sexta-feira, 23 de abril de 2021

GraphoGame: uma análise crítica - Parte 2

PARTE 2 - SÍLABAS

Ver Parte 1 - Fonemas, que antecede essa postagem.

Essa postagem segue a anterior, agora analisando as sequências do Graphogame que abordam sílabas. A sílaba, veremos, é uma unidade fonológica importante na alfabetização em língua portuguesa, mas, ao que parece, no GraphoGame, essas são tratadas apenas como um degrau para a síntese de fonemas, uma reorganização dos fonemas em unidades maiores, seguindo a estrutura do sistema e não o processo de aprendizagem, o pensamento da criança, e as próprias características da língua. Por isso começo discutindo sobre essa questão, antes de analisar o game. 

As sílabas e o processo de alfabetização

Se sairmos do ponto de vista do fonema como ponto de partida, as sílabas são mais do que um degrau de reorganização dos fonemas. Embora a unidade que estrutura o sistema seja o fonema, as SÍLABAS são as menores unidades de emissão sonora, passíveis de serem pronunciadas isoladamente. Ou seja, as sílabas escritas têm unidades de emissão sonora correspondentes, observáveis no fluxo da fala. Tanto que as crianças associam um grafema a uma emissão silábica (como Emilia Ferreiro e Ana Teberosky encontraram em suas pesquisas) e, só aos poucos, começam a observar que ela (em geral) é formada por unidades acústicas e articulatórias menores, que são esses fones (que, no sistema, são representados pelos fonemas) ou, ao menos, a conseguir grafá-los. Isso acontece justamente porque a sílaba é a menor unidade de emissão sonora (a fala é co-articulada, os fones consonantais são pronunciados junto com as vogais, que soam. Eles soam com as vogais - são con-sontes). 

Assim, a segmentação de palavras em sílabas não é uma segmentação artificial da língua, a fala é segmentável em emissões silábicas facilmente, tanto que as crianças aprendem cedo a fazê-lo oralmente, conscientemente, muitas vezes sem ensino explícito. Bem pequenas já segmentam palavras em sílabas orais: ma-ca-co. Aliás, essas segmentações são observadas e realizadas até mesmo brincando com a oralidade lúdica, com os textos poético-musicais tradicionais da infância: “u-ni-du-ni-tê, sa-la-mê, min-guê”... “Lá vai a bo-la a gi-rar na ro-da...”, ou “chi-co-tinho-quei-ma-do, va-le-dois-cru-za-dos...” São geralmente segmentações de sílabas poéticas, no próprio fluxo prosódico do texto recitado ou cantado. Em vários de seus textos, Claudemir Belintane diz que essas possibilidades brincantes já tornam a língua altamente alfabetizável. E em contexto de práticas orais lúdicas e letradas! Em um nível ainda incipiente, vai se desenvolvendo essa sensibilidade fonológica no contexto dessas brincadeiras, que, depois, claro, podem ser retomadas metalinguisticamente para refletir de forma deliberada e explícita sobre essas unidades sonoras - e melhor, na continuidade de práticas brincantes! Tanto a cultura lúdica como a literatura infantil ofertam contextos riquíssimos de jogos de palavras em que diversas unidades linguísticas são recortadas e enfatizadas, podendo se tornar observáveis, para além da sensibilidade implícita: sílabas, rimas, segmentos morfológicos, aliterações etc. Que desperdício seria/é não lançar mão disso para refletir sobre a língua! 

Quer ver mais sobre essa importância da sílaba? Quando a criança consegue observar que FORMIGA é maior do que GATO - as palavras pronunciadas, não os animais - ela está prestando atenção ao significante sonoro das palavras, não a seu sentido semântico (o animal gato é maior do que a formiga). Poder prestar atenção ao significante sonoro e gráfico e não ao significado é ESSENCIAL para a alfabetização. A criança que consegue comparar as palavras pelo tamanho (que tem a ver com a quantidade de unidades de emissão sonora) supera o chamado realismo nominal, e já não avalia a língua pelas propriedades físicas dos objetos que representam. Essa é uma fase importante no processo de reflexão sobre a língua, revelando também os conhecimentos que vão construindo sobre a natureza notacional e arbitrária da escrita. No caso do significante sonoro, na oralidade, passam a poder analisar as palavras pronunciadas em termos de sua segmentação silábica - FOR-MI-GA e GA-TO - para julgar que palavra é maior, independentemente do sentido semântico, do tamanho dos animais, objetos ou o que seja que essas palavras representem e signifiquem. Essa é a mágica de um sistema de representação arbitrário! 

E como nossa língua é muito silábica - essa emissão é muito natural - e como, a despeito das diversos padrões silábicos existentes, o português tem estrutura silábica simples, essa unidade é muito pregnante para as crianças pensarem sobre a língua escrita. Da mesma forma que segmentos morfológicos são muito importantes em outras línguas, como o francês. No português, como em outras muitas línguas, a segmentação silábica é muito menos abstrata para a criança do que o fonema e, portanto, poder observá-las antes dessas unidades menores, para então, poder analisar esse todo em pedacinhos ainda menores, é muito mais condizente com o que a criança pode, de fato, aprender antes de compreender o funcionamento alfabético. Isso não é muito mais valioso do que aprender unidades fonêmicas, artificiais, isoladamente, para, só depois, entender para que serve esse treinamento, e só depois associá-lo a itens lexicais? De fato, a análise da língua em fonemas só se apresenta como necessidade a partir da apropriação da escrita alfabética. Mas argumentar que, justamente porque o fonema é artificial, seu ensino precisa sê-lo, me parece desonestidade intelectual. Pensar (PENSAR!) sobre a escrita indagando sobre seu funcionamento, implica em considerar, de toda sorte, a segmentação silábica. 

As sílabas dão pistas sobre os fonemas, inclusive! No contexto da sílaba as crianças vão observando que tem coisinhas menores ali. Lembro-me tanto de meu filho com 5 anos dizendo: “Ô, mãe, em ZI (de Ziraldo, que lia a seu modo) e ZE (de Zé, apelido de seu pai), tem uma coisinha parecida e uma coisinha diferente!”. Pois é...a coisinha diferente é o fone /z/, que ele logo entendeu que era o que a letra Z fazia nessas palavras, ao comparar a grafia de ambas. Agrupados em sílabas, no contexto das palavras, é possível vislumbrar o fone como realização acústica e articulatória menor, desenvolvendo a consciência fonêmica, bem como vislumbrar o fonema como unidade distintiva. Fonemas, como discutimos no primeiro post, o são em oposição a outros fonemas, assim, analisá-los em oposição em sílabas de diferentes palavras RATO-GATO-PATO-MATO (como o próprio Graphogame, ao que parece, propõe mais adiante, ao menos na versão de outras línguas) faz mais sentido do que fonema/fones isolados, como o game propõe. Analisar a invariância do fonema em sílabas diferentes iniciadas com o mesmo fonema também é produtivo: RUTE, RITA, RAFAEL, ROBERTO, REGINA... Observar essas aliterações ajuda a entender que entre RA e RU, por exemplo, tem algo diferente e algo parecido. Como o ZI e ZE de meu Joaquim! Apoiadas nas vogais que soam, as crianças podem perceber observar esse /R/ aí. Essas são operações de consciência fonêmica em contexto de palavras, em que a sílaba dá pistas sobre os fones/fonemas, chegando-se a essas unidades que estruturam o sistema de modo muito mais natural, menos artificial, e condizente com o pensamento e a aprendizagem da criança. Aliás, o contexto da palavra, justamente, também favorece a não confusão entre fone e fonema, instalada no GG. Qual o mistério em ver que isso é muito melhor do ponto de vista da criança que aprende? Consciência fonêmica não é, necessariamente, sintetizar e segmentar palavras em fonemas e muitíssimo menos tratá-los de forma isolada e associados aos grafemas, de forma meio torta como o “GG Brasil” faz. Essas são algumas das habilidades, mas tem outras, como essas que citei, de reconhecer e poder produzir duas palavras com mesmo fonema inicial ou palavras que mudam pela troca de um fonema inicial: RATO/GATO. Tudo isso leva à consciência fonêmica, e no contexto das palavras! Tudo isso leva à compreensão do princípio alfabético - isso sim necessário à alfabetização. Tudo isso pode ser alcançado considerando as explorações infantis sobre a notação da língua e sua base fonológica! O próprio José Morais refere às escritas espontâneas das crianças, nas quais exploram alguns pares de relações letra-fone que vão conhecendo, constituindo-se essas explorações em “pesquisas fônicas” (A Arte de ler, 1996, 273). Reconhece que mesmo imprecisas, são importantes para compreenderem a relação entre as formas escritas e as formas faladas das palavras. E se o autor refere a explorações de pares letra-fones, sabemos que as crianças, nessas explorações também prestam atenção à segmentação silábica. E fazem isso seja atribuindo uma letra para representar a sílaba inteira - como interpreta Ferreiro e Teberosky -, seja tentando dar conta, ainda imprecisamente, dos sonzinhos menores que observam na formação das sílabas - como interpretam algumas pesquisas e correntes da ciência cognitiva. O importante é que fazem, refletindo sobre a língua e sua emissão sonora.

Percebe como a unidade sílaba é importante na alfabetização? Percebe que argumento sobre isso porque ela é uma unidade mal compreendida, seja porque é o fonema que estrutura o sistema alfabético, seja devido a sua fama numa abordagem associacionista, nos ditos métodos silábicos ou mistos, especialmente nos que propõem atividades de ba-be-bi-bo-bu, muito mecânicas? Percebem que argumento sobre a importância da unidade sílaba de forma mais contundente, e não defendendo nenhum método silábico sintético nem o famoso ba-be-bi-bo-bu (a que se chegava por via sintética ou analítica)? Digo tudo isso porque a sílaba é uma unidade MUITO importante no português, mas ela aparece no método fônico sintético sobretudo como uma etapa da síntese de fonemas, como o reagrupamento de fonemas, um degrau até chegar à síntese em uma palavra completa. Pois eu defendo que a sílaba é uma unidade ANTERIOR ao fonema, se seguirmos tanto a emissão sonora da língua quanto o pensamento das crianças. A segmentação e síntese fonêmica, no início do processo, são procedimentos MUITO artificiais! E partir de fonemas isolados mais ainda! 

Não seria mais natural, numa língua tão silábica como a nossa, chegar ao fonema pela sílaba? E por sílabas contextualizadas em  palavras? Mesmo com foco na consciência fonêmica e instrução fônica, esse não seria um caminho mais natural, do ponto de vista da aprendizagem? Há quem defenda o phonics, mas em estratégias analíticas, em perspectivas menos artificias de abordagem da dimensão sonora da língua, sem segmentar palavras em constituintes sem realidade sonora no fluxo da fala (pronunciamos ma-la, não /m/ /a/ /l/ /a/). Mas parece que eles têm que dificultar e, no âmbito dessa concepção de alfabetização, escolher o pior dos caminhos. O raciocínio é: se os fonemas são abstratos demais, precisamos ensiná-los, treiná-los, massacrar as crianças até que entre a ferro e fogo! Começar por eles! Começar pelo mais abstrato!  Garantir para o futuro. Argumentam, por vezes, que resultados de pesquisa, evidências científicas, revelam a superioridade de procedimentos sintéticos. Mas nem todos os autores da ciência cognitiva da leitura defendem isso. Muitos não o fazem. E de todo modo, será mesmo que resultados de pesquisa que, porventura, indiquem a eficácia de treinamento fônico sintético, descontextualizado, bem mecânico, são os únicos dados relevantes para, na ação educativa, justificar tal distorção da língua e tal assalto ao caminho do pensamento das crianças ao tentar compreender nosso sistema de escrita e sua base sonora? Pois eu pergunto: se focarmos e considerarmos apenas o que FUNCIONA (e funciona em que sentido? Para quem? A preço de quê? O que é funcionar?), podemos estar perdendo o que verdadeiramente IMPORTA, em termos de apropriação da língua e da linguagem escrita. Resultados de pesquisa em áreas externas à Pedagogia, precisam de interpretação pedagógica! Levando para o absurdo, se pesquisas mostrarem que a violência social diminui se cada ser humano matar outro uma vez na vida, vamos adotar esse sistema de controle? Reparem que não estou defendendo métodos tradicionais analíticos, nem silábicos - as operações de análise e síntese são operações mentais, não processos de um ou outro método (eles enfatizam mais ou menos uma dessas operações, mas não donos delas - são operações cognitivas e linguísticas), as unidades sílaba, fonema, palavra etc, tampouco são propriedade desse ou daquele método - são unidades da língua! Não estou defendendo nenhum método tradicional, nem sendo conivente com a perspectiva fônica. Estou tentando analisar “por dentro” da perspectiva que eles trazem, me apoiando nos seus próprios referenciais e argumentos, e não apenas argumentando “de fora”, do ponto de vista de outra concepção de alfabetização. Teríamos outros tantos argumentos aí... 

Vamos ao Game 

Mas, dito tudo isso, vamos à análise do GraphoGame em si mesmo. Como o aplicativo envolve o método de marcha sintética, na fase que introduz as sílabas, segue com a junção entre esses sons/letras que vinha apresentando nas fases anteriores, para formar sílabas. 

As tarefas iniciais incluem parear dois segmento áudio (dois fones isolados) e sua representação visual (grafema) para formar uma sílaba, iniciando com a estrutura canônica CV e seguindo, meio rapidamente, por incrível que pareça, para padrões silábicos mais complexos. E sem explorar generalizações nas sílabas simples. Incluem também colocar as letras da sílaba ouvida na ordem; e  acertar o modelo dado da junção de fonema+fonema=sílaba, reconhecendo-a dentre outras sílabas. Primeiro é dado um modelo, com alguns sons/letras e depois apresenta as tarefas para o jogador realizar, sempre repetindo esse modelo: encontrar dentre as representações visuais aquela que corresponde ao som ouvido, emitido fonema a fonema ou a sílaba completa. Há essa variação nas tarefas, mas sempre no modelo estímulo-resposta. 

O feedback, como nas fases anteriores, é imediato, quando o jogador acerta ou erra a tarefa. No decorrer das sequências, mais opções são dadas como alternativas, para dificultar a tarefa de apontar a sílaba ouvida, mas sempre aquelas já mapeadas, já bem treinadas. A dificuldade que vai sendo introduzida é em termos da quantidade de opções dadas para encontrar a sílaba alvo, como no segundo vídeo abaixo. 



No cômputo final, nessa fase inicial das sílabas fica ainda mais observável que os procedimentos do aplicativo não apostam em  operações de generalização e abstração, em reflexão sobre a estrutura da língua. Além do que já discutimos sobre não tratarem a sílaba como uma unidade de emissão sonora importante, e de serem sílabas também soltas, sem as palavras.  

Os procedimentos não parecem fundamentar-se nos resultados da própria ciência cognitiva da leitura, que indicam que, ao aprender habilidades fônicas as crianças generalizam este conhecimento para a leitura de palavras novas (no caso aqui, para sílabas novas), pois vão entendendo o princípio geral. Ou seja trata-se de cognição, e ainda mais metacognição, que passam longe dessas propostas de treino. Não há, em geral, procedimentos de dar a formação de algumas sílabas, e pedir outras junções não fornecidas de antemão, para que se possa generalizar o funcionamento. Por exemplo: dar /p/ com /a/ = PA e /t/ com /o/ = TO, e pedir /p/ com /o/ e /t/ com /a/, para formar PO e TA. O básico da generalização, ausente!!! Abstração não é visada. Só treino repetitivo, só memorização individual de cada formação silábica, e repetição. E são os próprios pesquisadores da ciência cognitiva da leitura - ciência na qual a PNA diz se fundamentar - que argumentam sobre a generalização e abstração, indicando a não necessidade de mapear todas as relações fonema-grafema possíveis nem todas as suas combinações em sílabas. Pesquisas dessa corrente mostram como as crianças chegam ao princípio alfabético e às correspondências fonema-grafema muito antes desse mapeamento exaustivo - e mais, revelam também que podem chegar a isso por muitos outros métodos!!! Ainda que defendam a suposta superioridade do método fônico, mostram que não é o único possível! Uma atenção ao phonics, sim, metódo fônico, não necessariamente. Não são sinônimos, como aqui querem fazer parecer que são. Então, não, não é necessário passar por essas fases todas, tão enfadonhas, sem resquícios de pensamento ou de linguagem, para se alfabetizar. Não, não é necessário que sejam procedimentos fora do contexto das palavras. Nem motivação podemos assegurar aí - e olha que a ciência cognitiva também refere ao papel da motivação nesse processo todo! Então, não, esses procedimentos não se associam, em si mesmos, por serem vestidos de game, a práticas culturais lúdicas e atividade significativa, como alardeiam ao propagandear o GG. É uma gamificação muito mal feita do objeto de conhecimento, isso sim! Nem a forma como a “interatividade” do game é projetada, nem o interesse das crianças em aprender a ler e escrever podem garantir interação lúdica e significativa nisso aí. Voltaremos a essa discussão quando terminarmos a análise do GG do ponto de vista linguístico. 

Sílabas complexas

Assim como os dígrafos na fase dos fonemas, nas fases das sílabas também há um foco em aspectos que só se colocam como questão mais adiante nas aprendizagens das crianças, especialmente quando da conquista da escrita ortográfica. Como o caso do treino dos sons de QUE, QUI, QUA, GUE, GUI em oposição a GE, GI, CE, CI, CA. Como argumentei lá na parte dos dígrafos, isso, para crianças pequenas de 4 e 5 anos, não faz o menor sentido, e não contribui em nada com a apropriação da natureza fonológica da escrita e seu funcionamento alfabético - isso sim aprendizagens anteriores a essas particularidades da ortografia. Trata-se de convenções ortográficas necessárias para escrever ortograficamente, mas não para compreender, inicialmente, o funcionamento alfabético do sistema. Ou seja, adiantam questões que não são para a alfabetização inicial, misturando o que é necessário para aprender o princípio alfabético, e poder ler palavras, grafar alfabeticamente, e o que é necessário, posteriormente, para a fluência de leitura e para escrever ortograficamente. Acho um absurdo! 


E depois as fases continuam com as ditas sílabas complexas: abs, obs, ins, mir, can, cons, dins, lor, sans, mens, tom, vim, per, guin, prin, pons...e por aí vai! Gente, uma monte de síntese de fonemas em sílabas inclusive bem raras em palavras do universo das crianças, e na própria língua portuguesa: mirtilo, sânscrito, menstruação, tombador, constituição, lorde???? Não pensaram nisso? Certamente sim, mas será que se fiam na ideia de que memorizar esses segmentos vai ajudar a fixar na memória correspondências de segmentos maiores que, supostamente, apoiarão a leitura automática de palavras. No futuro? Ao preço da linguagem? Os próprios pesquisadores da ciência cognitiva ressaltam a importância do amálgama grafia-pronúncia e significado dos itens lexicais (palavras), para que o nosso poderoso sistema mnemônico armazene grafias para nosso reconhecimento automático, lexical das palavras na leitura fluente. Nas palavras de Ehri (2013b, p. 57), “as conexões entre grafias, pronúncias e significados são armazenadas como amálgamas representando palavras individuais na memória.” Esse processo,  ainda um tanto misterioso, mas que passa pelo processamento fonológico, conta com diferentes modelos explicativos no âmbito da própria ciência cognitiva - como a teoria de Ehri e a teoria da dupla rota de leitura de palavras. O certo é que o significado das palavras, as representações ortográficas - ou seja, a presença das palavras - é importante nesse processo todo. Pesquisas cognitivas apontam, igualmente, que unidades maiores como morfemas e sílabas podem ter também um papel importante, para além da exclusividade da relação mais miudinha entre fonema e grafema. E o GG - essa versão do GG -  foca apenas na memorização de fones e sequência de fones relacionados à grafia, seja lá a que custo! Se o sistema reagrupa os segmentos fonêmicos em sílabas e morfemas que, a depender da língua têm um papel fundamental na possibilidade de leitura e escrita das palavras, nesse game, a própria escolha das sílabas - muitas delas tão pouco frequentes na língua - parece revelar ainda mais que o aplicativo elege apenas esse aspecto fonêmico, apagando outros, a ponto de não importar muito a natureza das sílabas abordadas. Copiaram sílabas de outra língua? Será? Não me espantaria.

Será que são palavras muito familiares das crianças para ter tanto treinamento prévio dessas combinações? Procurei na memória do nosso léxico e encontrei palavras difíceis...ou não encontrei. A sílaba “pons” faz que palavras mesmo? Nem sei se existe essa sílaba em português, mas desafio quem achar uma palavra, que me responda se é parte do léxico das crianças!!! Pois tem pons lá! Só achei pons no plural de pompom e na sílaba inicial de um medicamento ... Para mim, é francês! Ainda se fosse PON, de ponte, ponta, pontapé!!! Mas para quem foca instrução fônica sintética, até pseudopalavra e "pseudo sílaba" serve, né?  

Para que essas combinações de padrões silábicos tão distantes das apropriações da alfabetização inicial, gente? Tão distantes da linguagem real!!! Vira uma mera cantilena que vai distanciando as crianças  dos sons reconhecíveis de sua língua, das palavras, da linguagem, em vez de aproximá-las. É só pseudo sílaba para treino de síntese fonêmica!!!! Depois, treinam a leitura completa das sílabas - quer dizer, dessas sequências de letras/sons que “ai de quem diga” que as crianças estão entendendo que são pedaços de palavras. Não há palavras - só as que eventualmente as próprias crianças, inteligentes que são, possam associar a esses sons. Mas pons? Mir? Cons? Blas? E mesmo guin - o que é um “guin” sem o guincho, o guindaste? E sendo assim, cadê atividade significativa?  Só porque por vezes é um sapo que acerta a flor ou um canhão que acerta um balão com essas sequências esquisitas de sons? Complicado! Aliás, a interatividade projetada do game não tem nada a ver com o conteúdo do jogo, em si. Mera distração para maquiar o fato que, se olhar bem, só tem treino maçante. 

Isso sem contar nos absurdos, seja porque fica estranho as sílabas soltas das palavras, seja porque não consideram a variação linguística, seja porque as combinações podem aparecer em contextos que não são sílabas. 


Me diga aí se O com R dá, necessariamente o som /or/ com o R bem tremido como em variantes sulistas? Me diga se A com M (que também podem estar em sequências que não formam, sozinhas, uma sílaba) dá /ã/ necessariamente, se consideramos as palavras? O som de AM em CAM de CAMARÃO por exemplo, é sempre /ã/? Na Bahia falamos mesmo /kã/ na sílaba inicial, mas em outras variedades se diz /ka/, sem nasalizar o A. Mas aí você pode dizer, se trata apenas de AM numa mesma sílaba, como em AMBOS, AMPARO (ou ANTA, com o N), ou CAM-PO, CAN-TO. Pois pergunto: a criança vai considerar só o contexto de AM em sílabas? Ela lá sabe que o que se pede é sílaba? BRUN é sílaba de quê? PONS?

E tem mais...nessas sílabas com M e N usadas em posição pós-vocálica, não há as propriedades acústicas e articulatórias das consoantes nasais, o que há é uma nasalização das vogais que as antecedem, essas letras M e N aí conferem a nasalidade vocálica. Mas no GG, no modelo dado, seus “sons” de consoante, com seu padrão articulatório, são “pronunciados”,  e depois, na pronúncia da sílaba inteira, vira só uma vogal nasal (o /m/ e o /n/ perdem, inclusive, sua capacidade distintiva, pois produzem o mesmo “som” nessa posição). Pronunciar o /a/ + /m/, de consoante nasal, e daquela forma bem forçada para ser isolado, e depois, esse som se perder na pronúncia da sílaba, que vira /ã/, é uma deturpação completa dos usos desses caracteres gráficos. Essas consoantes nasais não têm valor de consoantes aí, apenas nasalizam a vogal, então essa associação é equivocada. Contrariando essas sínteses que separam equivocadamente os fones vocálicos e nasais pós-vocálicos, em certo momento há tarefas que associam as unidades gráficas IN ou ON aos fones vocálicos nasais "inteiros": /p/ /õ/ /s/ e não /p/ /o/ /n/ /s/ ou /d/ /ῖ/ /s/, e não /d/ /i/ /n/ /s/ - o que seria, realmente, um absurdo. 

Problema semelhante vemos nas ocorrências do L em OL, AL, em que a letra tem som de U nessa combinação, não é? O L não tem aí valor consonantal tampouco, mas é pronunciado isoladamente (e artificialmente /l/), como se na sílaba tivesse o mesmo valor sonoro - mas não é (aliás, que som é esse do L, N e M?). Um pouco mais de fonologia aí ajudaria a não propor procedimentos tão esdrúxulos!  Sem contar que CRO, BLO, BRO lê-se crô, blô, brô...E pergunto: onde fica cró, bló, bró como em  BLOCO, BROCA? Ai, ai, viu? E CROCODILO, como se pronuncia? Certamente diferente a depender de sua região! 

As fases seguem, nessa proposta de muitas sequências de sons para formar sílabas e pseudo sílabas descontextualizadas, sem nenhuma aparente lógica interna na escolha dos conjuntos de sílabas, apenas combinações dadas, repetidas, pedidas e, eventualmente, a serem montadas dentre outras possibilidades dadas. Mas sempre só treino. Quando ouvimos no início de cada treino de modelo o “Temos mais sílabas para você brincar”, chega dói!!! Brincar? Onde? Que falta fazem as palavras!!! E que tipo de aprendizagem é essa que se faz pelo cansaço, pela passividade, pelo vício de seguir adiante, pela mera recompensa de acertar? Eu mesma segui “jogando”, enfadada, pela causa, mas sem conseguir parar...Vicia a seguir, provavelmente. Que aprendizagem é essa que as crianças farão pelo vício, pelo gesto de continuar, sem nenhum interesse no âmbito da língua, da aprendizagem de um instrumento cultural? É sério que são aprendizados básicos, prévios, necessários para se alfabetizar? Ou que é isso alfabetizar? Entrar a todo custo? É isso que queremos mesmo? Certamente, não. Muitos de nós, não! Temos aí, com certeza, uma questão epistemológica de fundo, assim como de concepção de linguagem. Isso, claro, já sabemos. Mas constatar que a proposta não se sustenta nem no âmbito da fonologia e da própria ciência que reclamam como fundamento, me deixa perplexa. Será um problema, em grande medida, da adaptação brasileira? Um aplicativo usado em tantos países, será que é tão limitado assim em suas outras versões? Eis outras pesquisas a se fazer. 

No final da sequência 19, as sílabas formam palavras como dão, deu, dor, zen...mas parece bem aleatório. A fase continua sendo intitulada de “sílabas complexas” e volta depois às sílabas soltas e pseudo sílabas (ao menos algumas estão longe de ser do universo de palavras das crianças). Não, não eram palavras... 

A partir da sequência 20 parece que vão aparecendo outras combinações, não treinadas, mas misturadas com as treinadas. A sequência 20 começa como se houvesse pulado alguma coisa, pois já inicia com tarefas, sem dar os modelos. Apresenta novas combinações, ainda não treinadas... e também bem arbitrárias. Será que houve outro erro aí, pularam a fase de treino, começando na tarefa? Poderia ser provável, já que é bem diferente de como vinha sendo o passo a passo, e o game já apresentou outros erros. Mas em sequências adiante, de novo, acontece. Escapa um pouco ao padrão dos procedimentos do GG até aqui, então pensei: será que “pularam” porque eu me saí bem nas fases anteriores? Mas duvido muito, a única coisa que reparei nesse sentido foi a de ter mais repetição quando eu errava de propósito uma sequência. Então, será que, enfim, chegamos a alguma  generalização? Mas são sílabas por vezes tão raras e tão aleatórias, que vislumbro pouco essa opção. Em todo caso, se assim de fininho começam a vislumbrar alguma ação menos passiva das crianças, o que continua sendo a tônica dos procedimentos é o padrão modelo-identificação de modelo dado. Por incrível que pareça, por enquanto são os únicos passos em que, para avançar de fase, exige-se alguma generalização das crianças, já que não houve modelo... Mas isso denotar um vislumbre de sujeito mais ativo na tarefa dada, ainda acho cedo concluir. E se as crianças que responderem já estiverem mais adiantadas em seu domínio do funcionamento alfabético, pergunto: para que precisam seguir nessa tortura de treinamento exaustivo? Sim, o treino segue... Não acaba nunca! Mesmo tendo começado sem modelo, e haja repetição!!! Repete com sapo, com canhão, com cinema, com balão...

É digno de nota que a forma como organizam os conjuntos de sílabas de uma tarefa não deixa muito claro se pretendem que as crianças prestem atenção aos fonemas ou se investem em memorização do todo da sílaba - o que seria um procedimento estranho a essa perspectiva. Mas o fato de parecer sílabas meio aleatórias, com apenas uma ou outra apresentando um som distintivo, fica parecendo que contam com uma memorização do todo também, não? Apenas algumas como FLA, FLU; CLA, CLO, CLE, e FLA, CLA, formam pares mínimos (de sílabas, não de palavras) - e colocam as crianças no desafio da análise fônica. Ou esperam que nesse ponto as crianças já estejam analisando as sílabas em fonemas? E aí de novo se coloca a questão - para as que já identificam as segmentos decodificando, para que esse treino seguir tão exaustivo? E as que não decodificam, seguem como? Memorizando o todo? É já visando ao reconhecimento lexical, automático? E as que ainda só conseguirem via rota fonológica, e as que nem isso? Duvido que haja pesquisa brasileira sobre os diferentes níveis das crianças na interações com essas tarefas. Até porque, o que vale para eles é reproduzir a instrução fônica treinada, o nível é medido pelos acertos e erros... Coitadas das crianças! 

Bom, o aplicativo segue, interminavelmente, nesse treino de sílabas que em nada lembra a linguagem efetivamente falada/escrita! Os defensores da PNA argumentam que os modelos fônicos não devem ser confundidos com os antigos modelos de natureza comportamentalista, cuja prática pedagógica, essencialmente associacionista, consistia em estímulos e respostas. Mas é isso que é o GraphoGame faz... Só há treino de estímulo e resposta, sem pensamento, sem entendimento nem do que estão treinando. E argumentam isso reclamando as evidências científicas da ciência cognitiva da leitura. Só que eles elegem, dessa ciência, alguns aspectos, silenciando e apagando completamente outros. Recortam a seu modo o campo científico para validar suas escolhas pífias, que são, não nos esqueçamos, atravessadas de interesses mercantis e elementos altamente ideologizados. 

Dito tudo isso, então, não, o método fônico sintético não é o único método que garante a consciência fonêmica e a apropriação das relações fonema-grafema (que chamam de instrução fônica, já indicando na expressão certo modo mais restrito de abordá-las). Não, o método fônico sintético não é sinônimo de phonics, nem de consciência fonológica, fonêmica. Aliás, sim, o método silábico ou de palavração - que continuam sendo aplicados aqui amplamente - chegam a isso também. Pesquisas na área revelam que grande parte de docentes seguem aplicando procedimentos que focam na decodificação. Então, não, no Brasil não adotamos uma metodologia global ideovisual, whole language - como argumentam, para dizer que é novidade isso de defender o ensino explícito e sistemático da estrutura do sistema de escrita.

Atenção! Não estou defendendo tais métodos em si mesmos, os métodos tradicionais foram questionados por diversos motivos (ver aqui), mas as unidades que eles focam, são unidades da língua, e certos procedimentos que elegem como caminho para alfabetizar  remetem a certas operações linguísticas e cognitivas, nada disso é propriedade de cada método nem deve ser jogado fora com a água do banho. Estou dizendo que o princípio alfabético e a consciência fonológica e fonêmica não são domínios do método fônico, ainda mais do sintético (na origem ele é sintético, mas depois ganhou outras roupagens). Estou dizendo que os resultados de pesquisas cognitivas não são unânimes em afirmar que o único caminho válido para alcançar a alfabetização é seguir a estrutura do sistema (dos fonemas isolados ao seu reagrupamento em unidades maiores, ou seja, à síntese em sílabas e palavras). E não, nem todos os adeptos do phonics dizem “não” ao processo de aprendizagem, ao pensamento da criança (em que as crianças abstraem e dão conta, gradativamente, das unidades fonêmicas, ao irem se apropriando da língua escrita, e não previamente). Nesse modo de reduzir o phonics a esse procedimento sintético artificial estabelece-se uma dicotomia, sim, entre esse treinamento e a apropriação da linguagem escrita em sua complexidade. Argumentar que a escrita, diferentemente da fala, não é natural, não é justificativa para defender uma artificialização da língua e do seu ensino. O fonema não é natural - isso é justificativa para tornar o seu ensino mecânico? As crianças pensam sobre a língua, sobre a dimensão fonológica, e podem abstrair o fonema com situações de reflexão, com ensino sistemático que considere o pensamento da criança e a língua efetivamente falada e escrita, não um arremedo de língua e escrita. Ademais, se podemos compreender que o sistema é uma ferramenta artificialmente criada e até que o cérebro precisa se adaptar para essa nova capacidade - como argumenta a perspectiva que embasa o Graphogame - ele é também um instrumento cultural e precisa ser tratado como tal, como já defendia Vygostsky nos anos 1930! 

Enquanto essa perspectiva se esforça para estreitar o que conta como evidência ou conhecimento válido para pautar a alfabetização de crianças, muitos defendem a natureza multifacetada da linguagem escrita e modos mais significativos, contextualizados e reflexivos de abordar a sua faceta linguística. Há modos de se refletir sobre as diversas unidades fonológicas, bem como a sua representação gráfica, de forma significativa, reflexiva, verdadeiramente lúdica e letrada. Mas mesmo dentre as pesquisas e os pesquisadores da ciência que a PNA reclamam como base de suas formulações e, consequentemente, do Graphogame, há muito mais complexidade e muito menos unanimidade do que nossos governantes e seu ministério querem fazer parecer. Entre resultados de pesquisa cognitivas e o que funciona para alfabetizar crianças há muito menos certezas do que se prega e, jamais, um caminho único e verdade última como quer a retórica da “alfabetização baseada em evidências científicas” - ou baseada na ciência, como se não o fosse antes disso. Aliás, desde quando se preocupam mesmo com ciência, em outras áreas? A retórica da ciência é muito bem montada para lustrar uma perspectiva muito reducionista e robotizante de alfabetização de nossas crianças. Ideologia, não ciência. O próprio José Morais, guru dos defensores da PNA, a despeito de enfatizar procedimentos de síntese e segmentação fonêmica, diz, comentando sobre as relações fonema-grafema: “Que relações devem ser instaladas entre decodificação e significação? As correspondências podem e devem ser aprendidas no contexto das palavras” (A Arte de Ler, 1996, p. 274). E não apenas por uma questão de motivação, mas devido ao apoio que isso dá, diz ele, à elaboração de representação mental dos padrões ortográficos das palavras, necessário ao domínio da leitura e escrita. E o GraphoGame... 

Insisto nisso, pois é preciso reconhecer que aprender a ler e escrever são processos complexos, que envolvem salas de aula, famílias e culturas, não podendo ser simplificados de tal modo que se perca de vista a linguagem, a cultura, o pensamento e os sujeitos. O que funciona em termos de alfabetização? Vamos mesmo crer e apostar todas as fichas de que a consciência fonêmica e instrução fônica sintética, como ponto de partida e núcleo central de todo o processo de alfabetização, vão resolver a alfabetização das crianças? Mesmo no âmbito de um método direto-sintético, por que escolher iniciar pelo caminho dos fonemas isolados e da ausência de palavras? Será que a explicação de que para o cérebro se adaptar às exigências da escrita, e se especializar no reconhecimento de letras e palavras, é preciso uma prática contínua das correspondência grafema-fonema, justificaria tal abordagem a um preço tão alto? Há contradição entre prática contínua e generalização, metacognição? Ainda que treinamento de instrução fônica sintética resultasse em habilidades melhores de decodificação e leitura fluente (e os dados não são unânimes aí), precisamos apostar todas as fichas nesse aspecto ao preço de tantos outros? Ainda mais que há dados que mostram que as crianças aprendem o phonics por outros caminhos? Então gente, como li num artigo internacional sobre o GraphoGame - repito: no esforço de determinar o que funciona, podemos perder de vista o que importa.

E aí eu faço mais uma pergunta sobre isso: o que importa aprender na pré-escola? O GG é para crianças desde 4 anos! Poderia responder a isso com vários argumentos relativos ao que acredito do ponto de vista das concepções de linguagem, aprendizagem, infância e Educação Infantil que acredito. Mas deixo isso em suspenso, por ora, e respondo com um argumento do próprio José Morais (A arte de ler, 1996, p. 281): “Deve-se preparar a criança para a aprendizagem da leitura tentando ensinar-lhe análise fonêmica desde a escola maternal? Minha resposta é não!”. E ele continua: “O treinamento para a análise fonêmica é prematuro fora da situação de aprendizagem da leitura, mas isso não deve eliminar da escola maternal toda a atividade de reflexão metalinguística”. E o autor segue falando, justamente, de reflexão (reflexão!!!) sobre segmentos maiores da língua e, quanto a sua forma sonora ele ressalta, justamente, que segmento? A sílaba! A capacidade de analisar a fala em sílabas! Mas o GraphoGame...

Claudia Moreira estudou, do ponto de vista da linguística, o papel da sílaba na alfabetização e ressalta que é na correlação entre essa unidade fonológica - que a criança conhece, conscientemente, na oralidade, desde cedo - e as unidades gráficas, que a criança descobre e compreende a natureza alfabética da notação escrita, em suas explorações do material gráfico. Justo porque a sílaba é a unidade mínima de emissão sonora, justo porque a sílaba dá pistas dos fonemas, justo por tudo isso é que é por ela que se chega ao fonema, abstrato e não prévio à escrita alfabética. Tudo isso favorecido porque as crianças pensam, desenvolvem estratégias, generalizam, constroem analogias, analisam e reorganizam seu pensamento a partir dessas explorações e das mediações docentes. Já no Graphogame... Para que mesmo, então, torná-lo prévio, forçadamente, e desde os 4 anos? Para supostamente prevenir possíveis dificuldades no processamento fonológico de uns e outros? Justifica?   

Quer saber mais sobre alguns aspectos da reflexão metalinguística na Educação Infantil, veja esse artigo meu. E mais o capítulo aqui.

Na próxima postagem, vamos discutir as fases do GG que chegam às palavras. Sim, só mais ao fim chega às palavras! Mas, para começo de conversa, as fases já se iniciam sem dar bola para as sílabas, justamente... focam a síntese de fonemas da palavra completa, nenhuma atenção à segmentação silábica das unidades lexicais...nenhuma atenção a essa unidade mínima da emissão sonora, a sílaba, que desaparece aí (ao menos nesse início). A escolha é sempre a estrutura do sistema, jamais o ponto de vista da aprendizagem da criança.  

E veja aí... ainda escolheram a palavra RIU (pretérito perfeito do verbo RIR) em vez de RIO (substantivo) para não confrontar a criança com a letra O com som de U, mas criando uma confusão pela falta de contexto enunciativo: que criança vai pensar em um verbo conjugado em vez do rio onde toma banho ou vê cortando as terras com suas águas? Sem o contexto para essa palavra, RIU, de novo, essas escolhas do GG denunciam tanto a complexidade da linguagem quanto a inoperância do aplicativo para dar conta dela.

Mas falaremos em breve das palavras! 

 

Referências (algumas)

As considerações feitas nessa postagem são frutos de estudos a partir de diversas fontes. Por ser um gênero post, menos informal, me atenho a poucas referências de minhas argumentações. Quando isso virar artigo, as referências serão mais bem cuidadas, claro. De todo modo, indico aqui as obras básicas da ciência cognitiva da leitura e da linguística que guiam minhas reflexões nesse post.

EHRI, C. L. aquisição da habilidade de leitura de palavras e sua influência na pronúncia e na aprendizagem do vocabulário. In: MALUF, M. R.; CARDOSO-MARTINS, C. (orgs). Alfabetização no século XXI: como se aprende a ler e a escrever. Porto Alegre: Penso, 2013.

MORAIS, J. A arte de ler. São Paulo: Ed. UNESP, 1996.

MOREIRA, C. M. A sílaba na alfabetização de crianças e adultos. Curitiba: Appris, 2017.

SNOWLING, M. J.; HULME, C. (orgs). A ciência da leitura. Porto Alegre: Penso, 2013.

 

sexta-feira, 19 de março de 2021

GraphoGame: uma análise crítica



PARTE 1 - FONEMAS

Essa postagem congrega diversos posts que fiz sobre o GraphoGame, e que organizo aqui para não se perder no Facebook. Analiso por partes, iniciando com as fases de apresentação dos fonemas vocálicos, passando pelos consonantais, dígrafos até a síntese deles em sílabas e palavras. A crítica se dá em três aspectos, que vou problematizar ao longo do texto: sua natureza fônica, sintética, na abordagem da língua; sua eleição pelo treinamento envolvendo operações cognitivas simples, como a repetição, memorização e reprodução de modelos em detrimento de operações complexas de reflexão, generalização; sua natureza de jogo, de atividade lúdica, que visa à aprendizagem significativa. O que vou falar aqui são as minhas impressões a partir da perspectiva de alfabetização subjacente, da concepção de aprendizagem que defendo, da perspectiva de jogo, lúdico que acredito, e da experiência de jogar. Vamos lá!

Embora eu seja defensora de situações de reflexão sobre a linguagem escrita em contextos brincantes ao invés de práticas mecânicas, descontextualizadas e enfadonhas, embora dentre essas situações estejam os jogos e, nesse escopo caibam também os jogos digitais como contexto interessante para tais aprendizagens, venho aqui dizer o que penso desse tal GraphoGame.

O GraphoGame foi desenvolvido na Finlândia e usado em diversos países, de diversas línguas. Foi criado pela empresa finlandesa GraphoLearn, para crianças com dislexia, e aperfeiçoado para alfabetizar crianças entre 4 e 9 anos. Foi adaptado para o português pelo Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (InsCer), ligado à PUC-RS. Há estudos nacionais e internacionais sobre seu uso com crianças com dificuldades no processamento fonológico. Crianças que precisam de investimento maior na estrutura fonológica do sistema podem, de fato, ser beneficiadas com procedimentos fônicos (relações entre fonemas e grafemas) mais detalhados, e talvez até de um passo a passo mais lento e abarcando cada fonema. Mas será que desse jeito? É será que todas as crianças precisam desse fluxo tão lento e tão repetitivo, baseado em memorização? E será que esses procedimentos têm o mesmo efeito em todas as línguas? 

O GraphoGame lançado, no Brasil, pelo MEC, no contexto do programa Tempo de Aprender, uma das implementações da Política Nacional de Alfabetização - PNA. É destinado a crianças de 4 a 9 anos e, portanto, abrange crianças pré-escolares - gravem isso! No site do MEC, bem como no Manual do professor e usuário, o GraphoGame é apresentado como um aplicativo e/ou software, mas também é referido como um jogo digital, constituindo-se em uma ferramenta de apoio à alfabetização. 

Em termos de políticas públicas, não vou nem comentar o fato de que o jogo exige, evidentemente, dispositivos (celular, tablet, computador) e acesso à internet para baixar, mas lembro de indagar sobre para quem são mesmo essas políticas do MEC afinal. Mas essa é outra conversa. Vou me ater, por ora, ao game em si mesmo. Quero lembrar que o fato de esse "jogo" ser resultado de uma iniciativa científica internacional não é garantia de sua qualidade, nem que se possa generalizar os resultados e o seu alcance para todas as línguas, nem tampouco que trazer bons resultados em termos de consciência fonêmica valide, necessariamente, os modos de se chegar lá e seus procedimentos. Além disso, já sabemos que enunciar pomposamente que o jogo é “baseado em pesquisa científica” significa baseado em uma única vertente de ciência, validada como verdade última, e carecendo de interpretação pedagógica. A despeito de afirmarem que "o aplicativo apresenta uma dinâmica de jogo baseada em evidências científicas", não podemos esquecer que ele envolve UMA perspectiva de ciência, ignorando dados de outras pesquisas, UMA concepção de alfabetização, não a única, em nenhum país, e uma perspectiva cognitiva, sintética, fônica, não a única marcha defendida pela Ciência cognitiva da leitura, referência - ao menos em teoria - da PNA. Além disso, em cada país, esse aspecto da aprendizagem focado pelo "jogo" pode ser agenciado de uma forma diferente da panaceia que vem sendo pregada por aqui. E tem a adaptação à língua...

Referido, por vezes, como um aplicativo de treinamento audiovisual ou ambiente virtual para a aprendizagem de habilidades fonológicas, tem um modo escolar e um modo doméstico. A criança faz seu avatar, que, na versão doméstica, vai circular em um mapa e, a depender da escolha que faça, vai para alguns ambientes, ou seja, espaço tridimensionais simulados, como em diversos jogos digitais. Há assim, certa variação da ambientação e modo de jogo, mas sempre com a mesma estrutura subjacente: ouvir os sons e ver as letras/sílabas, observar os modelos dados e repetir, encontrando os sons que forem pronunciados (representados por letras ou sílabas). A perspectiva é sintética, indo da letra/fonema, passando por sílabas até chegar às palavras completas pela síntese de fonemas. Isso porque o jogo se baseia no método fônico, sintético. Não sei ainda quanto à adaptação brasileira, mas em geral, em outras versões de outros países, o GraphoGame treina estímulos auditivos e escolhas ortográficas para unidades maiores, como rimas, palavras e pequenas frases. Mas começaremos com o nível das letras/fonemas e sílabas, que comentarei no decorrer dessa análise.

Em termos de jogabilidade e design, há enquadres diferentes, mas as tarefas linguísticas são sempre do mesmo tipo. Assim, a mecânica do jogo - se é que podemos dizer que há uma - é simples, apenas embrulhado em diferentes ambientações. Há, assim, variação de ambientes e uma impressão de escolha de caminhos no mapa, mas na verdade há uma progressão sempre linear, bem repetitiva. A variação de ambientes, que dá a impressão de variação de tarefas e de escolha de caminhos, no entanto, não impede que lá pelos 30% do jogo jogado, já se torne meio enfadonho, previsível, chato. São sempre as mesmas ambientações e sempre a mesma estrutura subjacente. O treinamento fonêmico começa logo a ficar na frente do jogo!!!! Será que não se passa o mesmo com as crianças? O simulacro de interação não me parece que sustente o interesse, a não ser por um impulso a seguir em frente para ver se chega a algum lugar mais interessante, que nunca chega. Muita repetição, muita passividade do "jogador". Não sei... Convém ressaltar que há ganhos de pontos, com "recompensas", mas é pífio no que isso se reverte, no final das contas, sendo elementos assessórios, externos ao jogo, não revertendo em nada na estrutura do próprio jogo. Talvez seja para criar, justamente, algum interesse em seguir com recompensas para poder mudar o cabelo, a roupa, o calçado e acessórios do avatar ou para preencher um livro de paisagens com figurinhas de animais. Tudo acessório.

Li que o GraphoGame traz a instrução fônica em um ambiente, além de (dito) lúdico, também adaptativo, ou seja, parece que à medida que a criança vai acertando, os desafios vão ficando mais difíceis. Deve ser tipo apresentar as letras/sons focados dentre mais letras e sons, para dificultar a identificação. Não dá para perceber isso jogando (talvez se eu criar outro avatar que erre mais vezes eu possa comparar e sentir mais isso), mas não sei se aguento. O certo é que, mesmo com a taxa alta de acertos (errei aqui e ali de propósito para ver o que acontecia, ou o erro escapuliu jogando rápido), achei muito repetitivo, moroso, quem acerta deve querer logo ir adiante, mas tem que repetir ainda o que já entendeu - especialmente porque é só repetição de modelos. Sou adulta alfabetizada, certo, temos que ver com as crianças, mas... As crianças são espertas, querem é jogar! Mas cadê mesmo o jogo? Outra coisa que vale ressaltar é que não há como pular de fase, mesmo de vez em quando tendo uma espécie de teste de conhecimento. Assim, as crianças mais avançadas, mesmo enfadadas com aquelas associações de sons e letras, têm que passar por todas as fases para chegar em um nível que ofereça algum desafio em termos de acerto. Na versão para a escola há como repetir fases, mas não avançar. Já aí, se é um treino que envolve instruções fônicas, nota-se que a natureza de jogo fica meio perdida, pois para esses que não são desafiados a reconhecer as grafias correspondentes aos sons, os procedimentos viram meros cliques para jogar uma bomba nas bolas ou dar de comer a um bicho marinho, sem função didática ou lúdica. Jogador que segue passivo, sem desafios e, provavelmente, sem interesse...

Após essa apresentação breve, falaremos em seguida dos procedimentos linguísticos do GraphoGame (GG), analisando-os do ponto de vista da alfabetização. Incomoda-me muito o alardeamento laudatório e a naturalização efusiva de algo complicado embrulhado em forma de jogo...

No início...os fonemas vocálicos...

Na análise do game do ponto de vista da alfabetização, para analisar as fases que envolvem a apresentação de letras e sons, partimos da premissa de que é um game assentado no método fônico sintético, o que quer dizer que NÃO parte de PALAVRAS, que são unidades significativas e contexto da própria realização do fonema.

Advirto que isso de sentir falta das palavras não é só para dar um contexto significativo à aprendizagem, não. Esse aspecto é muito importante, fundamental, numa perspectiva que considera a língua como um instrumento cultural e a sua aprendizagem como um processo ativo de pensamento sobre um objeto significativo, sociocultural. Mas o que ressalto quanto o contexto da palavra é um aspecto estrutural do funcionamento do sistema de escrita. Numa língua que não é transparente (como o finlandês é!!!!), o som das letras depende, em certos casos (ou em muitos casos), do contexto da palavra. O português é semitransparente, o contexto da palavra é fundamental para a realização fonêmica de algumas letras. Veja alguns exemplo disso referente aos fonemas vocálicos, por onde começaremos nossa análise: observe o som da letra E nas palavras CABELO, BELA, CABIDE e BEM. São sons completamente diferentes, sem uso de nenhum acento para determinar essa variação. Pois bem, isso é completamente ignorado no jogo quando se aborda os sons das letras isoladamente.

Falaremos mais sobre a importância do contexto da palavra quando analisarmos as fases dos fonemas consonantais. Mas vamos começar pelas fases que abordam as vogais e seus sons. Como os procedimentos do "jogo", decorrentes da chamada instrução fônica, associam os fones isolados (os “sons” das letras) às letras - como é esperado no âmbito desse método sintético - o aplicativo começa apresentando as vogais (letras), depois os sons das vogais. Nessas fases iniciais já observamos grandes esquisitices... 

ATENÇÃO: advirto que, como não falo para linguistas, não uso aqui a representação dos fonemas pelo alfabeto fonético internacional (IPA), mas isso para facilitar o entendimento de educadores. 

Primeiro, os nomes das vogais são apresentadas, e até aí, tudo bem, assim como quando apresenta as letras (vogais) maiúsculas e minúsculas, mais ao final dessas fases. Nada grave se, além do game, nesses termos, houver outras estratégias mais contextualizadas e significativas de abordagem dessas letras, seus nomes e traçados, nas práticas alfabetizadoras. Faz parte. Mas quando vai apresentar os sons dessas vogais, eis a confusão! O som das letras E e o O são apresentados como /ê/ e /ô/. Como assim? E os sons /é/, /ó/ bem como o /u/ e /i/ átonos que essas letras também assumem? E as nasais? 


Ah, aparecem, mas sabe como? Com acentos! Veja a bizarrice que isso cria. Em oposição ao som /ê/, representado pela letra E, aparecem no rol de escolhas no jogo o som /i/ e o som /é/ representados pela letra I e É, com acento!!! Gente, isso é um absurdo sem tamanho! A letra E pode ter som de é, ê ou i, sem acento nenhum. E pode ser nasal, quando no contexto aparece algum marcador de nasalidade, não necessariamente o til, como é o caso dos dígrafos vocálicos (AN, AM, EN, EM....). Nem sempre o nasal é marcado com til, nem os sons abertos e fechados com acento agudo e circunflexo. Os acentos aí me parecem denunciar essa mistura equivocada de realização sonora e grafia.

Que confusão de letra e som! No nosso sistema há 5 vogais letras que devem representar ao menos 12 fonemas vocálicos. A via de abordagem dessa realidade do sistema ortográfico do português é completamente artificial no aplicativo. Representar os sons das vogais com acentos é misturar completamente letra e som, que mais atrapalha do que ajuda. É um desserviço à aprendizagem do funcionamento da língua. E isso acontece, sabe por que? Justamente porque não há contexto de palavras! Se era pra simplificar, me parece que complicou mais...Ou estão ensinando o que os acentos mudam no som das letras? É para aprender acentos???? Parece, né? Muito confuso tudo isso... Linguistas, socorram aí!!! É tosco demais! E nem falamos ainda que confundem fone e fonema! Chegaremos lá!



Admito que parte disso pode ser um problema da adaptação do GG à língua portuguesa e não da proposta do aplicativo em si mesmo. Lembremos que sua origem é na Finlândia, cuja língua é uma das mais transparentes, cada letra corresponde a um fonema biunivocamente. Cada país fez sua adaptação a sua língua, e aí, já viu, né? 

Nas línguas transparentes as relações entre fonemas e grafemas são diretas, as opacas apresentam uma relação entre grafema e fonema menos consistente, bem mais complexa e arbitrária, fortemente dependente do contexto das palavras, o que requer, evidentemente, mais tempo de aprendizado e outras estratégias além da instrução fônica. No inglês, por exemplo, de ortografia muito opaca, é frequente precisar ver a palavra inteira para saber como pronunciar suas partes. A alfabetização exige, por isso mesmo, o tratamento de certas sequências de letras, não bastando relacionar letras a sons isolados. Essas são estratégias do inglês. Outras línguas exigem outras e, portanto, é preciso considerar as particularidades do português para propor procedimentos de instrução fônica como os do GG. Então pergunto, podemos garantir que a adaptação brasileira, feita pelo Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (InsCer), olhou para nossa língua, efetivamente? Consultou linguistas ou apenas a perspectiva cognitivista? Deixou-se influenciar pelo ranço de colonizado desse governo e considerou a estrutura de versões europeias, de ortografias diferentes da nossa? A adaptação ao francês (também mais opaca que o português), pelo que li, respeita as particularidades daquela língua, que tem muitas letras mudas (mudas no contexto das palavras) e cuja morfologia é muito importante para a decodificação. Podemos confiar nessa adaptação ao português? A pedido de um governo que só valida e adota o que vem do estrangeiro e que sublinha com tintas fortes esse viés de “colonizado”? Adaptaram mesmo para a estrutura de nossa língua, de ortografia semitransparente, ou apenas a suas realizações sonoras? O uso de acentos foi o jeitinho enviesado que arrumaram para contornar a complexidade e não transparência do sistema? De driblar o sistema vocálico? São perguntas que me vêm quando vejo tais escolhas equivocadas, que se repetem também quanto aos fonemas consonantais. 

É claro que em finlandês, aprender as correspondências entre letras e sons é muito mais fácil e rápido! É uma língua de ortografia altamente transparente... A chamada profundidade ortográfica tem tudo a ver com essa discussão, porque o que pode funcionar em uma língua pode não ser tão produtivo em outra, ou ao menos devem gerar diferentes expectativas em relação às aprendizagens. Mas isso, me parece, também tem sido completamente desconsiderado. Parece que a conclusão a que chegam sobre essa questão é: já que é mais difícil, já que não são relações diretas, mais motivo para treinar mais e para destorcer a estrutura fonológica de nossa ortografia, para caber nessa instrução fônica artificial. Eles usam o próprio argumento da não transparência para justificar o massacre às crianças. 

Os fonemas consonantais...e só piora...

Após apresentar o nome das vogais e seus sons (da forma enviesada que comentei sobre as fases iniciais do “jogo”), os sons das consoantes são apresentadas, no mesmo esquema de dar o modelo e solicitar que as crianças relacionem o som pronunciado com a letra. Sempre isso modelo e repetição, memorização e reprodução do modelo dado. E, como nas vogais, a falta do contexto das palavras cria uma ilusão artificial de transparência, na qual cada letra se associaria a um fonema. A voz não é mecânica - ainda bem, já pensou? - mas a pronúncia de sons isolados soa sempre estranha. A tarefa, geralmente, é encontrar a letra que representa o som ouvido dentre as múltiplas opções de letras dadas (vai aumentando o número de opções), no ambiente escolhido pela criança (na versão para escola não há a escolha, mas as fases ficam abertas para poder serem retomadas).

Quando entramos na parte dos fonemas consonantais, já fica bem claro que o GG, em verdade, está mais para um aplicativo gamificado de treinamento fônico do que para um jogo. Vamos continuar analisando-o do ponto de vista das tarefas que propõe para problematizar tanto seu valor na alfabetização, quanto sua natureza de jogo. Como o fonema, no método fônico, é uma unidade bem importante, e é um ponto nevrálgico na crítica a ele, vamos analisar e discutir com calma esse aspecto. Lembro que busco fazer a crítica não apenas de fora, do ponto de vista de outra concepção de alfabetização, mas buscando os próprios termos deles, indo às fontes que eles mesmo se baseiam.

Os procedimentos do GraphoGame, de marcha sintética, partem da apresentação de “fonemas”, já em associação com as letras. Não que a apresentação de fonemas isolados oralmente, sem associar a letras, seja melhor - na verdade também não faz sentido, justamente porque o fonema é uma unidade muito abstrata. Mas com isso, cria-se uma confusão danada, como foi também com os fonemas vocálicos, devido ao fato de desconsiderar que o contexto da palavra é que define, muitas vezes, a realização do fonema, em ortografias não transparentes. E isso vale para as vogais e também para muitas consoantes. Quer um exemplo? Qual o som da letra R? Depende! Se for em RATO é um som, se for em URUBU é outro, ou em TRUTA, que não vem sozinho, mas dando um certo “tiro” junto com o T. E o som do R em PORTA? Ah, depende da variedade linguística, né? Onde fica a variação linguística nesses procedimentos que investem numa associação direta entre letras e sons isolados? O contexto da palavra é TUDO para dizer o valor de um fonema! A escrita nota a ortografia, não a fonologia. A fonologia é uma base, mas não dá conta da escrita. Esse é o problema de uma ênfase exacerbada na instrução fônica muito antes da apropriação do princípio alfabético. Mas, enfim...eles acham que treinar essas relações previamente ensina esse funcionamento, né? Processo de aprendizagem, construção do conhecimento não existem nessa perspectiva, aprender é só o resultado do ensino explícito e ponto. Não importa saber para que e porque aprender tais coisas, o que os sujeitos farão com isso e como se relacionam com esses elementos... Mas por ora, não vou nem entrar nessa conversa de que são perspectivas epistemológicas completamente diferentes. Continuemos, por enquanto, na linha de refletir linguisticamente.

Só nas ortografias transparentes, rasas, ou “um para um”, como o finlandês, por exemplo, cada fonema corresponde, em quase sua totalidade, a um grafema (e vice-versa), biunivocamente. Ou seja, a ortografia aí reflete a fonologia de uma forma muito direta e consistente, normalmente uma letra é pronunciada sempre da mesma forma. Não é o caso da ortografia do português, que se encontra a meio caminho entre a transparência e a opacidade, pois a correspondência entre grafemas (letras e dígrafos) e fonemas nem sempre é linear e inequívoca. Na nossa ortografia, apenas as consoantes P, B, T, D, F e V apresentam relações biunívocas, de um para um (mas o T e o D tem seus alofones relativos à variação linguística regional). Os demais grafemas estabelecem relações múltiplas: um fonema pode ser representado por mais de um grafema (/x/ = X e CH) e um grafema pode representar diversos fonemas (X = /x/, /s/, /z/, /ks/ etc).

Ao estabelecer relação entre a linguagem oral e a escrita, no nível fonológico, quanto menos direta for esta relação, mais difícil é, geralmente, o domínio da leitura e escrita alfabética, mais tempo leva, mais desafios se apresentam. Assim, não é possível esperar que aprender as relações entre grafemas e fonemas isolados vá ter o mesmo efeito, no mesmo tempo, tanto para o finlandês, quanto para o inglês (que é uma das ortografias mais opacas) e o português. É preciso que cada língua lide com as dificuldades de sua ortografia. A pergunta que fica, para mim é: precisa essa complexidade toda na alfabetização inicial? Porque é isso que ocorre quando confrontamos crianças pequenas com essas relações fonema-grafema bem no início do processo. Ou, se não é para compreender, elas viram papagaio repetindo sons e associando a letras sem pensar - o que parece explicar o porquê de não se preocuparem em dizer lá no “jogo” que o som de /s/ associa-se a S, SS e Ç, mas não à letra C, que faz o som /k/. Oi? Como assim? E o G só se associa ao fonema oclusivo, como em GATO, e não ao fricativo, como em GIRAFA. Pode isso? Isso é uma tentativa de simplificação ou uma deturpação? Não termina complicando mais?

Em diferentes ambientes, mas sempre com essa mesmíssima lógica, vão aparecendo, dentre as opções de letras dadas, também algumas letras concorrentes aqui e ali, mas que não são tratadas como tal. Vamos ver como é isso?



Perceba que nesse momento, a fase apresenta o som /s/ e dá dentre outras opções as letras S e C. Ocorre que a letra C também pode representar o som /s/, como em CINTO, CINEMA, CEGONHA, CERCA. Novamente, como nas fases das vogais, mistura-se som e letra, ou opta-se por forjar uma relação inequívoca, quando não é. Mais adiante a fase oferece o Ç também como representação do som /s/, e até o SS. Mas a letra C parece que só faz o “som” /k/. Estranho, não? Se uma criança chamada Cecília, ou Cíntia, ou Celso ou Ciro, jogando, apontasse a letra C para o som /s/ - como ficaria sua compreensão? Esse suposto erro, que o aplicativo indicaria como erro, elas não compreenderiam, não é? E ainda falando em "letras certas"!!! O C não é certo para o som /s/??? O que justifica isso? O fato de a fase começar dando o modelo e focando nos sons /d/ e /s/ para as letras D e S? Vocês acham que Cecília, ou Cíntia, ou Celso ou Ciro, considerariam isso diante da escola entre C e S para o /s/, som inicial de seus nomes? Se acham que o modelo dado justifica, desvela-se ainda mais o absurdo de que o que vale é o modelo e não os sons das letras no sistema de escrita. Ou seja, escancara a perspectiva de estímulo resposta, preparatória para algo que não é ainda a língua. Terrível!

Esse é um dos maiores problemas do método fônico sintético: a pronunciação dos sons isolados das consoantes (não esquecendo dos muitos outros problemas, de muitas naturezas), a suposição de que seja possível pronunciá-los e dar ideia de relação inequívoca. Os fonemas consonantais não são pronunciáveis sem as vogais, a emissão sonora mínima é silábica, não fonêmica, a despeito de o fonema ser a unidade mínima (e abstrata) que estrutura o sistema. Esses sons não existem na cadeia sonora da fala!!! A língua é co-articulada. Os sons das consoantes precisam de apoio das vogais para soar (não à toa são con-soantes, o nome já diz, “soam com”. Com as vogais!). Fazê-los soar sozinhos é abstrato e artificial. Aliás, na tentativa de pronunciar os fones consonantais, sempre vem junto um som vocálico, mesmo que átono, tipo no som da letra B, um som meio “bê” ou “ba” átonos. São sons artificialmente forjados, só temos consciência deles na medida em que estruturam o sistema alfabético, não previamente, na oralidade, e isolados, ligados a letras. Eles não preexistem à escrita, só se tornam observáveis na estruturação da escrita alfabética - e isso crianças de 4 anos, no geral, ainda não compreendem. Aliás, é por isso mesmo que Magda Soares prefere falar em consciência grafofonêmica e não consciência fonêmica. Até  mesmo o José Morais, guru dos elaboradores da PNA, diz essas coisas e ressalta a importancia das palavras e o problema dos sons isolados... Certo é que não falamos /m/ /a/ /l/ /a/, falamos MA-LA, a segmentação mínima da emissão é silábica. Falaremos mais disso adiante. A sílaba, aliás, é uma unidade importante na alfabetização em português, ela dá pistas sobre os fonemas. E é muito rechaçada aqui. E acolá! Falaremos disso no próximo post.

Então, com esse arremedo de pronúncia dos sons das consoantes, a bizarrice só aumenta....


Gente, o que é isso desses sons isolados que mais parecem grunhidos de australopitecos? Os supostos sons do N, M e L são sofríveis! Os fonemas fricativos até que ainda dão para tentarmos pronunciar, pois se materializam em sonzinhos que podemos “esticar”, como xxxx, jjjj, ffff... Mas os demais, é muito complicado! E mesmo assim, muito mais informativo se for no contexto das palavras escritas. O fato de crianças com dificuldades de processamento fonológico se beneficiarem com esse tipo de procedimento, de, nesse contexto de atendimento, a estratégia fônica sintética ter algum sentido, não faz disso um caminho preferencial de ensino na escola. Pesquisa, ensino e atendimento especializado não devem se confundir! E ensino não é tampouco pesquisa, muitas outras coisas têm que ser consideradas aí, inclusive o pensamento e curiosidades das crianças, a linguagem viva, dinâmica e em uso, além do distanciamento para refletir sobre sua dimensão sonora. Sim, a língua também pode ser objeto de conhecimento, e não apenas de uso, mas refletir sobre sua estrutura, suas propriedades pode ser feito com outros procedimentos, em contextos lúdicos, letrados, reflexivos, na continuidade das práticas socioculturais. E trata-se de REFLETIR, coisa ausente nesse game. Os trava-línguas, com seus desafios articulatórios, por exemplo, são contextos muito ricos, brincantes e produtivos para brincar e refletir sobre os fones aliterados. Neles, até mesmo os fonemas oclusivos tornam-se observáveis pela repetição, e aí sim, no contexto de práticas culturais potentes - mas isso é conversa para outro momento! 

Artur Gomes de Morais, no seu livro de 2019 sobre consciência fonológica, apresenta dados de pesquisa e bons argumentos para mostrar que não é necessário analisar os fonemas isoladamente, nem sintetizar e segmentar palavras em fonemas para se alfabetizar. Observar as aliterações de sons de consoantes iniciais, como por exemplo vários nomes próprios começados pela mesma letra/fonema, observar o que resulta de trocas de letras/fonemas iniciais, que formam pares mínimos, como em bala, mala, sala e pão, mão, cão, constituem em habilidades de consciência fonêmica também, e essas sim importantes para ajudar a abstrair o fonema como unidade que estrutura o sistema, e passíveis de serem propostas em contextos significativos, reflexivos, lúdicos e letrados, se fazendo presentes em jogos de palavras, na oralidade poética, em explorações na literatura infantil. Além disso, tudo isso pode ser abordado de forma condizente com as estratégias infantis ao pensar sobre a dimensão fonológica da língua. Repito, mesmo os defensores do phonics reconhecem outras marchas, outras estratégias de abordagem das relações entre grafemas e fonemas, outros procedimentos.

Uma coisa que pesquisadores da própria Ciência cognitiva ressaltam, é que não é necessário passar exaustivamente por todos os fonemas na tal instrução fônica (seja lá de que jeito isso for feito), pois as crianças compreendem a estrutura fonêmica da escrita antes disso, elas generalizam o funcionamento dessas relações entre língua falada e grafia, a partir do entendimento da lógica dos fonemas (por qualquer marcha), quando, então, compreendem esse princípio alfabético. Generalizam! Pensam! Exige-se operações mentais complexas, não treinamento. O próprio referencial que validam argumenta que as crianças generalizam, que pensam, envolvendo operações mentais complexas, reflexão, abstração, cognição, metacognição, e não memorização, repetição e reprodução. Mas o GraphoGame desconsidera isso e procura abarcar todos os fonemas, na relação com a escrita, exaustivamente, com repetições muitas. E mesmo aqueles fonemas cujas correspondências com a grafia são múltiplas! Feito de um jeito torto. Com tudo isso, podemos concluir que o aplicativo fundamenta-se assim não exatamente na ciência cognitiva, mas na perspectiva do estímulo-resposta, envolvendo procedimentos baseados em perspectivas associacionistas, mecanicistas, positivistas, como no método fônico tradicional. 

E isso tudo, ao preço de destorcer a estrutura fonológica e ortográfica do português, de criar uma confusão danada entre fonema, fone e letra, de artificializar a língua; ao preço do desinteresse tanto dos que não veem sentido naquilo quanto dos que logo compreendem o princípio por generalização; ao preço do treinamento ficar completamente na frente do jogo. E aí deixa de ser jogo. Onde fica mesmo a aprendizagem significativa, a natureza de jogo, o lúdico, que eles alegam, e o caráter de prática sociocultural que jogos de verdade têm, se o “jogar” vira mero acertos e erros enfadonhos? O pragmatismo pedagógico altamente instrumentalizado engole qualquer possibilidade de vislumbre de jogo ali. Onde fica a linguagem escrita, tratada assim como técnica, que artificializa e deturpa o sistema de escrita com uma abordagem reducionista e equivocada, sem nem mencionar destituída de seu caráter sociocultural? Onde fica o pensamento, a reflexão?

E a variação linguística?

O foco em fonemas isolados, seja associando-os às letras, seja em sínteses e segmentação de fonemas nas palavras, merece ainda outra problematização. Ao colocar ênfase na dimensão sonora da língua, ao focar os fonemas como unidade de análise da escrita antes que as crianças possam dar conta da complexidade da ortografia, precisamos lembrar que a língua falada varia, ela não é falada da mesma forma por todos os falantes. Há variação regional, geográfica; há variação histórica, diacrônica, que implica também em variação geracional; há variação social e etc. Faz parte da língua falada variar, é uma realidade da língua. Não podemos voltar ao tempo em que se confundia língua portuguesa com norma culta ou com norma padrão, e o resto era visto como “erro”, vício de linguagem e coisas do gênero.

O GraphoGame, assim como a Política Nacional de Alfabetização (PNA) em geral - contexto em que esse aplicativo foi desenvolvido no Brasil - não se ocupa dessa questão da variação linguística ao apresentar seus procedimentos de treinamento das relações fonemas-grafemas. Aliás, gente, esses sons pequenininhos, menores que as sílabas, nem são propriamente fonemas. São fones, que são a materialização sonora, fonética, desses fonemas. Fonema é outra coisa. Parece firula, mas não é, porque é justamente isso que faz com que a escrita note unidades que podem ser pronunciadas diferentemente em diferentes variedades linguísticas. A unidade fonema, que estrutura o sistema alfabético, é uma imagem mental que os falantes têm do som das letras, dos grafemas, em si mesma uma representação, fonemas não são sons propriamente, materialidade sonora. O problema, então, já começa daí. A ortografia é baseada na relação fonema/grafema e não na relação som (fone)/letra. Se a ortografia notasse a relação som (fone)/letra, teria que representar qualquer variação de pronúncia e, consequentemente, de fones. Não é o que acontece, né? Um fonema pode ser realizado de forma diferente por diferentes falantes, resultando em fones diferentes, alofones (variantes nas realizações fonéticas do fonema), como, por exemplo, o fonema /d/ na palavra DIA, que, a depender da região, pode ser pronunciado “dia” ou “djia”, sendo /d/ e /dj/ alofones, não dois fonemas diferentes, pois a palavra continua a mesma. Lembremos que a definição de fonema é, justamente, ser uma unidade distintiva, se a troca de um fone resulta em outra palavra, com sentido diferente, então é um fonema. Por exemplo, se trocarmos o /f/ por /v/ na palavra FACA, temos VACA, então trata-se de fonemas diferentes. Um fonema é um fonema em oposição a outros fonemas, no contexto das palavras! Assim, se não mudar a palavra, não é um fonema diferente, como no caso da palavra DIA. Ou seja, nem todos os sons de uma língua constituem em fonemas. (Aliás, o que reforça a problematização de apresentar os fones isolados, sem o contexto das palavras).

E é justamente porque os fonemas não são sons propriamente que o sistema alfabético pode registrar esses fonemas, independentemente de sua realização sonora nas diferentes variedades linguísticas! Podemos pronunciar diferentemente a palavra PORTA, MENINO, BANANA, em diferentes regiões do Brasil, mas a relação fonema-grafema se mantém, justo porque o fonema é abstrato e não uma materialização sonora. Percebe? 

Por isso, mais uma vez, insisto que o contexto das palavras é fundamental na abordagem dos fonemas, também por isso tudo. Percebem como essas fases iniciais do GraphoGame, assim como esses mesmos procedimentos em outros contextos, são muito problemáticos? E nem entramos ainda em variações sociais mais complexas. Mas tem isso também! O que será das crianças que pronunciam /b/ para palavras com V, como “bassoura”, “barrer”? É uma realização fonética de certa variação linguística, nesse caso, não funcionam como fonemas diversos. Então, tal qual o abordam nesse aplicativo e nos produtos da PNA em geral, será que vão voltar à ladainha de que os sujeitos só vão se alfabetizar se aprenderem a falar? Deixar, novamente, grande parte dos sujeitos acharem que não sabem falar a sua língua? De novo confundir língua oral com língua escrita? Gente! Daí já podemos logo imaginar também o massacre que esse reducionismo tosco da complexidade da estrutura fonológica da língua e de sua representação gráfica pode ser para as crianças falantes de variedades muito distantes das legitimadas pela escola (a adultos em processo de alfabetização também!). São as crianças que estão em nosso ensino público! É um retrocesso ver com essas lentes o processo de alfabetizar! Aqui não é a Finlândia! Nem pela transparência da língua, nem pelo nível de escolarização da sociedade. 

Numa política pública, ao indicar uma perspectiva que enfatiza a dimensão sonora da língua não é possível se furtar de incluir e discutir sobre a questão da variação linguística. E nada é dito sobre tal na PNA, política do MEC em que o GraphoGame se insere. (Na verdade, política pública não deveria nem definir uma perspectiva ou método). E esse silenciamento é preocupante. O que quer dizer? É como se todos fossem falantes de variedades legitimadas? Ou pior, como se fosse dado como certo que todos tivessem que consertar sua fala para se alfabetizar, e portanto nem precisa falar disso? Certamente, veem tal aspecto da fala como deturpação, erro, algo a ser corrigido, mudado a todo custo. Mas, o que esperar de uma perspectiva que nem mesmo as múltiplas correspondências entre fonemas e grafemas da nossa ortografia (que ocorrem também no âmbito da variedade culta), eles respeitam? Lendo artigos do próprio coordenador do GraphoGame no Brasil, bolsonarista de carteirinha, diga-se de passagem, me deparo com isso, ao explanar sobre o GG:

"Apenas sons de produções naturais de fala são utilizados no jogo, com a pronúncia considerada representativa do padrão da língua em questão. Conforme Elbro (1998), o objetivo é oferecer às crianças oportunidades de construírem boas e distintas representações mentais dos sons da fala, já que a literatura relata que maus leitores têm uma percepção auditiva diferente da dos bons leitores" (2016). 

Gente, jura? Ele transpõe uma argumentação que vem do contexto de pesquisa de dislexia para analisar a questão da variação linguística? Sério isso? Jura que relaciona variação com percepção auditiva? Jura que está valorando? Isso é varrer para debaixo do tapete um dos elementos que problematizam essa ênfase que é dada na dimensão sonora da língua e, em especial, na unidade fonema. Estamos voltando à Idade da Pedra? Olha, me recuso até a comentar! 

Então, vou comentar outra coisa. Se Cecília, ou Cíntia, ou Celso ou Ciro ficariam confusos ao não ver a letra C deles fazer o som /s/ nesse "game", o erro é de quem? Não se preocupem, crianças, vocês não estão erradas. Mas além desses equívocos no tratamento dos fonemas, o GG também tem erros mesmo. Provavelmente adaptado às pressas para o português, para mostrar serviço do MEC, propagandear seu suposto alinhamento internacional, validar, aos olhos dos incautos, sua retórica das evidências científicas, deu até nisso: ERROS CRASSOS. Um, é esse: num certo momento, o aplicativo dá o som /f/ e não oferece a letra F como opção, indicando a letra G como correspondente a esse som. Erro? Claro, acontece. Não vão consertar? Provavelmente em novas versões. Mas o que havemos de pensar é: de onde vem esse erro, complicado para as crianças que usam o aplicativo - O que ele significa?




Fonema é uma coisinha pequeninha e faz muito barulho, por isso mesmo: é uma unidade fonológica (não exatamente sonora) abstrata. Agora, em sendo assim, podemos tomar dois caminhos quanto aos fonemas: massacrar as crianças para que eles entrem a ferro e fogo, previamente, já que, por constituírem uma unidade abstrata, devem ser ensinados a todo custo e o quanto antes, ou partir de procedimentos mais holísticos, que levem em conta o pensamento das crianças - que penam sobre a escrita!!! - até que se chegue à abstração do fonema e, possam, só aí, compreender, de fato, o princípio alfabético e começar a se ver com as dificuldades ortográficas. Lembrando que se trata de uma ortografia semitransparente, e de considerar, igualmente, a questão da variação linguística. Que caminho toma o GraphoGame? Pois é, ressalto também que argumentam insistentemente que a marcha analítica não funciona, para defender a marcha sintética, mas futucando bem, vemos que eles contrapõem a um suposto método global ideovisual, em que se investe na apreensão global, visual da configuração gráfica das palavras, sem propor análises em unidades menores, sem abordar explicitamente as relações entre fonemas e grafemas. Quem é mesmo esse inimigo invisível e inexistente? Que perspectiva defende hoje que não se aborde as unidades sublexicais e ensine o princípio alfabético? Isso é só retórica deles. A questão é que não há um único modo de abordar essas questões. Aprender as relacoes fonemas/grafemas não tem que ser, necessariamente, o ponto de partida, de forma isolada sem o contexto das palavras, nem de forma mecânica, com base no treinamento. Queremos crianças que pensem sobre a língua, inclusive sobre suas unidades menores e sobre a estrutura da escrita alfabética. Mas que pensem! Queremos crianças que interajam de forma rica, viva e socioculturalmente referenciada com esse instrumento cultural - como já dizia Vygotsky - não com uma técnica fria, vazia de sentido, vazia de cultura, de linguagem, isso que nos humaniza e nos põe no contexto social.


Dígrafos? Aos 4 anos?!!!

Falamos dos dois caminhos que se pode tomar pelo fato de o fonema ser uma unidade abstrata, que não se adquire naturalmente e, portanto, seria preciso abstrai-lo, ensiná-lo de algum modo. Vimos que o GraphoGame toma o caminho de apresentar essa unidade e sua relação com letras isoladas como ponto de partida, e o caminho do treino e não do pensamento, da generalização. Mas é pior ainda! Eles tomam o caminho de adiantar até mesmo elementos que remetem às dificuldades ortográficas para crianças desde os 4 anos!!! Na continuidade da bizarrice na apresentação dos relações entre grafemas e fonemas, o aplicativo GG começa a apresentar também os sons de dígrafos como SS, NH, LH, CH... 


Ou seja, não se trata apenas de ensinar sistematicamente e sinteticamente o princípio alfabético para crianças no momento de formalizar mais os processos da alfabetização, mas de ensinar previamente mesmo, como conhecimento primeiro, pré-requisito para analisar a língua escrita. Mesmo considerando “língua escrita” aí apenas como o sistema alfabético (ela é mais que isso, né?), é um absurdo, principalmente (mas não apenas) se pensarmos que são crianças desde os 4 anos! Não há o tempo de se perguntarem sobre o que é a escrita, não há tempo de terem curiosidade e desejo de se apropriar desse instrumento cultural, não há tempo de refletir sobre seu funcionamento, de descobrir a natureza fonológica da língua, de entrar na escrita pelas práticas socioculturais. Não há tempo daquilo fazer sentido para elas!

Nos dígrafos, a junção das duas consoantes representa apenas um fonema - para que expor as crianças a essa peculiaridade nessa fase tão inicial? Pobre das crianças de 4 a 6 anos, que ainda nem começaram ou estão só começando a compreender o funcionamento do sistema alfabético, que não sabem ainda o que essa cantilena de sons esquisitos, forjados artificialmente, faz para que possam ler histórias, comunicar uma ideia, e já têm que se preparar para as dificuldades da ortografia! Típica preparação para algo que as crianças não sabem nem para que é. Treinamento para o futuro, nenhum vislumbre de LINGUAGEM ESCRITA, nenhum respeito à curiosidade das crianças sobre esse instrumento cultural, nenhuma situação de REFLEXÃO. Tipo aprender o bê a bá sem nem saber o que é a notação escrita e para quê a escrita, mais amplamente, serve. Sem ser convocada a refletir e aprender como a escrita alfabética, efetivamente, funciona. Só treino e preparação para o futuro. O reino da sonorização mecânica acima de tudo e de todos, passando que nem trator por cima das crianças, da aprendizagem e da língua. E esse som meio nhã? É isso que o NH faz na palavra NINHO????  

Para que ocupar as crianças com essa cantilena monótona, fastidiosa, sem sentido, quando ainda não estão preocupadas com as convenções da língua, mas com seu funcionamento fonológico mais básico? Treinar os sons desses dígrafos sem o contexto das palavras não vai fazer sentido algum para crianças que ainda não estão se deparando com a ortografia das palavras, que não estão, efetivamente, em contato com palavras escritas em que eles se fazem presentes. E se nessa alfabetização que pregam os textos são altamente controlados, visando a confrontar as crianças com palavras que já possam decodificar, como as crianças vão estar em contato com palavras com esses dígrafos? É ao tentar ler ou escrever palavras como GALINHA, CHUVA, SONHO, GALHO, GUERRA, QUIABO e etc, que elas vão se deparar com essas outras formas de grafar os sons da língua, se perguntando se CHUVA é com X ou CH, brincando de “tirar a filha da fila e a malha da mala”, como José Paulo Paes brinca e faz poesia com a letra H... Para que confrontar crianças de 4 a 6 anos com as convenções e até as arbitrariedades da nossa ortografia (S/SS, CH/X)? Para que fazê-lo sem as palavras? Aliás, é importante que se diga: o português é mais transparente para a leitura e menos transparente para a escrita. É quando vão aprender a escrever ortograficamente que esses aspectos se tornam importantes, não para a alfabetização inicial, quando o que está em jogo é entender a natureza fonológica da escrita e seu funcionamento alfabético. Isso apresentado assim é antecipar completamente questões que não se colocam para essas crianças menores. É tudo mera memorização... Onde está o sujeito? Onde está a língua, a linguagem? Onde está o pensamento?

Tanto os dígrafos - em que cada consoante perde sua unidade sonora, pois a sequência de duas consoantes forma um único som (um só fonema) - quanto os encontros consonantais - em que cada consoante mantém sua unidade sonora, distinguindo-se o som de cada consoante (fonemas diferentes) - são fenômenos que, sem o apoio nas palavras escritas, não faz sentido algum. É nas palavras que isso faz sentido e para escrever, não para compreender o funcionamento alfabético. Sem esquecer que há casos em que é o contexto da palavra que diz se é dígrafo, como no caso do QU e GU (é dígrafo em QUilo e GUerra, mas não em QUadro e linGUiça). Sem as palavras presentes fica tudo muito abstrato! Ficar escutando o som que supostamente faz o LH e o NH, sem as palavras, vira uma cantilena de sons de australopitecos! E o que falar das convenções dos sons /x/ como X ou CH, e do som /s/ com S ou SS? Entrar no mérito das diferentes grafias do /s/ (e excluindo a letra C disso), é adiantar um conhecimento que é para crianças que já compreenderam o princípio alfabético. Mas, isso já sabemos, não é? Para definir o passo a passo do método, eles escolhem como foco a ESTRUTURA do sistema alfabético, não o ponto de vista da língua escrita, verdadeiramente, nem da aprendizagem da criança. E misturam tudo num liquidificador: o que é necessário para se apropriar do sistema e o que é necessário para escrever ortograficamente. Tudo isso para 4 a 9 anos, e sem chance de selecionar as fases supostamente mais condizente com cada faixa.

Esse é um tipo de complexidade que só faz sentido APÓS as crianças se apropriarem do princípio alfabético, entenderem como a escrita alfabética funciona, pois aí é que se deparam, na culminância de um processo longo de se apropriar das propriedades do sistema, com as múltiplas correspondências entre fonemas e grafemas e as convenções da ortografia. Aí sim cabe as complexidades ortográficas, a grafia e o som de dígrafos. Essa abordagem de sons de dígrafos para crianças pequenas, antes de tudo isso, é completamente absurda!

Fechando as fases iniciais...

Alonguei-me nessas fases iniciais do GG, pois elas remetem, diretamente, a dois dos pilares da alfabetização, definidos na PNA: a consciência fonêmica e a instrução fônica, elementos principais da perspectiva que assumem, e que influencia todos os outros pilares e todas os princípios dessa perspectiva. 

Mas para fechar quanto a essas fases iniciais do GG, que envolvem a relação (muito mal feita) dos grafemas com os fonemas vocálicos, consonantais e os dígrafos, lembro: consciência fonêmica e ensino das relações fonema e grafemas não é o mesmo que método fônico ou exclusividade dessa perspectiva e, muito menos sinônimo de método sintético. Mesmo o chamado phonics - considerado como a abordagem sistemática das relações entre fonemas e grafemas - pode ser ensinado com uma variedade de estratégias e abordagens, não apenas com o método fônico sintético. Essa é uma escolha do GraphoGame e da PNA em geral. A opção por esses procedimentos não é uma verdade última que se possa tirar das pesquisas cognitivas. Eles fizeram escolhas e, muitas vezes, a partir de uma retórica enviesada para fazer parecer que a ciência cognitiva da leitura valida tais escolhas e apenas essas, silenciando sobre o fato que há diferentes modos de propor um ensino explícito e sistemático. Ensinar os sons isolados das letras e a sua síntese em palavras é só um dos caminhos - o mais abstrato, descontextualizado, artificial e sem significado. Há outras abordagens, como a de aprender os sons em grupos de letras, constituindo rimas, sílabas e encontros consonantais - que podem ser abordados de forma mais mecânica, descontextualizada, ou de forma contextualizada, sem perder a vinculação com a semântica da língua, em diversos contexto, como em jogos de palavras na literatura; em situações de jogos diversos, não de treinos disfarçados de jogos; na fruição da oralidade poética, brincando com trava-línguas e outros textos da cultura lúdica, dentre outras possibilidades, que preservam o caráter de interação social da linguagem e seus usos lúdicos e letrados. Há outras estratégias fonológicas que implicam o reconhecimento de unidades maiores que são produtivas no ensino da leitura de sistemas ortográficos semitransparentes. Recorrer a outras estratégias de decodificação depende do tipo de palavras a ler, da tarefa de leitura, do método de ensino utilizado e do nível de profundidade ortográfica da língua (transparente ou opaca). 

A adaptação do aplicativo para o francês parece que não ignorou a realidade de sua língua, já que considerou efeitos morfológicos, que são importantes para a decodificação nessa ortografia. E aqui? Por que ignoram, quanto ao português, certas relações múltiplas de determinadas letras, por que ignoram a estrutura silábica simples e nossa língua tão silábica e a realidade concreta da segmentação silábica no fluxo da fala? É possível chegar aos fonemas a partir de uma forma mais holística de segmentar a língua, muito mais aproximada do modo de pensar das crianças e sem ignorar a co-articulação da fala. A consciência fonêmica é a culminância de um longo processo de reflexão sobre a língua, sobre suas unidades fonológicas diversas, até que se chegue a discriminar fonemas, em presença das palavras escritas. A escrita fornece um modelo de análise do oral e a sílaba ajuda muito a tomar consciência do fonema. Observar, por exemplo, que nas palavras ROSA, RITA, RAFAEL, RUTE, REGINA, RAQUEL tem esse segmento sonoro parecido, nas sílabas RO, RI, RA, RU, RE, que RAFAEL e RAQUEL tem ambos RA, mas CAMILA, por exemplo, soa parecido pelo A, mas o som muda, confrontar com a escrita e observar que essa coisinha parecida é o som do R, que tem um sonzinho diferente em RA e CA, são situações muito mais naturais do que partir do fonema, artificializando a língua, e sintetizá-los em sílabas, para muito depois formar palavras. A sílaba dá pistas sobre os fonemas, assim como os próprios nomes das letras. A consciência fonêmica é importante, mas não tem que ser o ponto de partida, e nem associada a habilidades como isolar e sintetizar fonemas, como bem ressalta Artur Gomes de Morais. Esse é o grande problema de uma marcha sintética do phonics. O raciocínio é: se os fonemas são abstratos demais, precisamos ensiná-los, treiná-los, massacrar as crianças até que entre a ferro e fogo! E começar por eles! Começar pelo mais abstrato! E fingir que tudo que se opõe a isso é procedimento global ideovisual que não propõe a análise do funcionamento alfabético da escrita. Tudo retórica, falácia.

É claro que compreender o princípio alfabético, aprender a estabelecer as relações entre fonemas e grafemas é fundamental na alfabetização. Mas não se chega a apenas pela via do método fônico sintético, que artificializa a língua isolando fonemas que são impronunciáveis sozinhos, sem o apoio de uma vogal. Não se chega a isso por essa via, sem desconsiderar o pensamento da criança e comprometer o real funcionamento da escrita alfabética, que nota a ortografia, não a fonologia. Não se chega a isso segmentando palavras em fonemas e sintetizando fonemas para formar sílabas e palavras - próximos níveis do “jogo”.

A política de alfabetização que temos hoje escolhe o caminho mais seco e frio, que, supostamente assentado em evidências científicas, desvaloriza a criança como sujeito social, cultural e pensante; artificializa a língua, reduzindo a linguagem escrita a uma técnica; e chama de jogo um treino que transforma as crianças em robozinhos visuais e sonoros, repetindo modelos e apertando telas sem pensar, tudo isso embrulhado em cenários de aparente jogabilidade. O jogo e a língua perdem aí seu caráter de objetos culturais, esvaziados enquanto prática socioculturais, quanto também o são as crianças como sujeitos e a aprendizagem como um processo complexo. 

O contexto de jogabilidade e a simulação tridimensional de uma atividade supostamente interativa, com um sistema de recompensa para tornar o treino supostamente atrativo, é suficiente para conferir ares de situação lúdica a esse treinamento disfarçado de jogo digital? Com o treinamento mecânico na frente, onde fica mesmo o lúdico? O que define o lúdico não é apenas a experiência cultural que reputa os jogos como lúdicos - também aí comprometida - mas a experiência singular de quem sente a experiência como lúdica. O fato de ser (se é que é) um game não é garantia de experiência lúdica nem de aprendizagem significativa. Mas, o buraco é mais embaixo ainda: pode isso aí ser jogo, verdadeiramente vinculado a uma prática social, e mobilizar uma aprendizagem significativa? Onde está o significativo aí, tratando a criança e a língua dessa forma? Tanto a dimensão cultural quanto subjetiva do lúdico são potencialmente comprometidas nessa ferramenta. Gostaria de ver as crianças...

Por ora é isso, gente! Em breve faço uma segunda postagem para comentar as fases em que as letras/sons começam a formar sílabas e depois palavras. Pensam que melhora? Em breve! Continuo "jogando", enfadada, mas por uma boa causa. Espanta-me muito a quantidade de professoras/es achando essa ferramenta maravilhosa... 

Ver aqui a Parte 2 dessa análise, que se refere às fases que abordam sílabas.

Quer saber mais sobre o fonema e o que mesmo acredito que é preciso, quanto a essa unidade, para se alfabetizar, no que diz respeito à consciência fonêmica e grafofonêmica? Vai lá no blog, no post "E os fonemas?".