segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Bichos Malucos

Oi, gente! 

Quando eu era professora do segundo ano, há muuuuuito tempo (era ainda primeira série que se dizia), eu fazia uma atividade bem divertida com os meus alunos, e chamávamos de Bichionário.

Era assim: cada um criava um bicho maluco, misturando um bicho com outro. Separa, junta, funde, confunde, cria, recria, inventa, e eis que surgia um bicho esquisito, formado de dois outros. Era preciso criar os seus nomes, desmontando e remontando as palavras, para escolher um nome para cada bicho inventado, a partir dos dois nomes que lhe deram origem. Às vezes começávamos pelo desenho, às vezes pelos nomes, rindo com as experimentações linguísticas. A brincadeira chamava-se Bichionário, pois depois de criados os nomes e desenhados os bichos, cada criança deveria descrever o seu animal, oralmente, para eu escrever, ou por escrito. E assim fazíamos nosso Dicionário de novos bichos: Bichionário! Lembro de um deles, muito simpático que se chamava BORBOFANTE! Adivinhem como ele era!!!???

Outros nomes legais: minhogato, tartanhoca, botucano, araranta, patopótamo, quatigre, lebelula (sem acento, libélula + lula), girafoca, hipopato, porcoruja, cavaca, pulgato, cobraleia, sapavão, maripeixe, gorilatixa, camelontra, ovelhama, abelhama, tubaranha, camundoninha, emacaco, rinocoelho, rinocegonha, cigarrato, jacabelha... e por aí vai...

Certa vez eu tentei fazer um material que eram metades de bichos estilizados que se encaixavam uns com os outros, e assim, surgiam as várias possibilidades. Mas nunca terminei. De todo modo, dando de antemão as características que serão usadas de cada bicho (ou a parte de cima de um e a parte de baixo de outro; ou a parte da frente de um e a parte de trás de outro), eliminam-se muitas outras possibilidades de fusão, como o elefante com asas de borboleta ou a borboleta de tromba e asas-orelhas, como eram as borbofantes. Prefiro que as próprias crianças criem seus bichos. Saem misturas bem legais! Misturanças, bichos bem malucos mesmo...

Muitas são as possibilidades de combinação nos desenhos e também nos nomes. Podemos usar todo o nome e juntar, podemos usar parte de um e de outro, podemos inclusive, quando as palavras permitem, criar palavras que compartilham letras, vogais ou consoantes, e não sílabas, como P em mariposa e peixe formando MARIPEIXE ou o A em ARARANTA. O importante é que ambos sejam, de algum modo, reconhecido no novo nome. Para ter graça. 

Esse tipo de criação chama-se "mot-valise", ou palavra-valise. O mot-valise, ou portmanteau-word, é uma palavra inventada, que se forma pela fusão de outras (duas ou mais) existentes no léxico de uma língua. Encaixa-se uma na outra, formando um sentido também fundido, misturado. Geralmente a nova palavra se forma perdendo o início de uma e o final da outra, implicando em supressão de sílabas (mas não necessariamente). Há mot-valises em que a sílaba final da primeira palavra é igual à primeira sílaba da segunda palavra, como em MACACOBRA. Por vezes, assim como em MACACOBRA, usa-se toda a palavra. Quer um exemplo? ARARANTA e MORANGOTANGO. Morantogotango é bem interessante, pois bastou acrescentar o M inicial e formou-se uma valise com duas palavras grandes. E o que caracteriza a palavra-valise é justamente compartilhar o sentido. Quer ver? Isso dá até piada: 

 – O que é um pontinho vermelho pulando de galho em galho?
 – É um morangotango!

O escritor Lewis Carroll, que inventou a expressão portmanteau word,  as usou e as explicou no livro Alice no País dos Espelhos, quando Humpty Dumpty explica a Alice um trecho do poema Jaguadarte: "Veja bem, é uma palavra-valise - dois significados embrulhados (empacotados) numa  palavra só". As palavras-valises carregam, como uma mala, mais de um significado. A própria palavra portmanteau designa um tipo de valise com dois compartimentos.  

Carroll utilizou palavras-valise em outros textos, como em um poema que fala do Snak, que é um monstro ao mesmo tempo tubarão (shark) e serpente (snake). O mot-valise pode tornar-se, então, um recurso de criação literária, e foi/é usado por muitos autores. Mas ele ocorre na vida de todo dia também. Quem já não viu os nomes combinados do nome da mãe e do pai ou dos avós, como Dagoberto (Dagmar e Roberto), Florisvaldo (Florisbela e Osvaldo), Francineide (Francisco e Neide)... Como bem ressalta Leminski, o tal smog londrino, terra de Carroll, é um misto de smoke (fumaça) e fog (neblina): uma fublina? Rsrsrsss...

A liberdade lúdica da língua e seu movimento constante possibilitam a criação de inúmeros vocábulos novos - seja por necessidades expressivas, práticas, científicas, poéticas ou lúdicas - e mot-valise é um desses recursos.  Certamente tem esse ingrediente cômico. A condensação de palavras implica, muita vezes, em um jogo, que conduz ao humor, ao riso, ao lúdico. O que permite esse jogo é justamente a invencionice da e com a linguagem, articulando a imaginação, a riqueza e vitalidade da língua a seus próprios mecanismos restritivos.  

Bom, voltando para os bichos... Existem vários livros que trazem essa ideia de brincar de formar animais esquisitos a partir de outros, como O Livro da Confusão, de Ilan Brenman e Fê, da Melhoramentos, e o de Valéria Belém, chamado O Livro dos Bichos Malucos, da Editora Nacional. 

Ei-los:




No Livro dos Bichos Malucos há uma história de um menino que cria o livro dos bichos malucos. 

No Livro da Confusão - em que ressoam as palavras confundir (com- fundir), fundir, fusão, confusão - aparecem a balenta, a galonça, o elefato,  o hipocaré, dentre outras misturas não exclusivas a animais. Todos eles muito bem apresentados nos desenhos de Fê.

Recentemente descobri um livro de Arnaldo Antunes e Zaba Moreau que também brinca com essa ideia e que nos presenteia com bichos bem interessantes. Chama-se Animais, e é da Editora 34. Como no livro de Brenman,  não há aí apenas misturas de animais com outros animais, mas também com outras coisas/palavras. Algumas misturas são verdadeiras pérolas, misturas elaboradas em que uma palavra só vira poesia: MARIPOUSA!

Mas vamos por ora falar das misturas de animais.


Os autores nos apresentam o papagalo, o vacavalo, o cangorila, o camalo ou cavelo, a leonça, a jabutirica, o porcodilo, a baleoa e o largato (lagarto com gato, vejam só!). Todos muito bem ilustrados. 

Esse recurso pode aparecer também em outros livros, em algum momento do enredo, como é o caso do livro "Ajidar, O Dragão da Terra", de Marjane Satrapi, da Editora Biruta, que em certo momento da trama apresenta a confusão que foi feita um dia em que a Terra começou a tremer. Eis algumas dessas confusões, usando a estratégia do mot valise:



Bom, gente, acho que já deu para ver que se trata de uma brincadeira bem interessante, divertida e cheia de bons desafios para refletir sobre as palavras, sílabas, letras. Esse é um recurso interessante para trabalhar com as crianças na alfabetização, pois favorece reflexões sobre diferentes aspectos da linguagem, desde aspectos semânticos, aos aspectos fonográficos, passando pelos morfológicos. 

O nome dos animais representa uma unidade de sentido (palavra) que, desmontada e remontada, cria uma nova unidade de sentido. Trabalha-se aí a noção de palavra, a formação de palavras e a segmentação e montagem de palavras (análise e síntese) a partir de unidades diversas, silábicas ou não. 

Podemos sugerir que cada um faça os seus, podemos dar dois bichos e ver as propostas diferentes de recombinações que aparecem, podemos dar os nomes dos bichos esquisitos e eles tentarem descobrir e desenhar. Uma criança pode criar o nome e o outro desenhar e vice-versa. Descobrir os dois animais que deram origem ao bicho inventado apresentado e depois escrever seus nomes, observando o que se mantém do nome original e o que saiu, pode ser também uma ótima situação de reflexão. Quando se tratam de nomes que compartilham mesmas unidades sonoras, silábicas ou não, refletir sobre as diferenças e semelhanças é também bem interessante. Para inventar os nomes, muitas reflexões sobre os sons e as grafias têm que ser feitas. Se a brincadeira é feita oralmente, reflexões sobre os sons, se for feita por escrito, reflexões sobre as relações entre unidades sonoras e gráficas.  

O Projeto TRILHAS, uma parceria do Instituto Natura, CE Cedac e MEC, cujos materiais estão chegando às escolas de muitos municípios do Brasil inteiro, traz em seu acervo de jogos um jogo que se chama justamente "Bichos Malucos", baseado nesses princípios que estamos aqui discutindo. São cartelas de bichos cortados ao meio para serem compostos, e cada jogador deve dar, oralmente, um nome para o bicho que ele formar, a partir de decomposições e recomposições orais dos nomes dos bichos que lhe deram origem. É bem legal! Veja mais aqui.

Uma dica de minha amiga Ana Antunes é o livro "E agora Zezé, que bicho que é?", da editora Lê, que ela disse que seus alunos adoram! É desses livros cujas páginas cartonadas são cortadas ao meio e cada metade de cada animal representado na página pode ser combinada com as metades de outros bichos, basta virar as páginas... 

Cada bicho é acompanhado por um pequeno texto e todos são relacionados a uma letra do alfabeto. Assim, temos bichos de A a Z... Outras possibilidades de brincar ainda com isso também...




Vejam como ficam, virando as páginas:


 

E muito interessante, como já sugeri antes, é sugerir que as crianças inventem os nomes dos animais formados a cada vez, considerando os nomes dos dois bichos que o originaram: que tal a obelha ou avelha? Que tal jacazebra? E elefoca? É muito divertido inventar, desmontar e remontar as palavras, ver que nomes ficam mais bacanas... 

Depois desse post, ainda encontrei um livro que é o que mais se parece com a brincadeira do Bichionário que eu fazia com meus alunos, relatada no início desse texto. Trata-se de Misturichos, de Renata Bueno e Beatriz Carvalho, da Martins Fontes. Com o procedimento de mot valise relatado acima, as autoras vão misturando um bicho com outro e formando novos bichos...Assim, desfilam a tucananta, a borbolonça, a vacalinha, a camelha, a hipopotaleia, o macacol, dentre outros... 



Se assemelha ao Bichionário tanto pelo tipo de mistura proposta nos desenhos, que é uma misturança livre e não uma parte toda de um animal e outra de outro, quanto pelo acompanhamento de um pequeno texto falando do novo bicho formado. 
Cada uma das autoras desenhou um animal e depois elas foram compondo os misturichos... E a Renata Bueno escreveu um textinho poético que fala algo sobre cada novo ser. 

O da vacalinha, que aparece aí na capa, é assim: 

"A vacalinha não gosta muito de pastar. 
Cisca, cisca, cisca... 
e de sua teta 
sai gemada para o jantar!"

Acho que por ora é isso! Essas dicas de atividades são brincadeiras garantidas e, além disso, muito produtivas como trabalho com a linguagem, pesquisa inteligente das crianças sobre as palavras, bem como com a expressão plástica. As dicas de livros e brincadeiras, como viram, ora implicam em inventar nomes, ora em inventar o jeito dos bichos serem, ora já trazem os nomes malucos e as misturas, ora as crianças é que devem combinar e criar. Ora por escrito, ora oralmente, ora desenhando, ora apreciando... Mas sempre sempre, provocando a criatividade e o sentido lúdico, e propondo brincadeiras com a linguagem! Brincadeiras que se constituem em construções linguísticas imprescindíveis para o processo de alfabetização... 

Experimentem! 
Até breve,
Lica

P.S. Depois desse post conheci um livro, espécie de bestiário - agora também um aplicativo para ipad - muito interessante nesse sentido. É o Animalário Universal do Professor Revillod, da Orfeu Mini. Olha isso:


Os animais são comuns, mas quando passamos as partes das páginas separadamente, eis que surgem criaturas fantásticas, estranhas. O gesto de decomposição e recomposição que fazemos, ao manipular o livro, cria e recria a linguagem e as imagens.  O aplicativo para ipad você pode conferir aqui e, para o vídeo do livro, aqui

Como esse, tem outro aplicativo para ipad que se chama Chamboule tout, com o mesmo princípio. Ei-lo:



Tem esse outro App bacana, pena que é em inglês, pois justamente, ele não só propõe a composição de bichos malucos formados por três partes diferentes, como também a recomposição de seus nomes, numa brincadeira bem bacana de ler os nomes malucos! Se bem que, pode ser bem interessante para aprender os bichos em inglês! Chama-se Miximal:



Tem um livro alemão que é isso aí também:




E pesquisando mais achei esse outro livro indiano, de imagens lindas, That's how I see things, com alguns animais compostos de outros. 
 




Bonito, né?
Vejam outras propostas aqui.
Inté outros bichos malucos!!!

Voltei! 
E agora com essa dica deliciosa também, de André Letria e José Jorge Letria, da editora portuguesa Pato-Lógico. É o livro Estrambólicos. O livro é desses que permitem diversas composições. Combinando diferentemente os 1/3 de páginas, podemos formar vários monstros malucos (mas eles já são malucos mesmo compostos por suas próprias partes, imagine!), As várias combinações tanto formam o corpo deles quanto seus nomes e suas características - como nas dicas acima do Animalário, livro e App, do App Maximal, e do livro alemão. Só que aqui são monstros mesmo... Muito divertido!



É isso aí!!!
Vamos amalucar os bichos e monstros!!! 
Lica

Algumas referências:

CARROLL, Lewis. Alice: Edição comentada. Introdução e Notas: GARDNER, Martin. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no pais das maravilhas/Através do espelho e o que Alice encontrou por lá. Tradução e organização: LEITE, Sebastião Uchoa. São Paulo: Fontana/Summus, 1977.
LEMINSKI, Paulo. Anseios Crípticos 2. Curitiba: Criar, 2001. Disponível em: http://www.slideshare.net/Letrasuni/paulo-leminski-anseios-crpticos-2-pdfrev