observamos na
situação de uso nessa turma - um uso do escrito que não aprisionou nem
abandonou o texto oral.
Só após essa
exploração da brincadeira oral e da memorização, ao menos parcial, dos textos
materializados no recurso didático (era preciso
lhes lembrar trechos às vezes, pronunciando-os), o material foi disponibilizado
para uso das crianças. Foram distribuídos em três mesas com quatro crianças em
cada, cada mesa com duas cartelas de quadrinhas e suas respectivas fichas. O
recurso pode ser proposto com outros agrupamentos e dinâmicas, com pequenas
adaptações[5].
A quantidade de fichas de palavras distribuídas incide na dificuldade da
tarefa, já que é preciso reconhecer as palavras visadas em um conjunto de
outras tantas palavras. No caso dessa turma, duas quadrinhas com oito fichas de
palavras (duas do texto original e duas do texto “renovado”) foi um número
adequado ao desafio, e até fácil, em alguns casos, pois havia crianças que já
conseguiam ler as palavras decodificando-as. A maioria da turma, no entanto,
ainda acionava outras estratégias para ler, como decodificar parte da palavra
ou usar alguma dica morfológica para tentar reconhecê-la, inferir outras,
lançar mão de analogias com outras palavras que já conhecem. A brincadeira oral
prévia também apoiava essas reflexões. Assim, montar as duas versões da
quadrinha exigia o reconhecimento das palavras por diversas estratégias, já que
a maioria das crianças ainda não dominava os procedimentos de decifração.
Usaram a estratégia de associar a sílaba inicial das palavras, ou segmentos
maiores, a nomes próprios conhecidos de memória, como Carol, para identificar “caroço”
(analogia). Uma criança achou a palavra MEL dentro de MELADO, juntou o A, MELA,
e outra completo com o DO. Usaram também estratégias de decodificação parcial,
como prestar atenção no som e letra inicial das palavras ou focar nos sons /s/
e /R/ para saber se qual era a palavra “jardim” e qual era “jasmim”. A partir
de intervenções, usaram também estratégias de analogia evocando a rima, como
lembrar de como se escreve a palavra “não” para reconhecer botão e coração pela
grafia do final dessas palavras, dentre outras estratégias. Pensando nos sons
das palavras e na relação entre o som e a grafia, iam achando modos de
descartar e selecionar as palavras. Vale reafirmar que referendamos essas
estratégias de reconhecimento como pesquisa inteligente dos sujeitos que tentam
compreender a escrita, e não como adivinhação aleatória ou como investimento em
estratégias ideovisuais. Nessas situações, as estratégias de decodificação são
fundamentais, mas não exclusivas.
Aspectos da
consciência lexical, sintática, semântica e morfológica apareceram ainda mais
diante dos textos escritos. A consciência de palavras só se completa
tardiamente, com a apropriação da ortografia, que de fato estabiliza a forma
gráfica das palavras e seus limites no texto, mas é um processo gradativo, que
começa cedo, pela individualização de palavras de conteúdo - essas que têm função
semântico-referencial bem definida. Na brincadeira oral e nesse kit, já se
amplia mais essa consciência, junto com o trabalho de reconhecimento de
palavras que a situação estabelece, pois as fichas de palavras são ali
materializadas. O julgamento de gramaticalidade foi mais presente na
brincadeira oral, mas os aspectos morfológicos apareceram mais no uso do
material, talvez porque diante das palavras escritas (como o “do” no verso “me
esqueci do... cobertor”), a restrição (de usar “flor” em vez de “cobertor”, parece
maior.
As crianças
mostravam-se envolvidas com as dinâmicas, reflexões e descobertas, interagindo
de forma produtiva para alcançar as respostas, mergulhadas nos textos e na
tarefa. Recorriam a nossa ajuda esporadicamente, especialmente em casos de
tirar dúvida, quando discordavam de algo, ou para relembrar o texto,
parcialmente memorizado. A estratégia fez sucesso com as crianças, desde a
brincadeira oral até a apresentação de suas quadrinhas montadas, que elas liam
ajustando o oral, que sabiam de memória, ao escrito, com apoio das rimas e do
ritmo dos versos. Nem sempre satisfeitas com os pares de rimas alternativas
dados no material, sugeriam outras possibilidades, e ficaram muito animadas
quando a professora falou que podiam fazer um material deles, também com as
sugestões de rimas que deram e criando alternativas para outras quadrinhas, que
podiam pesquisar nas famílias, em livros ou na internet. Na quadrinha que
usamos como exemplo, sugeriram as rimas para dedal: batatal, jornal, sal,
dental, digital, lamaçal. Uma criança disse que não existia tal palavra e a
professora sugeriu olhar no dicionário - adoraram aprender uma nova palavra!
Vale
ressaltar que, tanto na exploração oral e brincante desses textos nessa turma,
quanto no uso do material, registramos episódios interessantes que revelaram
explorações linguageiras ricas, vividas nas interações em torno das quadrinhas,
inclusive envolvendo sensibilidade à métrica e a aspectos sintáticos. Algumas
crianças questionaram, na brincadeira oral, a
adequação do quarto verso de “Sou pequenininha/do tamanho de um dedal [...]”,
quando uma delas sugeriu “sal” como rima a “dedal”. Nenhuma outra gostou,
porque “não cabia no texto”. No geral, o “não caber” foi explicado pelo aspecto
semântico, mas uma das crianças disse que não ficava bom porque “parecia faltar
alguma coisa” – talvez intuindo o desajuste da métrica. A pesquisadora, então,
perguntou se “[...] e a mamãe no jornal”
– proposta de outra mesa – também não parecia “faltar alguma coisa”, o que dividiu
as opiniões. Fato é que a criança não soube identificar o que seria esse
estranhamento, mas, quando a pesquisadora sugeriu “no seu jornal”, todas
acharam que combinava melhor. Esse episódio pode sugerir que, intuitivamente, a
criança preocupava-se com o ritmo, elemento muito característico das
quadrinhas, que é dado pela métrica de sete sílabas dos versos da quadra, para além
do esquema de rimas. A redondilha maior (versos de sete sílabas poéticas) define
uma métrica muito familiar na nossa língua e à qual, possivelmente, as crianças
com maior familiaridade com o repertório poético-musical, podem ter uma
sensibilidade implícita. É digno de nota que, embora a tarefa de produção da
rima tenha sido cumprida, a criança, não satisfeita, tenha se atentado ao ritmo
do texto oral, ainda que sem muita consciência disso, e a turma toda também não
apoiou a proposta, nesse caso, pelo aspecto semântico. Em outro episódio, uma
criança protestou diante da sugestão de “dental”, que virou “fio dental” para
agradar ao ritmo. Como o que agrada a um, não necessariamente agrada ao outro,
ela não achou bom “carregar a mãe no fio dental”, pelo estranhamento semântico.
Ou seja, podemos ressaltar esses episódios como eventos singulares reveladores
do quanto a abordagem de elementos sonoros na alfabetização (ainda que também
no contexto poético e lúdico) pode ainda se imbricar de forma tão substantiva a
uma abordagem mais ampla da linguagem, pois revelam a articulação de aspectos
fonológicos, gramaticais, rítmicos e semânticos, além de preocupação com
elementos próprios à linguagem poética e muito marcantes nesse gênero oral. São
pérolas de beleza do processo de interação com a linguagem, com a poesia e também
do processo de alfabetização, vistos nessas experiências linguageiras ricas,
vividas nas interações discursivas, envolvendo também a consciência
metalinguística de vários níveis, inclusive fonológica, bem longe de práticas
mecânicas de treinamento fônico - isso, claro, se nos dispusermos a ouvir as
crianças diante dessas situações.
Diante de tudo
isso, o material, embora candidato a novas avaliações, em outros contextos, com
outras configurações, já aponta suas potencialidades nas práticas
alfabetizadoras. A partir dessa experiência de avaliação que envolveu uma
turma, sua docente, a pesquisadora e estudantes voluntários, podemos fazer a
hipótese de que o material tem chances de ser bem avaliado em outras turmas,
com a preparação prévia necessária, que envolve familiarizar as crianças com o
gênero e brincar oralmente, com a adequação ao nível das crianças e uma boa
organização da situação didática, sempre com a exploração cultural brincante do
gênero. Do ponto de vista didático, o recurso cumpriu seus objetivos,
oportunizando a reflexão sobre a escrita, a mobilização de conhecimentos
metalinguísticos e a argumentação quanto às formas gráficas das palavras e ao
sentido dos textos. As situações de reflexão linguística não perderam a
vinculação com o texto e com a proposta lúdica, ou seja, com as práticas
sociais brincantes. O material pode ser, igualmente, estruturado como jogo, a
depender do modo de organização da atividade: dividir em grupos, pontuar o
grupo que montar primeiro ou montar mais quadrinhas, com dinâmica colaborativa,
“cavando” as palavras sem ver e buscando a quadrinha em que ela cabe, trocando
peças entre mesas ou negociando palavras entre as mesas, uma série de
possibilidades. Mas mesmo apenas como um simples kit de montar, o material
revelou sua riqueza, as inúmeras possibilidades de exploração lúdica. As
crianças não esqueceram o dia em torno desse material e, efetivamente, cobraram
da professora a confecção do kit deles, com as palavras deles - soubemos depois.
Nessa turma,
de crianças já mais avançadas em seu processo de reflexão metalinguística, não
houve maiores dificuldades nem com a consciência de rimas, nem com os outros
elementos que apareceram, tanto nas situações orais quanto durante o uso do material
escrito, mostrando a riqueza de interações em torno dessas situações. Entretanto,
o material deve passar ainda por situações de avaliação em turmas de 4 e 5 anos
da Educação Infantil e em turmas de 1º ano de escolas da Rede Municipal, para
completar sua avaliação.
[1] Brincadeira experimentada com
alunos, quando professora da Educação Básica nos anos 1990, e com meu filho quando
tinha 5 anos.
[2] Inadequados do ponto de vista do
que se espera que faça sentido, mas cabe como jogo de linguagem, já que,
inclusive, o nonsense é frequente nesses gêneros da cultura lúdica
infantil.
[3] O material pode ser criado de
forma personalizada para determinada turma, a partir das escolhas lexicais das
próprias professoras e crianças ao sugerirem as novas palavras na brincadeira
oral.
[4] Os pares de novas rimas foram
criados em trocas interativas entre meu filho de 5 anos (na época) e eu.
[5] E por isso também será testado com
outras organizações (agrupamentos) das crianças.