sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Abecê Nordestino. PARTE 3: Argumentos da história da alfabetização

Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Olavo Bilac

(Poema “Língua portuguesa”)

Saltando bastante no tempo do post anterior para esse, exploraremos nessa parte o campo da história da alfabetização no nosso país, para tentar entender melhor como é que, talvez, isso de um abecê diferente do dito oficial chegou por aqui... no Brasil, no Nordeste... na Bahia... e buscar, nessa história, outros argumentos para a discussão em foco. Digo “tentar”, pois essa é uma história de muitas lacunas...

Embora os oito nomes de letras no Nordeste tenham sido – e, ao menos na Bahia, sejam ainda – usadas também para se referir às letras em situações sociais diversas em que é preciso nomeá-las, é fato que no ensino primário é que essa nomeação se constitui e se firma...ou se perde... Por isso, além de meu interesse ser, em última instância, o ensino da língua escrita, ir ao campo da história da alfabetização é fundamental para colhermos mais elementos para a nossa discussão mais ampla sobre essa temática. 

Como nos lembram Frade (2005) e Mortatti (2000), inicialmente, no Brasil, o ensino das primeiras letras se dava pelo método sintético da soletração, ou método alfabético, um dos mais antigos. Esse foi o método empregado desde a antiguidade, chegando até nós via Portugal, e usado aqui nos períodos colonial e imperial, até o momento em que a escolarização, e a alfabetização em particular, passaram a constituir em preocupação na formação do país, no final do século XIX e início do século XX. Apesar de questionado desde essa época, e hoje proscrito das práticas alfabetizadoras, trazê-lo vale aqui como ponto de partida para nossas reflexões sobre o alfabeto nordestino, já que esse método investe, justamente, no nome das letras como unidade inicial da alfabetização, e porque foi, como veremos, a porta de entrada para uma nomeação diversa das letras do alfabeto. No método da soletração, uma vez aprendidos os nomes e formas gráficas das letras do alfabeto e de saber reconhecê-las fora da ordem, passava-se a soletrar pelo nome das letras (bê-a-ba, bê-e-be, be-i-bi...), formando sílabas, para, então, formar palavras (bê-o-bota-a-ta = bo-ta). Ou seja, para ler, ao visualizar as palavras, era preciso dizer os nomes das letras e soletrar, traduzindo em sons aquela palavra visualizada.

Frade (2005) pondera que o método trazia a vantagem de o nome das letras (com algumas exceções) remeterem a pelo menos um dos fonemas que elas representam na escrita – conquista do princípio acrofônico, quando as letras latinas foram nomeadas, como vimos no post anterior 2. Por outro lado, nem sempre a remissão dos nomes das letras a esses fonemas é muito direta. E é aí que entram os dois tipos de soletração que estiveram presentes no ensino das primeiras letras, ao menos no Brasil imperial.

Diante da palavra BANANA, por exemplo, o aluno soletrava: bê-a-ba, ene-a-na, ene-a-na = banana. Esse modo de soletrar refere-se, conforme indica Mortatti (200) e também Frade (2014), à soletração antiga, praticada no Brasil até final do século XIX. Ouve-se aí mais sons na palavra ene do que o fonema que a letra N representa e, desse modo, como discute Frade (2014), o aluno precisava abstrair o excesso de sons da soletração para encontrar a sílaba, NA: ene-a = na, e depois encontrar a palavra (quando era o caso). Esse argumento tem relação com o que foi discutido anteriormente sobre o princípio acrofônico ser mais direto no caso dessa letra ser pronunciada . A forma nê-a-na parece bem menos penosa. É um modo mais direto de soletrar, devido ao fato de que o nome se remete mais simétrica e diretamente ao fonema /n/ do que o nome ene, em suas combinações com as vogais.

Frade (2005) afirma, inclusive, que talvez tenha sido, por isso mesmo, que se tenha criado outro modo de pronunciar os nomes das letras, criando-se um outro abecedário, como o usado no Nordeste. Os nomes de algumas letras, nesse abecê, ajudam, justamente, a “retirar o excesso de sons na palavra”, a “eliminar algumas sobras de sons, na hora da junção das letras” – a soletração podia, assim, acontecer com um pouco menos de sacrifício. (FRADE, 2005, p. 24).

Tanto Frade (2014), quanto Mortatti (2000), abordam que essa forma de soletração, considerada como a antiga soletração, foi referida assim por muitos autores portugueses e brasileiros no final do século XIX. Entretanto, parece que já a partir do século XVI ou XVII, surgiram na Europa manifestações contra o método da soletração. Dentre essas manifestações, uma é importante para nossa discussão específica. Frade (2014) ressalta que no método de soletração moderna – criado por gramáticos franceses, também chamados de gramáticos de Port-Royal (século XVII) – “atribui-se às consoantes um ‘nome’ que  visa a aproximar os  nomes das letras a seus valores sonoros no contexto de uma palavra” (FRADE, 2014, s.p).

As primeiras ideias desse procedimento são atribuídas a Blaise Pascal, ainda no século XVII. Pascal reinventou, na França, o método da soletração, sugerindo que se ensinasse não o nome das letras (efe, eme, ene, ele, esse...), mas os seus sons ou algo mais próximo a ele, com o uso da vogal de apoio (como fê, lê, mê), o que facilitaria a soletração. A soletração moderna faria, assim, uma substituição dos nomes que então se dava às letras pelo que se chamava seus “valores”, que não era propriamente os fones – os sons das consoantes –, mas uma emissão silábica, estabelecida pela junção da consoante com a vogal de apoio. É importante ressaltar aqui que, ainda que a soletração moderna seja associada ao método fônico tradicional (FRADE, 2012), há referências ao uso de vogal de apoio, ainda que átona (com –e mudo) e não à pronúncia dos fones isolados, tal qual entendemos os procedimentos dos métodos fônicos hoje, com a tentativa, vã, de pronunciar apenas o fone consonantal, artificializando a língua. Ao nomear as letras do alfabeto mais próximas da emissão sonora, o que se destaca é o som de uma sílaba – que vem a constituir, em sua forma tônica, o nome da letra – e não um fonema: e não /f/, e não /m/. Note-se também, que esses autores, de tempos remotos, citam a nomeação diversa das letras, e não apenas um modo de pronunciá-las – aspecto importante para o nosso argumento.

O –e mudo, no entanto, foi se tornando tônico. De qualquer modo, vejam a diferença entre eme-o-mo, ele-a-la = mola e mê-o-mo, lê-a-lá = mola. Percebem? Ou seja, exatamente como se fazia a soletração no Nordeste. Veio da França, gente! E influenciou muitas gramáticas portuguesas que, por sua vez, chegaram a nós. Isso significa que esse procedimento tampouco é originalidade do Nordeste – ou seja, talvez nem inventividade de uma linguagem criada e ali praticada, nem “aberração” nordestina. Se, em algum momento da história, parte do povo brasileiro simplificou os nomes das letras formados pelo princípio acrofônico mais indireto, e talvez por analogia a outras letras do alfabeto – como o bê, tê, vê, zê... – isso se deu com o respaldo de todo esse contexto de discussão. Assim, diante de tudo o que estamos discutindo, podemos dizer que é uma forma, ao mesmo tempo, singular e comum de atribuir os nomes às letras. E trata-se de nomes, não de sons, muito menos de fonemas. Ainda que esses nomes possam ter, historicamente, se originado da tentativa de pronunciar os sons, o procedimento é legítimo e forma, como formou no passado do alfabeto, os nomes das letras.

Publicada em 1803, em Lisboa, a Grammatica Philosóphica da Lingua Portugueza, do português Jerônimo Soares Barbosa, inspirada na perspectiva de Port-Royal e serviu como modelo para a produção gramatical portuguesa e brasileira do século XIX – traz, na fonte, essa questão da pronúncia das letras.

Cagliari (1985) ressalta que a recomendação de Jerônimo Soares Barbosa era de que nos livros com as primeiras instruções sobre a escrita, especialmente destinados ao povo, o alfabeto fosse ensinado não com os nomes das letras, mas com seus sons básicos, as consoantes tendo vogais de apoio, e grafadas pelas letras mais representativas. Ou seja, a ideia da facilitação do ensino inicial da escrita não foi invenção dos nordestinos, como já ouvi por aí dizerem em tom jocoso. Muitos eram os artifícios usados para facilitar a aquisição da leitura, e as propostas francesas e portuguesas que chegaram no Brasil também visavam a essa facilitação. 

Tudo isso nos mostra que a questão do nome das letras tem um lugar na história da alfabetização no Brasil, de muito mais destaque do que temos visto – e que merece atenção quando nos vemos aceitar, sem discussão, a “colonização” do alfabeto oficialmente usado no Nordeste pelo oficial, associado à norma culta da língua, ou quando o defendemos como uma criatividade quase ingênua do nordestino. Como constatamos, no entanto, não se trata de uma invenção simplória e iletrada do nordestino, fonte de deboche pelos que nada sabem dessa história e aceitam o alfabeto convencional como verdade única e última, a-histórica, naturalizando o seu uso. Essa história é a história do nosso Brasil! E mais além, como vimos com as perspectivas francesa e portuguesa que influenciaram o ensino no Brasil.
Após os questionamentos dos métodos de soletração, muitos outros autores também defenderam o uso da pronúncia e dos nomes das letras mais próximos a seus “sons”, o próprio João de Deus e Abílio César Borges.

João de Deus, autor português cujo método foi amplamente usado no Brasil a partir de 1880, criticou ambas as soletrações, antiga e moderna, pois o que deve ser enfatizado é, segundo ele, a leitura – e daí sua opção pela palavração. O método João de Deus – fônico e de palavração – propunha ensinar, claramente, como se formam os nomes das consoantes: o nome da letra se forma juntando o som ao som da letra na leitura/pronúncia das palavras. Ou seja, ao som da letra que se lê /vvv/ (e o método ensinava a pronunciar os fonemas pelo ponto de articulação), as crianças aprendiam que, juntando-se o som , formava-se o nome da letra, . A que se lê /fff/, se chama , e assim por diante. O /jjj/ é , nesse sistema, e não ji ou jota. E o G... o G chama-se guê, quando oclusiva (gato, gota, gude), e lê-se jêgue, quando fricativa (gelo, girafa). Esquisito, né? Bem esquisito! O sistema de João de Deus é bem diferente, uma tentativa de os nomes das letras – mas apenas no momento da alfabetização – dizerem sobre seus diferentes valores sonoros, quando é o caso. Mas letras são “nomeadas” assim, apenas momentaneamente, enquanto a leitura é na Cartilha. É diferentes de um uso de nomes de letras nas práticas cotidianas, como é o caso do uso que ainda se faz hoje na Bahia.

Abílio César Borges, o Barão de Macaúbas, é uma referência que pode ter igualmente contribuído com o uso dos nomes das letras tal qual se usa no Nordeste, dessa vez a contribuição de um brasileiro, baiano, influenciado por essas questões que estavam no “ar do tempo”. Ele criou, na Bahia (1858-1870), o Ginásio Baiano, que, segundo Souza (2012), pode ser considerado, nos padrões do século, uma escola de excelência. Apesar de ser baiano, mas talvez tendo isso um peso, sua Gramática e seu Primeiro livro de leitura, publicados em 1866, foram, segundo Souza (2012), distribuídos, divulgados e adotados em escolas públicas e particulares em várias regiões do Brasil, não apenas na Bahia, não apenas no Nordeste, na segunda metade do século XIX. A autora, no entanto, enfatiza sua utilização ampla na província da Bahia. Dentre as características do método proposto nos livros de leitura de Borges, a autora ressalta que esse método – que apresenta as letras uma a uma e organiza as lições a partir das sílabas – enfatizava a pronúncia das consoantes, das sílabas, pois Borges defendia que a articulação perfeita dos sons levaria a uma boa leitura. No seu “Novo primeiro livro de leitura”, de 1888, Borges assim se posiciona, como ressalta Souza  (2012, p. 657):
As letras são apresentadas ao professor, explicando-lhe como devem ser pronunciadas, como, por exemplo: f deve ser pronunciado não éfe, mas fê. O Autor demonstra a ineficiência em se trabalhar com o nome da letra, principalmente na soletração, o que muitos professores fazem, dificultando a aprendizagem das crianças.
O método de Abílio, e sua proposta de pronúncia das letras, então, será que seguiu ressoando por aqui? Pode ser, embora a autora ressalte que quem mais aproveitou dos livros de Borges foi a elite. Por outro lado, ele foi, segundo Frade (2011), um dos mais usados nas escolas brasileiras, antes das inovações do final do século XIX. Então, por que só ter influenciado a pronúncia do abecê no Nordeste? Seria esse, então, um uso anterior, bem anterior ao final do século XIX? Será improvável que sua proposta, por algum motivo, tivesse ressoado mais na Bahia? Se é, que outros fatores influenciaram o uso do abecê no Nordeste?

Como esses, muitos outros autores de gramáticas e cartilhas circularam no Brasil – e não apenas no Nordeste – com propostas que sugeriam uma pronunciação diversa das letras na alfabetização inicial, bem como a nomeação das letras de formas diferentes do alfabeto sistematizada, provavelmente, por Varrão, lá na Antiguidade. E no Nordeste ficou valendo como nome das letras.

Assim, indo à história da alfabetização, concluímos que esse tipo de procedimento de designar as letras de forma mais próxima a seus sons, que já havia sido usado no latim é, de algum modo, retomado nesse momento do final do século XIX, ou mesmo antes, e início do XX, a partir da França e de Portugal. Vimos que esse procedimento circulou no Brasil, a partir do desconforto com a soletração, tendo alguma legitimidade na história dos métodos de alfabetização. E esse não foi um processo exclusivo do Nordeste. Então, eis mais um grupo de questionamentos que se juntam ao de se seria, então, o uso dos nomes das letras nordestinas advinda mesmo dessa soletração moderna, inspirada nos franceses. Por que “pegou” no Nordeste, ou no sertão nordestino? Por que aqui se manteve essa prática? E por que esse jeito de pronunciar, na soletração, virou o próprio modo de nomear as letras? Será devido ao grande contingente de pessoas não escolarizadas nessa região, naquela época – que, então, tiveram menos contato com o alfabeto oficial? Mas se for isso, como tiveram contato com essa “novidade” da soletração moderna? O momento histórico explica essa situação? Ou o modo de soletrar da soletração dita “moderna” foi um jeitinho que o Nordeste deu, mesmo antes de ser legitimado pelas propostas francesas e portuguesas que aqui aportaram, nomeando por conta própria, por analogia às outras letras oficias (bê, tê, vê, zê...), as letras que pareciam muito distantes dos “sons” pronunciados? Souza (2012) nos conta que os livros de Abílio César Borges, por exemplo, mesmo distribuídos amplamente no Brasil, foi usufruído, de fato, pela elite. Então, será que essas “novidades” chegaram mesmo aos municípios longe dos centros urbanos para influenciar o modo de pronunciar as letras do povo do sertão?

Haverá, ainda, quem diga até que esse modo de soletrar perdurou no Nordeste como forma de nomear as próprias letras, pois o nordestino gostou da facilitação “preguiçosa” trazida com ela, com o deboche preconceituoso e o estigma que muito frequentemente é atribuído ao nordestino. Ora, os preconceituosos arrumam argumentos diante de qualquer situação... Podemos nos perguntar ainda se houve uma só fonte desse uso. Será que o uso desse abecê na capital baiana tem a mesma fonte dos usos do sertão nordestino? Difícil saber... Certo é que, por aqui, não atribuímos a esse modo de pronunciar as letras um valor apenas de alfabeto para aprender a ler e escrever, tipicamente escolar, facilitador da alfabetização – como eram os nomes das letras sugeridos por João de Deus – mas o tomamos como o alfabeto mesmo, usado no cotidiano, em situações diversas em que se faz necessário referir-se a letras.

Na complexidade do período anterior ao final do século XIX, no entanto, até agora, não achei uma fonte fidedigna para confirmar se no Nordeste já se “cantava” as letras fê, guê, ji, lê, mê, nê, rê, si...a partir das Cartas de ABC, quando a soletração antiga ainda vigorava no resto do país, ou se veio a partir da soletração moderna e as influências dos livros, cartilhas e gramáticas mencionados, e porquê, no Nordeste, se manteve como forma preferencial. Será que, posteriormente, com a silabação, as recitações do ma-me-mi-mo-mu ou ra-re-ri-ro-ru, por exemplo, não teriam influenciado ou reforçado a pronúncia do em vez do eme e do em vez do erre? Igualmente difícil saber, como também o é avaliar as chances dessa soletração ter sido um ajuste, uma invenção do povo nordestino. Mas a pesquisa continua... Certo é que, a partir do momento em que a soletração perdeu terreno para a silabação – seja no âmbito dos métodos silábicos sintéticos, seja da palavração ou de outros métodos analíticos ou mistos – ao lado das aprendizagens referentes à segmentação silábica, se falava e se aprendia, no Nordeste, os nomes das letras com o princípio acrofônico mais direto. Assim aprenderam gerações de nordestinos.

Talvez a origem do alfabeto nordestino seja uma dessas lacunas na história da língua e da alfabetização difíceis de solucionar com precisão, talvez, por outro lado, haja pistas por aí, em documentos históricos, depoimentos pessoais de nordestinos mais velhos, nas notas de pesquisadores que já desbravaram essas fontes – linguistas, pedagogos, estudiosos da história cultural, historiadores da educação. Não sei...não encontrei mais do que discuto aqui. Por ora.

Entretanto, não obstante as incertezas sobre a origem e os usos do abecê, certo é que não podemos adotar uma postura ingênua e naturalizada da questão. Talvez o seu uso não seja, afinal, porque no sertão era muito frequente a presença de professoras leigas... Assumir isso é como concordar que o outro alfabeto é que é o “letrado”... o “certo”, e o nosso, desvio... Com uma história dessas – seja a história do alfabeto ou a história da alfabetização – não podemos mais nos contentar com essa explicação do alfabeto “pouco letrado”. 

Lembrando, com Bilac, na epígrafe do início do post, que na língua tem disso: “amo-te assim, desconhecida e obscura”, mesmo com tantas lacunas. Mas vamos apostar no que é esquecido, daquilo que ainda é lembrado... e dar espaço àquilo que é lembrado do que já fora esquecido... A memória, mobilizada, engaja os sujeitos, o espaço e a cultura, na configuração da identidade regional. Não vamos deixar que o que restou seja esquecido e obscurecido de vez... Deixemos a memória oral do abecê “cantado” no Nordeste brincar com a cultura escrita. Deixem-nos ler o mundo com esses oito palavras-sons que se distinguem no nosso abecê. Não vamos ficar nem na saudade e nostalgia, nem na lamentação da “colonização” de nosso abecê, pelo abecê usado no outros cantos do Brasil, muito menos proclamando-o em um “bairrismo” cultural. Vamos assumi-lo!

É isso, gente! O próximo argumento trará uma discussão sobre os estudos contemporâneos que defendem que as crianças usam os nomes das letras como pistas sonoras para grafar as letras em uma palavra, reforçando, portanto, que a maioria dos nomes nordestinos, de fato, facilitam a alfabetização.
Até breve!
Lica

P.S. 1. As referências serão postadas no final de todos os posts.

P.S. 2. Agora, uma coisa é certa, não fosse o fato de caçoarem ou renegarem esse modo cultural de falar as letras, certamente não teríamos as pérolas de Nonói contador de causo e de Luiz Gonzaga e Zé Dantas. Já vale por isso!

“Prefiro o velho ABC
Sem procurar inovar
Se adotou pra si o ésse
Não vou também adotar
Ninguém vai me convencer
A mudar o que aprendi
Hei de honrar até morrer
O saber que adquiri”. 
(Nonói contador de causo)

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Entrevista Alfaletrar

Oi, gente!

Passo para divulgar a entrevista que dei para a plataforma do Alfaletrar, projeto de iniciativa da professora Magda Soares, sobre alfabetização e letramento.

A entrevista, a pedido da professora líder do projeto na plataforma, Sonia Madi, aborda vários temas, como o papel das aprendizagens linguísticas, especialmente as letras do alfabeto; a pesquisa sobre o abecê nordestino e o que é essa história de Oficinas de Alfabetização.

Eu espichei muuuuuito as respostas (porque sou assim, espichada, como vocês sabem), mas fizeram uma ótima edição da entrevista, então, não é textão! Confiram!

Um dia posto as respostas completas, quem sabe...
Por ora, só tenho a agradecer a Sônia pela oportunidade. 


Inté,

Lica

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Abecê Nordestino. PARTE 2: Argumentos da história do alfabeto

Oi, gente!
Vamos à Parte 2 de nosso estudo sobre o abecê nordestino, trazendo argumentos da história do alfabeto. A parte anterior a essa está aqui.

Quando o alfabeto surgiu entre os povos semitas, as letras, como nos lembra Cagliari (2009a), partiram de uma lista de palavras (alef, beth...), cada uma com um som inicial diferente e cujos significados remetiam à forma figurativa dos hieróglifos egípcios que foram adotados. 

Ou seja, parece que as letras eram motivadas pelas imagens do objeto designado pela palavra e a letra inicial dessa palavra remetia ao som dessa letra. Isso é muito importante para nossa discussão. Cagliari (2009, p. 40-41) diz que “essas palavras passaram a ser os nomes das letras e um modelo de referência para se achar qual letra deveria ser usada, ao se analisar as palavras em seus segmentos fonéticos consonantais”.

O exemplo clássico disso é a primeira letra do alfabeto semítico, nomeada de aleph, que significava boi, e era representada pelo hieróglifo para boi. Assim, esse hieróglifo ficou sendo a letra que representava aquele som inicial da palavra aleph, o som /a/ - que era meio gutural, não como nossa vogal hoje. 

 Nessa origem do alfabeto, “um princípio acrofônico era a chave para decifrar e escrever o alfabeto: bastava saber o nome das letras, reconhecer o som consonantal e usar o caractere correspondente para escrever as consoantes que iam sendo detectadas nas palavras a serem escritas” (CAGLIARI, 2011, p. 3). Ou seja, isso de os nomes das letras darem a pista de seus sons, é que se chama de princípio acrofônico e, como estamos vendo, esse princípio está presente desde a origem da escrita alfabética. Aliás, é por isso mesmo que Cagliari (2009b, p. 14) diz que quem inventou a escrita inventou ao mesmo tempo as regras da alfabetização”.

Então, essa lista de palavras – primeiro abecedário, por assim dizer – serviu de base para o princípio acrofônico e acabou originando os nomes das letras. Embora remetendo a formas figurativas da escrita hieroglífica, o que guiou o estabelecimento dos nomes das letras foi, desde o início, a pista dos seus sons. Como Cagliari enfatiza, o alfabeto foi inventado através do princípio acrofônico: no nome das letras (em geral no início da palavra, mas não necessariamente) ocorre o som mais característico que a letra representa no sistema. E no início, era a letra inicial do nome que remetia ao som das letras.

Os gregos adaptaram o alfabeto semita dos fenícios aos fonemas sua língua e também modificaram os nomes das letras, que passaram a ser apenas nome de letras – nomes próprios – não mais vinculadas a um significado outro. Mas, em essência, mantiveram o mesmo princípio, ou seja, o funcionamento do alfabeto pelo princípio acrofônico: os nomes das letras gregas davam pistas do som dessas letras, e também nesse caso, de forma mais direta – era a letra inicial que se remetia ao valor sonoro da letra. Suas formas gráficas também perderam o caráter icônico, os nomes das letras, assim, já não seguiam o sentido, mas tão somente o princípio acrofônico. 

Percebam, então, que esses sistemas, que foram a base do nosso alfabeto latino, seguem esse princípio acrofônico pelo som inicial dessas palavras, ou seja, o som /a/ era representado pela letra alfa, cujo som inicial /a/ corresponde ao som daquela letra; o som /b/ era representado pela letra beta...

Chegando ao alfabeto latino, percebeu-se que, como a escrita alfabética se baseia na relação entre fonemas e grafemas, que o que importa é o som das letras, não era necessário que as letras tivessem nomes próprios. Assim, ao se apropriarem do alfabeto grego, por meio dos etruscos, e estabelecerem o alfabeto latino, os romanos modificaram os nomes das letras. E como nomear as letras? – Eis a questão. É Cagliari (2009a) quem continua a nos contar sobre isso. Os romanos entenderam que, se a chave para decifrar as letras estava nos seus nomes, não era necessário ter nomes próprios, especiais, para essas letras, como no alfabeto semita ou grego, bastava o nome remeter ao som das letras. Ou seja, se a escrita alfabética é baseada no princípio acrofônico, bastaria identificar os sons das letras para constituir seus nomes.

Com os sons orais das vogais, que são fonemas que soam, era fácil nomeá-las: bastava lê-las e esse era o nome delas: A, E, I, O, U. Como as consoantes precisam do apoio de uma vogal para serem pronunciadas, optou-se, para nomeá-las, por usar uma vogal de apoio. Desse modo, pareceu prático designar as letras por monossílabos iniciados com o som mais representativo de cada uma delas, seguidas de uma vogal, no geral a letra E, tornando esse nome pronunciável.  “Assim, as letras passaram a se chamar a, bê, cê, dê, etc” (CAGLIARI, 2009a, p.70). Por essa lógica, as letras F, L, M, N, R, por exemplo, deviam seguir esse mesmo sistema: fê, lê, mê, nê, rê... E o autor continua assim: “No começo, as consoantes se diziam pelo som inicial mais a vogal E, exceto K, que se dizia ka, Q que se dizia qu e X que se dizia iks” (CAGLIARI, 2009a, p. 70). Se essas eram as exceções, então a afirmação nos faz pensar algumas coisas:

     1) que sim, de início se dizia fê, lê, mê, nê, rê...;
     2) que os nomes das letras mudam na história.

Em outro texto (CAGLIARI e MASSINI-CAGLIARI, 1999, p. 177), afirma-se também que em algum momento da história do alfabeto latino, “havia duas maneiras de se dizer os nomes das letras, pois algumas tinham sofrido uma mudança de nome passando a ser ditas com um -e inicial, seguindo o som da consoante, como em ef, el, em, em, er e es”. Então, vejam que coisa interessante!

Cagliari (2009a,1999) relata que na época de Varrão (116-27 a.C.) havia os dois modos de se referir aos nomes das letras – ou seja, pronunciados de forma mais direta como na origem do alfabeto latino, com a letra inicial dando pistas do som que representam (ou seja fê, lê, mê...) e a versão com o -e anteposto ao F, L, M, N, R. 


De qualquer modo, isso quer dizer que, indo longe na história do alfabeto, essa forma precede à forma efe, ele, eme, erre...Varrão foi um filósofo e enciclopedista romano, que escreveu a mais antiga gramática latina. Nela, há uma sistematização, além de outras coisas, dos nomes das letras, pelo critério seguinte: distinguindo as consoantes oclusivas das demais, as não-oclusivas (fricativas, laterais, vibrantes e nasais) recebiam a vogal de apoio – a letra E – antes do som consonantal representativo do som da letra, ou seja: ef, el, em, en, er, es (depois pronunciadas em português como efe, ele, eme, ene, erre e esse).



Assim, na época de Varrão havia as duas designações possíveis para essas letras – a antiga, fê, lê, mê, nê, rê – e essa estabelecida pelas regras novas. Se foi proposta do próprio Varrão ou não, não é fácil comprovar. Há quem remeta a mudança na nomeação das letras ao alfabeto etrusco, intermediário entre o grego e o latino. E essa forma nova de dizer o nome das letras em latim passou, depois, de algum modo, para muitas das línguas europeias, como o português (mas não apenas para as línguas neolatinas). Vê então que, indo lá para trás, podemos questionar a precedência e mesmo a lógica dessa nomeação? Por razões históricas, a sistematização da época de Varrão ficou valendo, mas poderia nem ter ficado. 

Notem que, para novas letras que foram surgindo depois - porque as línguas e suas notações são dinâmicas e mudam na história -, essa regra do -e antecedido nos nomes de letras que representam fonemas não oclusivos nem foram mais consideradas – o que nos faz relativizar a necessidade e pertinência da regra. As letras V e Z,  embora representem fonemas fricativos (ou seja, não-oclusivas), sendo – tal qual usadas hoje – incorporações tardias no alfabeto latino, não entraram nesse sistema para as não-oclusivas. Ou seja, pela regra de formação dos nomes das letras dessa época, uma vez ganhando esses outros valores sonoros, as letras V e Z deveriam se chamar eve e eze...!!! E foi assim? Não, né? 

 
  
Quando essas letras, com esses sons, surgiram, deram-lhes os nomes mais diretos, como se fossem oclusivas, pelo sistema da época de Varrão: vê, zê. Então para onde foi a lógica? Isso nos leva a pensar na arbitrariedade da determinação dos nomes das letras e, consequentemente, sobre o que seja certo ou errado nesse contexto. Essa determinação pode, realmente, ser tomada como o parâmetro, a medida de todas as outras alternativas de nomeação das letras? Nessa época, os estudos gramaticais enfatizavam muito essa diferença entre os fonemas constritivos e oclusivos - essa distinção ir parar nos nomes das letras pode ter sido um arranjo bem próprio ao conhecimento gramatical da época, não é? E ainda assim, arbitrário e sem um lógica interna que, de fato, justifique-o. Tudo bem que, por algum motivo (não exatamente linguístico ou lógico), esse modo de nomear ficou valendo, no curso da história, e se consolidou - mas a questão é: isso pode ser determinante para se tornar o único abecê legítimo?

Assim, esse aspecto da história do alfabeto nos remete, novamente, à nossa discussão sobre o abecedário nordestino, seja em termos de sua validade cultural, seja em termos de sua funcionalidade na alfabetização (sobre isso aprofundaremos mais nas partes 3 e 4). Saber dessa origem dos nomes das letras – seja em uma ou na outra realização – não nos ajuda a relativizar o uso do alfabeto “oficial” simplesmente porque “é o certo”? Não nos ajuda a recuperar a possibilidade de transmissão de nosso saber cultural de forma mais contundente? A assumirmos que no Brasil temos duas formas de nomear as letras? Tudo o que muda, exige historicidade para não se julgar inadvertidamente sobre o que seria “certo” ou “errado”, naturalizando o que tem história e, por vezes, uma história que não justifica, exatamente, tomar as coisas – mesmo no recorte de um dado momento histórico – como verdade dada, única, regida pela dicotomia certo/errado.

Se o alfabeto que se firmou como modo valorizado de designar as letras na língua portuguesa foi constituído historicamente, essa origem nos ajuda a relativizar essa história de “correto” e de “precedente”. A história nos ajuda a ver que nada é dado, assim, não pode ser considerado, essencialmente, e em si mesmo, o “correto”. Esse modo legitimado, “oficial”, não o é por razões necessariamente linguísticas, mas históricas, sociais, culturais, envolvendo relações de poder, a distribuição do poder entre os falares das regiões e dos sujeitos sociais.

Desvelar essas raízes e essa precedência não implica, no entanto, usar tais conhecimentos para argumentar sobre um suposto alfabeto “mais correto”, seja qual for, ou coisa do gênero, não se trata de disputa. Na verdade não é o que veio primeiro que importa, de fato, mas mostrar que, justamente, isso não constitui um argumento válido para legitimar uma forma em detrimento da outra. O que propomos é um reposicionamento da questão.

A história do alfabeto, contando-nos sobre a origem dos dois modos de designar as letras, também nos ajuda a entender que não procede dizer  que efe é nome e é som – e muito menos fonema – pois mostra que os nomes das letras, desde o início, foram dados a partir do princípio acrofônico, e inicialmente, pela relação mais direta: a primeira letra do nome da letra dando pista do fonema (ao menos de um dos fonemas) que essa letra representa. Por que, então, essa insistência em afirmar que se trata da oposição nome e som? Por que achar estranho lê, fê, rê...serem nomes, se bê, pê, tê...o são sem nenhum problema? só soa estranho (para alguns) porque se acostumaram com efe, não porque seria intrinsecamente estranho. Naturalizar o circunstancial por desconhecimento pode não ser o problema, o problema maior é não querer considerar as circunstâncias para continuar defendendo o que lhes “soa melhor”.

As consoantes F, L, M, N, R e S, que mudaram de nome, tendo o som consonantal precedido da vogal E (ou I, no caso do S), em vez de seguido dela como as demais letras, são as que se distanciaram mais do princípio acrofônico. Ainda são regidas por esse princípio, pois o som da letra de referência continua lá (o fonema /f/ se ouve em efe), mas não é mais no início da palavra, como nas escritas fenícia e grega e, inicialmente, também no alfabeto latino. Ou seja, o que a história parece mostrar é que, com esse sistema de nomeação da época de Varrão,  afastou-se mais o nome de algumas letras de suas formas sonoras correspondentes, e por razões bastante arbitrárias.
ATENÇÃO: O caso da letra G é especial, pois ambos os nomes, e guê, dão pistas de um dos valores sonoros que a letra assume no sistema, ambos sendo oficialmente reconhecidos, e o caso do J também, pois tem um processo de nomeação diferenciado. De qualquer modo, no nome jota ouvimos muitos sons que não fazem parte do valor sonoro da letra J, sendo o nome ji mais simples, como o si. Discutiremos sobre isso mais em detalhes na publicação sobre essa temática.
Certo é que a representação do som da letra seguida da vogal favorece mais o estabelecimento da relação entre nome da letra e o fonema que ela representa, pois esse nome, construído como é no alfabeto nordestino, é mais aproximado de seu valor sonoro nas palavras – discutiremos adiante as implicações disso na alfabetização, o próximo post traz argumentos que reforçam essa ideia.

Os argumentos da história do alfabeto, entretanto, se nos ajudam a desvelar a origem dos dois abecês, não explicam exatamente os usos do abecê no Nordeste do Brasil –especialmente no sertão, mas não apenas, amplamente na Bahia, mais não apenas –em tempos bem mais próximos de nós, antes de o modo oficial de pronunciar as letras chegar às suas escolas.

É sobre isso que discutiremos no próximo post, o Post 3, em que traremos argumentos da história da alfabetização no Brasil.


terça-feira, 17 de outubro de 2017

Sertão como se fala

Esse post é apenas para registrar o lançamento on-line do filme realizado por Leandro Lopes e o Coletivo Adiante, já bastante referido aqui no blog e no Face. 

Para ver o filme em tela grande, clique no ícone de aumento da tela, no título abaixo ou aqui



É isso, gente.
Assistam!
Para saber mais sobre a realização do filme, ver aqui no Blog e no Face do filme.
Lica

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Abecê Nordestino. PARTE 1: As letras e o alfabeto nordestino

Antecede esse texto a parte da Introdução, já postada.
Discutir sobre o abecê nordestino no contexto da alfabetização, requer tanto uma abordagem de cunho cultural, quanto linguística e pedagógica. Nessa primeira parte busca-se contextualizar a questão da nomeação das letras nesse abecê, esboçando o posicionamento quanto ao lugar do aprendizado das letras na apropriação da escrita alfabética, bem como introduzir as questões culturais e linguísticas que envolvem os usos e o ensino do abecê nordestino, apresentando, em especial, o argumento sociolinguístico que perpassa a problemática posta nesse estudo.
No post aqui no blog, irei apenas trazer notícias do que será discutido nessa parte, no estudo que será publicado em breve, tanto devido ao tamanho do texto, quanto para manter a surpresa. 
a. Letras...seus nomes, seus sons, seus traçados...
Nessa parte, vamos discutir sobre o lugar das letras na alfabetização. Entre perspectivas que negligenciam a aprendizagem das letras, pois enfatizam que a alfabetização se dá na imersão nas práticas letradas, e, no outro extremo, a perspectiva que aborda o ensino das letras, seus traçados, seus nomes e/ou seus sons, de forma mecânica e descontextualizada das práticas de leitura e escrita, é preciso, e possível, achar um caminho outro que não essa oscilação entre extremos. Aprender os elementos da notação alfabética também faz parte das aprendizagens relativas à cultura escrita e aprender as letras não se resume a aprender uma lista de caracteres. As letras são os caracteres da escrita! Caracteres de um sistema complexo. As crianças que convivem com a cultura escrita, desde bem pequenas, sabem disso, podem saber disso, querem saber. Elas têm contato com letras de diversos tipos, traçados, presentes em diversos materiais, em diferentes situações socioculturais, apresentando, desde cedo, um interesse crescente por essas marcas gráficas, principalmente aquelas letras presentes em seus nomes próprios, de seus familiares e colegas.
Exemplo de atividade mecânica tradicional.
Para superar práticas de alfabetização que se construíram operando um apagamento das práticas de leitura e escrita, que investiam na cantilena do alfabeto inteiro, na grafia de letras individualizadas, descontextualizadas, na soletração de letras e/ou na junção delas em sílabas soltas, foi preciso radicalizar, tivemos que nos armar contra isso, que era igualmente maltratar os caracteres da escrita alfabética. Mas será que, para defendermos as perspectivas com foco nos textos e discursos, é necessário nos armar contra as letras em si mesmas e seu aprendizado, operando igualmente um apagamento dos aspectos linguísticos da notação alfabética? É preciso aprender as letras, claro! Aprender a reconhecê-las e grafá-las, aprender seus nomes, para podermos nos referir a elas e ir aprendendo as relações com seus “sons”,– são aspectos que fazem parte das aprendizagens linguísticas e da metalinguagem envolvida no aspecto notacional da linguagem escrita.
Aprender os nomes das letras, discutiremos mais adiante, é importante também porque os nomes dão pistas de seus “sons”, no caminho de apropriação da notação alfabética.
Os estudos históricos e linguísticos de Cagliari e Massini-Cagliari (1999) nos ensinam sobre a constituição e a beleza do alfabeto, suas possibilidades e limites, sobre a configuração gráfica e funcional das letras e a relação entre essa configuração gráfica e a configuração funcional, na alfabetização,  bem como nos ensinam sobre o princípio acrofônico (CAGLIARI, 2009a, 2009b), que usamos para decifrar os valores sonoros das letras, e sobre o qual falaremos muito aqui ainda.  Com Cagliari (2009a, 2009b, 2011) aprendemos tantas coisas interessantes sobre as letras e o alfabeto, através dos tempos e espaços, na história da constituição dos sistemas de escrita pela humanidade. Essa história mostra a importância das letras na constituição histórico-social da escrita, do sistema alfabético, e em sua aprendizagem pelos sujeitos. É a essa potência que nos referimos aqui ao falar das letras. 


As letras não negam os textos! Elas são os seus tijolos. Assim, reafirmo as letras e a sua aprendizagem como aspectos importantes no campo da alfabetização, marcas que interessam às crianças – mesmo às pequenas, quando convivem com a escrita no dia a dia. Trata-se de um conhecimento que é social, que precisa ser ensinado às crianças, no contexto da apropriação da cultura escrita.
Bom, mas essa história toda sobre letras é, também, para justificar a conversa sobre o alfabeto nordestino – ou do  abecê do sertão, como dizem. Ao menos, por ora, por isso. Ou seja,uma conversa sobre o jeito de chamar as letras, atribuído ao falar do Nordeste, do sertão. E vamos então ao abecê nordestino.
b. O abecê nordestino
O jeito de falar as letras no Nordeste é referido, muitas vezes, como uma variedade linguística do nordestino, outras vezes como vício de linguagem, curiosidade exótica, às vezes com uma tolerância regional quase romântica, outras vezes sendo alvo de chacota e preconceito, como vimos aqui. Como nos ensina Maurizzio Gnerre (1985, p. 4)“[...] uma variedade linguística ‘vale’ o que ‘valem’ na sociedade os seus falantes, isto é, como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais”, e nesse quesito, o preconceito com o Nordeste extrapola as questões linguísticas, o preconceito linguístico é, pois, antes de tudo um preconceito social. Em vez de tomar todas as formas como variações, um modo de falar, nessa perspectiva, é visto em comparação com uma forma tomada como a correta – que o é por razões históricas, políticas, sociais, não propriamente linguísticas. Como nos lembra Bagno (2002a, p. 180), Fontes, referindo-se ao português do Brasil em relação ao lusitano,  já denunciava, em 1945, que o “desprezo de nossa língua anda sempre irmanado ao descaso por tudo o que ela representa: a gente e a terra do Brasil”. O mesmo se dá entre os falares, as gentes e as terras de diferentes regiões do Brasil.
Como pano de fundo sociocultural em que a questão do abecê nordestino está ancorada, e fazendo coro com o campo científico de estudos sobre as variedades linguísticas e sobre o preconceito social envolvido nessas questões, trago aqui a voz de Marcos Bagno, no prefácio do Dicionário do Nordeste, de Fred Navarro, que diz que, apesar de todo o avanço científico na área da linguística, especialmente da sociolinguística, continua circulando na sociedade concepções de língua falada e escrita que são arcaicas. O autor, de certo modo, ressalta o papel da mídia brasileira, que não parece estar interessada em dar um tratamento científico aos fenômenos de linguagem, tratando do tema a partir de caricaturas dos falares regionais. Diz Bagno (apud NAVARRO, 2004, p. 12): “Em suas manifestações sobre a língua, a mídia brasileira perpetua uma série de crenças infundadas, baseadas numa visão estreitamente normativista e estereotipada dos conceitos de ‘língua certa’ e ‘língua errada’” que “ajudam a preservar e a nutrir um tipo de preconceito profundamente arraigado na nossa cultura, o preconceito linguístico, fator de exclusão social”.
Dialogando com essa perspectiva de fundo – mas não apenas essa – é que vou me debruçar aqui sobre o abecê do nordeste, ou seja, o jeito de nomear as letras fê, guê, ji, lê, mê, nê, rê, si. Lembro, inclusive – como já postei aqui numa das provocações que iniciaram essa discussão – que essas formas estão registradas em dicionário (Houaiss, Aurélio e outros) e indica-se outras possíveis designações no Acordo Ortográfico de 1990, reiterado em 2009. O argumento – tal qual ouvi ou li aqui e ali – de que esse abecê “oficial” seria o certo porque “está na gramática”, nas normas para a língua, não tem lastro nos estudos sociolinguísticos e nem mesmo nesses documentos descritivos ou normativos. Para nós, da área de linguagem, não há nenhuma dúvida de que gramática não é sinônimo de língua – que é muito mais ampla e apresenta variações – para o senso comum, no entanto, esse poderia ainda se constituir em um argumento para defender o alfabeto “oficial” como o correto e basear posicionamentos preconceituosos. Vemos no entanto, que nem isso se sustenta. Precisamos, pois, sair de uma posição de preconceito ou de ingenuidade, e estabelecer uma discussão realmente frutífera e esclarecida sobre o tema.
E para dar início a essa discussão esclarecida, começaremos pelos artistas nordestinos da palavra, representantes da voz da cultura popular em articulações com a cultura em geral, que muito nos ensinam nesse sentido. Luiz Gonzaga, em seu “ABC do sertão” (composta com Zé Dantas), é quem nos dá a notícia mais certeira do jeito de falar o alfabeto no sertão nordestino. Assim também é o cordel “A letra é rê e não erre”, do baiano Noédson Valois, o Nonói contador de “causos”, menos conhecido, que afirma esse abecê, defendendo-o melhor do que nós – estudiosos do campo da linguagem – poderíamos fazê-lo.

Ouvir aqui.
A canção contribuiu muito para divulgar essa prática do ensino do alfabeto, inclusive, fora do Nordeste do Brasil, mas, a despeito disso, como vimos na quinta provocação sobre o abecê nordestino, postado aqui no blog, há quem consiga até mesmo criticar a canção, sob o argumento de que “assassina a língua portuguesa”, ou que Gonzagão era analfabeto e por isso não conhecia os “fonemas”, dentre outras pérolas, que vocês podem ver aqui. Note-se, entretanto, que, de algum modo, o uso desse abecê aparece na canção como algo escolar: “pros caboclo ler, têm que aprender outro abecê”, “na escola é engraçado...”. Se Lua fala do sertão por contraste, como alguém que se encontra num entre-lugar, do qual pode ver a diferença, pode julgar “engraçado”, quase assumindo – digamos assim – certa comicidade ou atraso na situação. Ou seja, fala para uns e para outros, então.
Nonói, por sua vez, é mais explícito no seu jogo de contrastes, argumenta e contra-argumenta sem dó. Falar erre, esse, ele... seria, para ele, uma inovação sem necessidade, o abecê “oficial” seria uma espécie de “remendo”. E, para isso, brinca com as palavras: “a letra é rê e não erre!” Com Nonói, não vamos errar!
CD Bahia Singular e Plural (IRDEB, 2000) – Vol. V (faixa 6)
Ouvir aqui: 

No caso desse cordel, a afirmação do uso do abecê aparece para além da escola, para além do momento do ensino da leitura – “é assim que a gente lê” –, embora, evidentemente, relacione-se também com o contexto escolar. 

Essa pérola de Nonói foi José Rêgo que me mostrou, e faz parte, igualmente, do repertório da Canastra Real, junto com o “ABC do sertão”. 
Antes de seguir, quero não deixar dúvidas a respeito do lugar do qual eu mesma falo – sou nordestina e o alfabeto que aprendi, aos 5 ou 6 anos, era nordestino... (e eu não era do sertão, mas de Salvador mesmo). Falo desse lugar... Então, sigamos.
Já vi atribuírem o uso desse alfabeto no sertão ao fato de os professores, nesse contexto, serem, em grande parte, professores leigos, antes das instituições e dos programas de formação chegarem aos municípios mais distantes dos centros urbanos. Ora, podemos nos perguntar: por serem leigos, não tiveram acesso ao conhecimento “correto” do nome das letras ou, por estarem longe do discurso oficial, estavam menos sujeitos à “colonização” desse modo de falar, à hegemonia dos modos de ser da linguagem falada nas regiões sul e sudeste? Será que ele era usado só no sertão mesmo? Sou moça da alfabetizada no início dos anos 70, na capital, zona urbana litorânea, minha professora era formada, e só vim conhecer o efe, gê, jota, ele, eme, ene, erre, esse quando bem maior que isso! Até hoje oscilo entre um e outro...e pronuncio, sem pensar nem pestanejar, normalmente, as letras “nordestinas”. O alfabeto sai, de mim, mais rápido e natural assim... E então, mesmo considerando que não é tão simples discernir o alcance daquilo que venha a ser “sertão”, se no Brasil o conceito é, geralmente, associado ao interior, bem como à aridez, ao atraso, à miséria, ao iletrado, de falar chulo, e, mais objetivamente, no sentido geográfico, considerado uma subárea ou sub-região que envolve vários Estados – Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe – podemos, então, questionar que seja só do sertão mesmo, ainda que reconheçamos sua forte identidade sertaneja – quem somos nós para negar Seu Lua, não é? Mas, então, por que esse alfabeto ficou sendo no Nordeste? Porque ficou sendo do sertão? É do Nordeste ou é do sertão? E é só do Nordeste? Por que será que permaneceu mais forte na Bahia? Por que será que na Bahia não é só no sertão que “se ouve tanto ê”, diferente de outras capitais que estão, efetivamente, na sub-região do sertão, mas já o “esqueceram”? Será que no processo de “invenção” do Nordeste, tal qual discute Albuquerque Jr. (2009), toda a região Nordeste ganhou um caráter sertanejo e por isso, caberia falar de abecê do sertão, mesmo havendo uso na capital, ao menos na Bahia? E mais... quem determinou o alfabeto “correto”? De onde surgiu o efe, e de onde surgiu o fê? O gê, o guê, o jota, o ji?... Qual as raízes de cada um deles?
Essas são questões que precisamos colocar, mesmo que algumas, não consigamos responder. Para tentar compreender alguns desses aspectos, ou ao menos buscar mais indícios e trazer a complexidade da questão à mostra, se faz necessário mergulhar em um campo complexo de informações históricas, que envolvem ora a história da escrita, da constituição do alfabeto,ora a história dos métodos de alfabetização no Brasil. E ainda tem a cultura do Nordeste...São muitos aspectos a considerar.
Um argumento de base nessa questão é o argumento das variedades linguísticas e suas relações com questões de ordem cultural e sociopolítica. Entretanto, mesmo se tomarmos a questão do abecê pelo viés da variação linguística regional, com todo o respaldo sociolinguístico e cultural para validá-lo, ainda me parece faltar uma discussão mais ampla sobre ouso desses dois tipos de alfabeto, suas origens, seus usos, suas funcionalidades. Assim, é pertinente situar a problemática e trazer alguns aspectos para continuarmos a pensar sobre isso, fundamentando nossa defesa do alfabeto que usávamos e ainda usamos, em alguma medida, no Nordeste, e buscando um posicionamento mais potente diante desse uso. Embora não seja uma pesquisa fácil de ser feita, e se ache pouca coisa sistematizada sobre o tema, quero levantar ao menos alguns aspectos que possam, porventura, contribuir nesse sentido. E não apenas para os nordestinos! Trata-se de uma herança cultural brasileira e da história da alfabetização no Brasil!
Nisso, saber como, historicamente, se chegou a essas duas formas de designar certas letras – o fê, guê, ji, lê, mê, nê, rê, si e o efe, gê, jota, ele, eme, ene, erre e esse – ajuda bastante a situar a questão de outro modo. Quem traz alguma informação sobre isso, desde a constituição de nosso alfabeto latino, é o linguista Luiz Carlos Cagliari, ao tratar da origem do alfabeto na história da escrita (Parte 2). Cagliari é quem nos ajuda a desmistificar, em primeiro lugar, isso de que uma forma seja mais correta que a outra (2009a), mostrando as origens remotas de ambas as formas do alfabeto.

Nada mais pertinente para combater o preconceito linguístico e o tom jocoso do preconceito social, imbricado naquele, do que passear um pouco pela historicidade dos fenômenos. Não para criar disputas, justificar-se, mas para reposicionarmos a questão em outros termos. É sobre isso que falaremos na parte 2, no próximo post. Aqui!