segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Quadrinhas lacunadas Troca rimas

As quadrinhas populares constituem um gênero oral da tradição, muito recorrente também em brincadeiras diversas. 

A quadra é uma poesia de forma fixa que compõe-se de quatro versos (daí quadra) e com rima obrigatória geralmente entre o segundo e o quarto verso. A métrica é o verso de sete sílabas, ou seja, a redondilha maior. A contagem de sílabas poéticas, ou sílabas métricas, no entanto, não é igual à contagem de sílabas escolares, relacionadas à escrita. Trata-se de uma contagem que tem relação com o ritmo, uma escansão pela contagem dos sons dos versos até a última sílaba tônica. Além de ser uma forma poética em si mesma, a quadrinha também é uma estrutura que pode estar presente em vários outros gêneros, como cantigas, parlendas, canções, poemas, adivinhas (as quadras-adivinhas).

As rimas entre palavras são apreciadas pelas crianças desde cedo. As sonoridades dos textos poéticos, e no nosso caso, das rimas constituem, ao mesmo tempo, em matéria da poesia e em matéria da alfabetização. A rima é um recurso poético, mas também de uma unidade fonológica. Na poesia, a rima é jogo de sonoridade que traz graça e musicalidade ao texto, e na alfabetização, é uma unidade fonológica global que contribui para chamar a atenção para a dimensão sonora da língua, e tudo isso brincando e refletindo sobre a oralidade e sobre as palavras escritas, na continuidade das práticas brincantes.

Como toda abordagem da tradição oral na alfabetização, é fundamental explorar as quadrinhas oralmente, memorizar algumas, brincar com elas, para refletir sobre as rimas na alfabetização. Assim, trata-se de refletir sobre aspectos fonológicos e notacionais da escrita na continuidade da exploração lúdica e da fruição dos textos poéticos. Podemos brincar oralmente, e depois por escrito, de encontrar novas quadrinhas substituindo os pares que rimam. Vamos ver um exemplo?

Eu sou pequenininha 
Do tamanho de um botão 
Carrego papai no bolso
E mamãe no coração.

Depois de algumas quadrinhas serem conhecidas, o professor fala as quadrinhas (é bom que saiba umas de memória) trocando a última palavra do segundo verso, para que as crianças encontrem outra que rime com essa, no quarto verso. Ora, para fazê-lo, precisarão produzir palavras rimadas. É um jogo de consciência fonológica (produção de rimas), mas também para dar risada, pois as quadrinhas formadas com novas palavras muitas vezes trazem graça, especialmente quando o sentido fica engraçado, nonsense, surreal. Vamos à quadrinha:

Eu sou pequenininha 
Do tamanho de um DEDAL 
Carrego papai no bolso
E mamãe no _________ 

As crianças podem dizer: AVENTAL, MILHARAL, BORNAL, VARAL...Podem dizer coisas engraçadas também, como NATAL, LAMAÇAL...que fazem graça com o sentido. Além da consciência de rimas, trabalha-se aí a consciência sintática e semântica, pois explora-se, respectivamente, tanto a habilidade de manipulação da estrutura das frases e a consciência gradual da unidade palavra, quanto o sentido (que inclui a graça do nonsense) das palavras. Claro que dependendo do nível do grupo em relação à consciência de rimas, ou à familiaridade com a reflexão sobre o segmento final das palavras, as crianças podem sugerir palavras que não rimam, e aí, cabe ir mostrando as rimas, para que se apropriem dessa habilidade. Identificar e produzir rimas, pareando as palavras por suas semelhanças sonoras são situações de consciência fonológica de rimas.

Dependendo do grupo, das possibilidades das crianças, podemos até mesmo explorar a noção intuitiva da métrica, pois para o ritmo dos versos, talvez sintam falta de algo a mais (mais uma sílaba poética, para ficarem 7). É o caso de BORNAL e VARAL, NATAL, que pede mais uma sílaba, e que pode ficar assim: “MEU BORNAL”, MEU VARAL”, "LÁ EM NATAL", com "LÁ NO" no lugar de apenas "NO".

Para fazer a atividade por escrito, as crianças observam não apenas os sons finais das palavras, mas seu registro escrito, apoiando a reflexão sonora, já que a escrita permite uma materialização das semelhanças entre segmentos, ampliando a consciência fonológica. Numa atividade de quadrinha lacunada, pode-se misturar no banco de palavras palavras rimadas e não rimadas, para escolherem as que podem caber no texto. De preferência, usar palavras mantendo a métrica: SACOLÃO, CELULAR, LÁ NO ALTAR, CACHECOL...

O kit de quadrinhas Troca-rimas, que vou apresentar aqui, traz, justamente, esse tipo de proposta. E é para usar apenas depois de brincar muito, na oralidade, de trocar os pares de palavras que rimas em quadrinhas diversas já memorizadas. Brinquei muito disso com meu filho, com meus alunos e alunas, até que me veio a ideia de fazer um kit, para brincar também em presença da escrita.

A consciência fonológica sem presença da escrita, na continuidade das brincadeiras com as quadrinhas, é uma fase muito importante, mas, a depender do contexto, é também fundamental trazer a reflexão para um nível mais explícito, consciente, deliberado, sistematizado, ainda na oralidade e também articulado à escrita. Observar oralmente todas as semelhanças sonoras que cabem como rima e as que não, já é uma análise oral mais refinada. Listar por escrito todas as rimas que encontrarem, por exemplo, já trás para a reflexão por escrito. A consciência fonológica de rimas (como de qualquer unidade, principalmente os fonemas) se amplia quando confrontamos as unidades fonológicas observadas com suas formas gráficas, como já discutido.

No planejamento de situações de apropriação da escrita, é preciso provocar a reflexão deliberada, consciente e explícita – oralmente e, principalmente, em presença da escrita, aproveitando, desde a Educação Infantil, a disposição lúdica das crianças em relação às sonoridades da língua. Observar a semelhança sonora de dedal, avental, milharal, varal, oralmente, identificando que a semelhança é no segmento final das palavras, e que essa semelhança sonora implica também em semelhança gráfica, no final dessas palavras grafadas, favorece o estabelecimento da relação entre pauta sonora e gráfica e a apropriação gradativa dos valores sonoros das letras - aspectos essenciais na alfabetização inicial.

O kit de quadrinhas lacunadas chamada Troca Rimas apresenta seis quadrinhas, mas pode ter muito mais. É só um kit inicial. As palavras em laranja no kit abaixo são as do texto original, e as pretas, novos pares. Ampliar o kit com palavras sugeridas pelas crianças é bem bacana também.


O material serve para brincar só de quadrinhas originais lacunadas ou de inventar novas rimas para as quadrinhas. Pode brincar com o material coletivamente na sala, todos opinando sobre as palavras que cabem nas quadrinhas, reconhecendo palavras, encontrando as palavras rimadas, comparando sua grafia final semelhante, associando-as aos textos. Pode também dar as quadrinhas a uma mesa com 4 ou mais crianças para elas montarem a original e depois as inventadas, enquanto outras jogam outros jogos, ou fazer quadrinhas suficientes para as várias mesas ter seu kit ou mesmo ampliar o número de quadrinhas. Caso necessário, pode dar somente os pares correspondentes, próprios à quadrinha entregue, para colocarem no lugar certo do texto. Pode também já dar montada originalmente, e pedir só para encontrarem os pares que podem encaixar e colocá-los em cima das palavras laranjas (originais). A ideia é, depois achar as palavras que completam a quadrinha original e colocar nos espaços lacunados, encontrar também o outro par que pode caber no texto no lugar do laranja. É importante ir observando como vão descobrindo os pares de palavras e escolhendo os textos em que cabem. Para os que ainda não leem com autonomia, precisam saber a quadrinha de cor ou o professor lê-la para eles, sempre que precisarem. Mas é preciso que eles mesmo tentem explorar os pares de palavras, ao menos encontrando as de grafia semelhante, mesmo que o professor precise, depois ler  também as palavras.

A situação que o material propõe é de reflexão sobre rimas – consciência fonológica de rimas, em presença do escrito. Brincando oralmente é de produção de rimas e brincando com o kit, de reconhecimento de palavras rimadas, ajustando o oral ao escrito e identificando grafias semelhantes. Também demanda a compreensão do texto, para que ao mesmo tempo que se produz situações engraçadas, como “te dou o meu pescoço”, em vez de “te dou meu coração” – que já garante risadas – também exige que busquem algum sentido, alguma coerência no texto, mesmo que a lógica seja um tanto comprometida (dê uma volta no colchão [...] está escrito numa folha de mamão”!). Trata-se aí de brincar também com outras formas de consciência metalinguística, como a consciência sintática e e semântica. Buscar sentido e burlar o sentido implicam, ambos, na consciência semântica. Desse modo, embora cada par de palavra seja pensado para cada quadrinha, considerando esse jogo entre sentido e não-muito-sentido, nada impede que as crianças experimentem usar pares diferentes, criando novos textos engraçados e bem nonsenses. Esses pares foram pensados para essas quadrinhas nesse kit. Mas nada impede de deixar livre para se fazer outros arranjos. Ex.: “Quem me dera ser agora/um cavalinho de caroço/para dar um galopinho/onde está o seu pescoço”... Bacana também é as próprias crianças inventarem outros pares de rimas e elas constarem no material - um material feito a partir das criações da própria turma! Entre tradição, renovação e invenção, a regra é se divertir, refletindo sobre rimas. Com isso, vão, ao mesmo tempo, memorizando as quadrinhas originais.

Para as crianças do grupo que já leem e escrevem com autonomia, para as quais a atividade, embora divertida, não desafia em termos da língua escrita, a atividade pode ser escrever novas quadrinhas com outras rimas engraçadas, ou apenas escrever novos pares de rimas para uma das quadrinhas – anotando todas as possibilidades encontrarem. Depois, podem ler para o grupo, e as que o grupo achar mais bacanas, podem até entrar para o kit de jogos. As crianças adorarão ter suas produções fazendo parte do kit.

É isso, gente! Inventar quadrinhas é muito bacana também! Depois de familiarizadas com o gênero, as crianças poderão experimentar fazer suas próprias quadrinhas.

sábado, 20 de outubro de 2018

Desfazendo “amizade” no Facebook: carta a de uma professora a outra professora


#textão detectado...

Sou low profile em muitas coisas, e também em termos de manifestação política, sempre fui (tem quem ache, por isso, que sou alienada, despolitizada...patrulhas da forma única de participação sociopolítica), embora tenha minhas posições, minhas leituras, meus conhecimentos da estrutura e da conjuntura política de meu país e globais. Tive oportunidade de ter ótimos professores de história – não doutrinadores, como quer a extrema direita, pois dos bancos da minha sala de aula também saíram muitos que estão situados em outra posição política e visão de mundo. Cada um (bem) informado, faz suas escolhas a partir dos discursos, por natureza, parciais e não neutros. Isso de que uma posição é ideológica e outra não é o conto da carochinha da direita, para dar ares de bicho-papão à esquerda. Ainda assim, política, ainda mais política partidária, não é algo que eu eleja como pauta preferencial de debates na vida e nas redes sociais. Sou tímida, mais afeita à política via cultura, via discursos outros, via sensibilidade e posturas na vida. Compartilho com poucos minhas posições, elejo poucas coisas nas quais me sinto segura em me expor – essa timidez, talvez herança de pais, a seu modo, tímidos também. Posto pouco no Face, e do meu jeito, sobre política, sem me esquecer das belezas, das sutilezas, do riso, com uma linguagem própria com a qual me sinto bem no mundo. Passo o meu recado. E toda escolha e posicionamento, no campo da educação e na vida, são, igualmente, de certa forma, política. Considero também a natureza da minha página (sou low profile também para me expor pessoalmente nas redes sociais, todas elas são de trabalho), minha TL não mudou muito de tom nesse momento histórico, embora eu não esteja silenciosa. Posto, de modo sutil (mas efetivo), costurado, muitas vezes, com o campo temático da minha página, no FB e no Instagram: linguagem, leitura, infância... Mas é assim, não por ter rabo preso com ninguém, não vendo nenhum produto ou serviço, pelo contrário, oferto coisinhas para quem é da minha área; não estou comprometida com propagandas ou cursos pagos; não caço seguidores, não barganho likes, não estou preocupada em agradar ou desagradar ninguém, não tenho nada a perder em me posicionar ou postar nada. Vejo muito, leio muito, mas falo pouco, troco com poucos, posto pouco, não uso #hastag. Sou assim. Minhas poucas postagens nesse momento mais crítico (não, eu não descobri a política anteontem! O momento mexe com as vísceras, pede grito), se são poucas e breves, não têm, assim, o impacto que justificaria manter estrategicamente oponentes como “amigos” no Facebook, para que cheguem a eles outros discursos, para que plante neles a dúvida, antídotos dos fake news de WhatSapp. Nem tenho WhatSapp. 

Essa volta toda é para dizer (sem que eles saibam que estou dizendo) a meus amigos verdadeiros (que me entendem sem eu pedir), que me entendam por desfazer a “amizade” de TODOS os que ostentam, na corrida presidencial, o apoio ao candidato do PSL na minha página. E não havia, nessa situação delicada, nenhum amigo meu, amigo mesmo, fora do FB, para eu ter que pensar em como eu faria nessa situação. Aliás, muitos deles fizeram ou ficaram tentados a fazer o mesmo. Eu fiz! Mas não haviam muitos, ainda bem...muitos são professoras, professores...ufa! Com certeza ainda tem os que, como eu, são low profile e não escancaram suas posições. Talvez até amigos mesmo. Não sei. Tudo bem, não vou caçar nas minúcias, não se trata disso. O problema maior é a ostentação do apoio e repetição, ignorante ou consciente, do deboche, do preconceito, do ódio, da desculpa à barbárie. Escrevi o texto que se segue para justificar a remoção da amizade de uma, apenas UMA, professora, com a qual eu matinha um contato mais próximo, embora à distância, pelo interesse dela pelos materiais que produzo. Ficou enorme, muito enoooorme essa justificativa – foi quando eu me dei conta que era, na verdade, um desabafo preso na garganta. De todo modo, resumi bem e mandei. Desfiz a “amizade”, claro. Como ficou sendo uma carta de desabafo da angústia desses dias e testemunho de minha posição, com palavras e contrapalavras (no sentido bakhtiniano do termo) dessa minha conversa comigo mesma e com uma professora, apenas uma...e todas..., guardarei a versão longa para a posteridade, me lembrando de mim mesma diante dos fatos, a aos que talvez achem que sou despolitizada, ou politizada de última hora. E fiz essa introdução, para que eu não esqueça o contexto desse escrito. Talvez decida postá-lo no blog. Ou não. Como virou quase uma carta-crônica argumentativa, protagonizada por duas professoras quaisquer, vou pensar nisso...

Vamos à carta!

Não sou petista “de carteirinha”, não mais, vejo os erros que foram cometidos (muitos não são erros, mas acertos, a depender do ponto de vista...acertos que incomodaram os privilegiados), tenho críticas (e quero continuar podendo tê-las), a maioria delas mais pela perspectiva do não atendimento a pautas de esquerda do que de direita, críticas pela reforma estrutural que não fez, por exemplo, mas também por barbeiragens, especialmente na política econômica, e conchavos – oficiais ou escusos. Ou seja, me decepcionei com muitas coisas, como muitos de nós, mas sei reconhecer e valorar o que fez, bem como reconhecer as pedras que encontraram no caminho. Nessa luta, sempre estarei do lado de quem possa trabalhar pelo crescimento do país sem que os mais desfavorecidos paguem a conta, quem tem mais chances de peitar a diminuição das desigualdades sociais, realizar a reforma política, mais do que necessária, defender as instituições públicas essenciais, a universidade pública e, agora, mais do que nunca, quem possa estabelecer, de fato, medidas, atreladas à reforma política, que façam com que corrupção seja menos oportunizada em nosso país (e não apenas de políticos). E definitivamente, não sou o tipo de “novo” que pretende fazer política com lisura, mas “roubando” legalmente os trabalhadores. Tenho votado no PT, por outras perspectivas serem ainda inexpressivas em termos de chances de chegar, efetivamente, ao pleito, mas não sou mais petista incondicional “de carteirinha”. Já fui (militei, do meu jeito, quando a estrela vermelha ainda era da cor da esperança), não sou mais. Mas vejo o antipetismo como uma cegueira radical que tomou conta de muitos (alguns estão acordando, devido à ameaça iminente de proporções gravíssimas), como se a corrupção tivesse sido invenção e exclusividade do partido, e como se só isso estivesse em jogo nesse tabuleiro eleitoral. Argumento que não vale nada diante da cegueira que se instalou em muitos, que, por sua vez, acham que cegueira é de quem apoia o outro lado. E aí não tem discussão possível. São mesmo perspectivas de vida diferentes, outro planeta! Engraçado é que muitos corruptos de outros partidos estejam aí, circulando, se candidatando, desculpados, e suas falcatruas jogadas debaixo do tapete, só porque não são PT, não é? Curioso... Mas a corrupção está longe de ser a única pauta da agenda que está em jogo na escolha do presidente (e teremos a chance de saber da corrupção - talvez ainda maior - do governo do seu candidato. Talvez dele próprio. Vamos apostar?). Sou, desde sempre, contra as pautas das políticas neoliberais que só beneficiam as grandes empresas, os endinheirados, que tiveram ameaçadas suas prerrogativas (naturalizadas) com as reformas sociais (insuficientes) que os governos petistas estabeleceram. Eles, junto com os políticos neoliberais, é que querem que vocês creiam que a única alternativa, na política econômica, ao capitalismo neoliberalista selvagem, seja a “ameaçadora ditadura comunista”. E conseguem! Apesar de 13, quase 14, anos de governo nada comunista...E mais...a privatização irrestrita também envolve nos vender aos EUA...nossa água, nossa Amazônia...o futuro de nossos filhos e netos, de nosso Brasil. Patriota só se for americano, seu candidato!

Na educação – sem plano para a educação  sobrará o conservadorismo, a Escola amordaçada, quiçá a militarização, e isso tudo associado a esse mesmo neoliberalismo. Neoliberalismo econômico combinado a autoritarismo social – quiçá totalitarismo –, nas escolas e universidades, será um desastre para a educação. Então, não entendo mesmo professor que vota por esse projeto. O neoliberalismo na educação – nossa área e ao qual sou terminantemente contra – investe na abertura da universidade aos financiamentos empresariais, às pesquisas instrumentais, utilitárias, que visem à produtividade, a agregar valor ao capital, propagando a adequação do ensino de crianças, jovens e adultos à competitividade do mercado internacional, que trata mérito como justeza, atribuindo peso neutro às condições, avaliando a chegada pelo apagamento das diferentes condições da saída, naturalizando privilégios. Essa não é minha visão de escola, de universidade, que sai do campo sociopolítico, para ser integrada ao mercado; de professor, como mero formador para o mercado de trabalho; e de estudante, como semente de mão de obra e consumidor do ensino – ensino tecnicista, instrumental, utilitário. É a sua visão? É a de seu candidato, da força empresarial que o apoia (por que será, né?). Se é a sua visão, então estamos mesmo a léguas de distância...E tem mais, a educação é por essência, sociopolítica, educar o nosso povo para pensar, para usufruir mais amplamente da cultura letrada, respeitando outras referências culturais, não tem como se dizer educadora e se furtar a essa natureza. Educar é educar para a diversidade, para a crítica, para a humanidade, para a justiça social. Ou não é educação. E tudo isso está em risco. A desumanidade instaurada, as belezas do humano para fora do campo da educação, a educação para fora da educação. A natureza social, cultural e política da educação, substituída pelo capital e ameaçada de morte violenta e implacável pela boca dos que você apoia. A subjetivação colonizada pelo mercado e pela intolerância social, política, étnica, e etc. Assim, de fato, “we don’t need no education! We dont need no thought control”. E do resto do refrão, também não!

Nunca apoiei ideais neoliberais tucanos, mas é preciso reconhecer agora que, apesar das enormes divergências políticas e de visões de mundo dos dois partidos, da política voltada para diferentes camadas da sociedade, havia, nas disputas eleitorais, minimamente, o respeito aos limites da democracia e, publicamente ao menos, não se posicionaram de forma frouxa quanto aos direitos humanos básicos, não afrontaram, ao menos não diretamente, a “dignidade da pessoa humana” – conforme princípio estruturante de nossa Constituição. Polarização política, em condições normais, é parte da democracia, e os oponentes partem para a disputa no voto, com ou sem algum jogo sujo. Algumas disputas acirradas, em época de eleição, como em disputas futebolísticas, exaltam os ânimos dos eleitores, criam embates, mas, desde que dentro do aceitável, é do humano, é do jogo político... E o mundo sempre está dividido entre os que defendem pautas de justiça social e os que defendem os interesses do capital. Agora é diferente...o postulante falastrão à presidência da república não esconde as barbaridades em que acredita, as profere publicamente e é idolatrado justamente por isso – e por isso mesmo, muitos se veem representados por suas ideias e ideais preconceituosos, ultraconservadores, ultra-neoliberais e “neo” fascistas (não entraremos aqui no mérito sobre o conceito clássico de fascismo, certo?). E não acredita no voto!

O que vamos assistir – já estamos assistindo – é a um projeto de retirada de direitos dos trabalhadores, que vai atingir não só aos menos favorecidos, mas a todos nós, para favorecer os poucos agrupamentos empresariais que “governam” o país, o mundo. Aliás, arrancar os direitos trabalhista nesse momento é também a continuidade da injustiça extrema que reina em nosso país, fazendo com que os menos endinheirados paguem pela crise, enquanto os patrões das grandes corporações ficam tranquilos com seus privilégios intocados. Como um trabalhador pode apoiar isso? Fazem-nos de trouxas! Quer dizer, a muitos de nós, não! É tão nojento quanto roubar dinheiro público! É, de certo modo, roubar dinheiro público, só que “legalmente”, pelos conluios dos nossos parlamentares, comprometidos com essa lógica. 

O que vamos assistir é às escolas e às universidades públicas precarizadas, voltadas para os interesses das empresas (!!!), e o professor aviltado, confundido com “comunista”, além do absurdo de se defender a educação de crianças à distância. Projeto tecnicista de desumanização que educador nenhum, que se preze, poderia defender, indo de encontro a tudo o que conquistamos em termos de concepção de infância e de educação. O que vamos assistir é às ciências humanas e sociais, desprestigiadas e até mesmo, menosprezadas, como já bem sublinhado pelo aspirante a Ministro da Educação – “não agregam valor!” (leia-se...às empresas, à iniciativa privada). Sou professora, pesquisadora, profissional da universidade pública, comprometida com uma visão sociocultural de sociedade, formadora de profissionais da educação, nunca, jamais, poderia compactuar com uma visão dessas. 

O que vamos assistir – já estamos – é à naturalização de uma candidatura que tem um discurso vil, à barbárie contra negros, mulheres, gays, índios, seguidores de religiões africanas e contra qualquer grupo, que, em um dado contexto, já sofra algum tipo de preconceito, denotando um enorme retrocesso na conquista de direitos. Já está acontecendo...já estão vivendo em estado de medo. O preconceito é anterior e vai continuar, mas com a “assinatura” do presidente, torna o cenário insustentável, barbárie. A galera ultraconservadora e preconceituosa já estava aí, mas no seu canto diante dos direitos conquistados, e agora se sente representada por aquele pode vir a ser o chefe maior da nação e, assim legitimada, saiu da toca para debochar, ameaçar, bater, matar, pois as declarações de seu líder incentivam os que precisavam só de respaldo para fazer valer suas ideias por meio de atos intolerantes...e intoleráveis. E vai piorar! E imagina de arma na mão!!! Se ele não é diretamente responsável, o seu discurso incita à selvageria irascível, legitimando o ódio, o preconceito, que são confirmados, enfatizados, publicizados como troféu, com o gozo dos likes de seus pares, e tudo isso, legitimado pelo líder no qual votam. Não à toa os crimes cometidos, aos berros, em nome de “você-sabe-quem”... Embora ele não possa ser legalmente responsabilizado pelos atos vis de violência física, verbal e moral de seus milhares de defensores, podemos dizer que, em sua postura sectária irresponsável, enunciada aos quatro ventos, ele autoriza simbolicamente a violência e o preconceito, sim. E, em nenhum momento, usa seu poder de exortação para, verdadeiramente, dissuadir seus seguidores desses atos inaceitáveis – como seria esperado que se comportasse diante da responsabilidade que a sua condição de presidenciável “exige” (e ele liga para isso?! E se ligasse, por pura hipocrisia! E na verdade, insuflar o medo é estratégia, claro que ele não iria dissuadir quem o espalha. Estratégia de cansar nossa indignação, nos desmobilizar naturalizando o terror). Para quem pleiteia ocupar o cargo de autoridade máxima de uma nação (embora não decida sozinho, não ainda) e já declarou que o país “só vai mudar com guerra civil, matando uns 30 mil” – e com tortura, nunca com voto, é responsável, sim, tem responsabilidade tácita pelo que dizem e fazem por aí, descontrolados, ameaçando os outros de que “tem que matar mesmo!”. O que está em jogo é a democracia, o processo civilizatório, os princípios estabelecidos por nossa Constituição – capaz de, se deixar o falastrão falar mais, vai dizer que rasga essa também, como disse sobre o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. É muito desrespeito! E seus eleitores comemoram esses feitos “míticos”, como crianças que acabaram de ganhar um presente, e saem desfilando-o para provocar a inveja nos outros. E, pior, por um tempo, o tom beligerante dessa situação instaurada pelo que esse candidato inspira não vai mudar, ainda que ele não ganhasse a eleição, esse ódio abriu a caixa de Pandora! Muita gente vai ser ameaçada, muita gente vai morrer, ganhando ou não as eleições...Tempos sombrios por vir, de todo modo...Mas isso não lhe diz respeito, não é? Desde que sua família esteja segura, acertei? Não são seus direitos sendo retirados, esse medo não é seu medo, então...

Além de todos os casos de ameaça ou violência que aparecem na mídia, tem os que não aparecem. Muitos outros! Já está perto de nós. Inúmeras universidades e outras instituições apareceram pichadas com ameaças, artistas, intelectuais, cidadãos... Intolerância tem de ambos os lados, pessoas “sem noção” também, mas o que estamos assistindo é uma situação de exceção, o crescimento de uma barbárie legitimada, sem precedentes! Onde você ouve o outro candidato sancionar, ainda que tacitamente, qualquer ato de violência e de preconceito? O ser pernóstico e virulento que se anuncia como presidente de nosso país só sublinha tudo isso, que abomino. E em nome de Deus e da pátria! Mesmo não sendo religiosa, me arrepio com esse uso do nome de Deus em vão. Tenho princípios, me sinto mais “religiosa” do que ele. Não posso compactuar com nada disso, nem com quem apoia isso, seja quem for... ainda mais de forma ostensiva e debochada. Deboche que aprendem também com seu líder. Como disse meu marido recentemente, a vida, a situação política, é um jogo de xadrez complexo, não um jogo de damas simples, de comer peças de ambos os lados, como o postulante à presidência e seus eleitores querem fazer parecer, nas críticas que fazem para justificar seu apoio cego ou muito bem consciente a um candidato desse quilate. 

Claro que há entre seus eleitores vários perfis – aqueles que comungam de fato dessas ideias; aqueles que estão cegos de ódio; aqueles que preferem minimizar as barbaridades e sublinhar apenas um ou outro aspecto, por vezes periféricos e banais (ouvi que um taxista vota nele, porque ouviu dizer que ele vai acabar com o Uber!); tem aqueles que riem e acham graça da “sinceridade” dele, o mito!, e creem, veementemente em sua honestidade incorruptível; aqueles que se informam pelas fake news que circulam amplamente – pagas e disparadas ilegalmente, por empresas que têm interesse, claro, no resultado das eleições (compra do envio em massa de notícias falsas, mesmo no terreno “sem lei” do WhatSapp, com ou sem anuência do beneficiado, se incidir nos resultados, é crime eleitoral). Há ainda aqueles que repetem, cortam e colam textos, compartilham “memes”, defendendo ou atacando posições que nem entendem, e aqueles que não sabem onde estão se metendo... Mas os mais insuportáveis são os se comportam exatamente como seu líder: debochados, desrespeitosos, preconceituosos, rasos, toscos, agressivos, autoritários, farsescos, cheios de ódio, pretensos donos da bandeira nacional e das cores da nossa nação, paladinos da moralidade e da honestidade e agindo como se aqui fosse terra “sem lei”, de pouca civilidade e extremamente deselegantes. Desses, tenho e quero ainda mais distância. Se dizem, como seu líder, combatentes da corrupção e da mentira, corrompendo e mentindo; dizem primar pela honestidade, produzindo e divulgando fraudes; exército contra ideologias, mascarando a realidade e produzindo falsa consciência; arautos da moralidade, enquanto arquitetam golpes baixos e escusos, sem ética alguma, fraudando o processo eleitoral para alcançar um resultado – que, inclusive, o dito cujo disse que não aceitará se for diferente do que ele quer, com ares de tirano e totalmente antidemocrático (desde já). E ainda por cima, não tem propostas para o Brasil. É de lascar! Bom, tem o projeto de desmonte, de armamento da população e, quiçá, já não é mesmo um projeto esse de provocar a polarização para justificar o estabelecimento da militarização (a conta-gotas, depois que descobriram que, desse modo, vamos nos acostumando e aceitando as coisas, amortecidos, anestesiados). E já sabe para quem o regime militar foi produtivo, não é?

Assim, não estou suportando proximidade com quem assina embaixo da truculência que o candidato livremente anuncia, e seus partidários já estão praticando... quem não vê o cenário de barbárie que vamos ter que enfrentar... O que está em jogo é a democracia, os direitos conquistados, os valores éticos envolvendo os grupos que sofrem preconceito, e que estão na mira das balas que o candidato tanto idolatra.  Candidato com arroubos autoritários e extremistas, que debocha das instituições do mundo democrático, dos documentos oficiais que protegem crianças e adolescentes, das leis de reparação às atrocidades históricas. Candidato que se estabelece, paradoxalmente, democraticamente, através do processo eleitoral (sem entrar no mérito nos meios de se conseguir isso) – mas foi exatamente como foi o estabelecimento do nazismo alemão – inicialmente, pelo voto, e com discursos e estratégias muito semelhantes...Ditadura institucionalizada pelo voto! Aliás, pelas leis brasileiras – que eles vão mudar, pode ter certeza! – é crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, com reclusão e multa. Só no Brasil mesmo, as leis, descumpridas escancaradamente, não só ainda não colocaram esse homem, e vários de seus seguidores na cadeia, como vão elegê-lo!!!  

O candidato mostra ainda sua face deselegante e nada democrática ao negar-se a debater propostas, proferindo indelicadezas que em nada respeita o jogo eleitoral, ao negar-se a acordar pela verdade na campanha, valores simples, óbvios e civilizatórios. Não sabe se posicionar entre o que pode e o que convém. Escancara seu jogo sujo e é aplaudido. Inverte o discurso parecendo um doido. Mas não é...sabe muito bem o que está fazendo, e por isso se abstém covardemente do debate, criando justificativas escusas para reduzir sua campanha ao “relacionamento direto com o eleitor”. Convenhamos! Justificativas toscas...afronta nossa inteligência.

É realmente de temer quem defende armar sem controle uma sociedade que já mostra que o valor da vida se esmaece a cada discussão por qualquer bobagem ou discordância. Aliás, tenho muita dificuldade em compreender quem tem filhos ou trabalha com crianças achar normal um candidato que faz apologia à ideia de colocar armas na mão das crianças de 5 anos, com o argumento de aprenderem a atirar para não crescerem covardes, retirando delas a infância e valorando uma sociedade militarizada, perversa. A imagem de uma criança em seu colo repetindo gesto de atirar, para mim, não só é insustentável, como deveria ser crime! Várias imagens de crianças com armas...o que isso significa? 

Mas, apesar disso tudo, tenho mais medo mesmo é desse general, militar de linha dura, simpatizante declarado da ditadura, e que faz declarações inconcebíveis, e até com chicote na mão (!!!). Me amedronta mais do que o candidato à presidência. Candidato que, aliás, é capitão. Figura populista farsesca de farda e arma empunhada...mas tenha medo...Longe de rir da farsa, do fake, do tosco, tempos sombrios se anunciam...A hierarquia militar é muito rígida...só isso já deve dar notícia de que há algo “podre no reino...”. Teremos um vice-presidente muito mais perigoso do que o preconceituoso, machista e misógino presidente, anunciando, inclusive, que a ditadura – que por ora tememos metaforicamente (e se não teme, mais razão ainda para sermos de outro planeta!) – pode se instaurar novamente no nosso país. Dizer que o medo é injustificável é, senão ingenuidade, uma grande malandragem. E mesmo que não seja o caso, que esse medo não se concretize, jamais posso sentar ao lado de alguém que apoia quem homenageia um torturador da “sucursal do inferno” (como tal torturador declarava em suas ameaças), ainda mais um que torturou pais, em condições subumanas, na frente de suas crianças. Crianças!!! Isso não é humano. Não é aceitável! Não entendo um pai, uma mãe, um professor, uma professora, não ver horror nisso, desculpar, tapar com a peneira, fazer concessões por que o ódio ao PT é maior (???). Aplaudir! E é isso que estão aplaudindo e elegendo como presidente e vice-presidente, este último, candidato declarado a tomar o poder caso algo saia dos trilhos. Fazer apologia, hoje, ao nazismo é crime, tanto na Alemanha, como em vários países, inclusive no Brasil, e aqui elegemos quem nega a ditadura militar brasileira, defende a tortura e idolatra torturador – e dos mais cruéis! Sou educadora, tenho filho, não posso admitir tal descalabro. E isso no Plenário da Câmara! Devia ir preso por isso! 

Se hoje podemos discordar, é porque existe democracia. Essa falácia de que a ditadura só o foi para os comunistas/terroristas, “comedores de criancinhas”, é uma afronta à história (lembrando que até crianças foram consideradas subversivas), um desrespeito ao ativismo, que, inclusive, é pauta dele calar, exterminar. Não sente cheiro de forte censura no ar? Uma professora não pode concordar com a reescrita da história, que produz o apagamento dos horrores, idolatra torturadores, muda termos para amenizar fatos e apagar pretensas ideologias, com novas ideologias (mas, deixa quieto, detectado o uso de conceitos complexos e polissêmicos de forma simplória), já que a mudança reflete maneiras diferentes de entender o passado e o presente. Reescrita que reconta as atrocidades cometidas do ponto de vista dos militares (neutros eles?), muito parecidos com esse general que teremos como vice-presidente, que minimizam, inclusive os grandes genocídios da história da humanidade... Vice que abre a boca e fala coisas que são inadmissíveis pelos princípios éticos, e registrados na nossa Constituição. 

O argumento atual de que “se der errado, a gente tira ele”, é o argumento de quem não viveu ou não entendeu a ditadura militar e acredita que os torturados foram merecedores do que passaram, pois “as pessoas de bem” viveram bem no “regime” militar (amenização detectada!) salvador da pátria! Alguma semelhança? Até o lema do 17 é plágio do lema de Hitler! O que dizer do uso de ferramentas simbólicas para iludir, conseguir adesão acrítica (e depois controlada e vigiada mesmo), de forma a capturar e manter manadas sob seu domínio? E se, mesmo assim, é tudo isso mesmo que os eleitores dessa dupla explosiva pensa e lhes agrada, então não tenho absolutamente NADA em comum com essas pessoas. Vamos ver no que isso vai dar...só lembrando que, se em 1964 foi golpe, em 2018 terá sido por escolha... E se medo injustificado for (Tomara! De verdade, não tenho apego a comemorar as previsões certas acima do mal que elas venham nos causar), se for medo vão, de todo modo, os restos e sobras desse cenário não me permitem me sentir irmanada aos que vislumbram essa gente no poder. É chocante! Não posso entender que o antipetismo seja maior do que tudo isso. Já tem antipestita estampando seu apoio e seu voto à democracia que, por hora, é representada pelo PT e coligações. E seguirá se opondo, criticando... Eu mesma nem acho que era hora de, no cenário político atual, ser o PT a opção como oponente ao crescimento do 17. Não nesse momento de ódio e polarização. Mas assim foi, e agora é essa a opção pela democracia.

Assim, por via das dúvidas, mesmo sabendo que algumas pessoas apoiam a candidatura do você-sabe-quem por ignorância do que se anuncia e pode estar por vir, ou por uma cegueira obstinada, deletei todos os “amigos”, assumidamente 17, de meu Facebook. Menos você. Pelo fato de termos uma troca anterior a essa disputa. Entendo que não se trata aí de ser intolerante numa disputa política, mas de uma divergência moral, ética, de valor de vida, que mexe na essência do que sou... E sou mulher, professora...da universidade pública, que muitos de você tacham de antro de comunismo (que não se instalou, contrariamente ao medo infundado, em 13 anos de PT, longe disso...e continua, pelo visto, “comendo” criancinhas...). Trabalho muito pela educação (e foi como nos conhecemos), pela formação humana, pela formação do leitor competente e crítico, pela infância, pela cultura, pela vida, não posso aceitar insinuações de que somos projetos de comunistas, esquerdopatas encostados, que não fazem nada devido à estabilidade, que mamam do dinheiro público. Que falta de respeito! Sou pesquisadora, não posso aceitar que insinuem que as pesquisas da área de humanas são desimportantes, inúteis ao vasto mundo, visto apenas pela lente estreita e interesseira do mercado. Discurso de mundo que transforma o que é complexo em simplório, xadrez em dama, investe em desconhecimento como forma de controle, esconde os conhecimentos e valores históricos e socioculturais debaixo do tapete, confunde visão social com comunismo, reduz o humano a manada, a consumidor, a força de trabalho, voltando ao obscurantismo em termos de ciência, educação e política... Indignação, revolta e tristeza são palavras poucas...desencanto com a humanidade. E sou nordestina...letrada, não uma pobre alienada, manada e coitada, como somos retratados na análise rasa e claramente interessada feita da situação do primeiro turno no Nordeste, inclusive por você. Não posso compactuar com visões preconceituosas do meu povo. Povo que, justamente por ser pobre, soube reconhecer as melhorias que houveram nos últimos anos, o que perdeu-se nos anos pouco depois do impeachment injusto, golpe articulado, e que sabe que mais direitos serão retirados nessa gestão. Vi, como professora da UFBA, estudantes que nunca teriam chegado à universidade não fossem as oportunidades abertas no governo Lula, e hoje estão empregadas em grandes colégios, pequenas escolas ou concursadas na rede municipal, professoras com muito orgulho! Inclusive filhas de pais analfabetos. E nos enchem de orgulho. Em outras áreas também. Não poder reconhecer isso pela cegueira, ou pior, não ver valor algum nisso e chamar o povo nordestino de coitado e manipulado, e a universidade de reduto esquerdista, por defender a dignidade social, a equiparação de oportunidades, é um disparate. Não consigo engolir. A tal propalada mudança não é para o povo! Quem é mesmo que está cego e ignorante? Sinto pelo tom agressivo...mas mexeu com o nordestino, mexeu comigo!

Desse modo, pelo menos por enquanto, vou desfazer nossa amizade aqui no Facebook, onde a palavra “amizade” é só retórica, na verdade. Só gastei meu tempo (pequeno, porque trabalho muito) para escrever minha justificativa, longa, muito longa, para desfazer a amizade, por consideração a você. Não fiz isso com nenhuma outra pessoa. Desfiz apenas. Não por achar que uma palavra sequer escrita aqui fará algum efeito. Não tenho essa ilusão. Nem de longe! Assim como também não preciso de argumentos contrários ou justificando o ponto de vista antipetista,  conheço-os todos – os pertinentes, os exagerados, os fantasiosos e os fakes. Nem mesmo vou desafiá-la a repensar se os seus valores realmente comportam esse tipo de ideais, de posturas e de cenários descritos (dilema ético detectado?). Não tenho ne-nhu-ma ilusão de me fazer ouvida. Então, além de ter me servido como desabafo – eu estava mesmo precisando – trata-se apenas de justificar minha atitude, com um clique, no Facebook, por consideração a você (minha oposição a você não é irracional, como é, muitas vezes, a de vocês por nós. A de seu candidato ao meu). É simplesmente porque está me fazendo muito mal ter essa energia por perto nesse momento. Como eu disse, não é intolerância política da minha parte, não é questão de divergência partidária – que a gente debate, discorda, acolhe, respeita, e volta para casa para dormir e levar a vida, no estado democrático. É diferença moral, ética, de visão de mundo. Embora eu saiba que o opressor sempre tem entre seus apoiadores aqueles que ele oprime, não posso conceber uma pessoa, ainda mais uma professora, que assine embaixo de uma visão de mundo na qual a humanidade é perdida, robotizada para servir aos interesses do capital, toda a dimensão da vida reduzida  ao domínio do útil atropelando o “desútil” da poesia da vida, do que constitui os sujeitos como sujeitos, e não como sujeitos “objetificados”, objetos dos interesses dos endinheirados. Mas, ok, essas pessoas existem! Mas nem precisa ir nesse nível de complexidade e humanidade – coisa que está ao alcance de poucos eleitores de seu candidato. Embora sejam muitos os motivos para eu desfazer essas “amizades” de quem apoia essa visão de mundo, basta um motivo para nos pôr em lados completamente opostos, em planetas distantes: não posso compartilhar nada com quem apoia candidato que defende a tortura e idolatra torturadores...e mais, que acharam justificável a vileza de torturar pessoas na frente de seus filhos. Não, isso, não!

E, por isso mesmo, talvez essa “amizade” nem possa ser recosturada (ainda que amizade distante de Facebook), e em torno de interesses comuns de trabalho. Trabalhamos com a infância, para mim é chocante que esse interesse, pela forma em que a criança e a educação estão postas nas ideias de seu candidato, se desdobre em visões de mundo tão díspares! Mas quem sabe, embora essa situação toda descortine para mim do que ainda somos capazes como humanidade, e nunca mais eu vá olhar as pessoas do mesmo jeito, talvez possamos, no futuro, mesmo sabendo que pensamos muito diferente, restabelecer o contato, depois de passado tudo isso e, especialmente, depois de vermos as consequências das escolhas que fizemos hoje. Mas hoje não. #elenão!


Lica, outubro de 2018

P. S. 1.  #elenão com hastag!

P. S. 2. Para quem não sabe, “você-sabe-quem” é o nome dado ao inominável Voldemort, vilão maior da saga Harry Potter, também referido como “Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado” ou ainda “Aquele-Cujo-Nome-Não-Deve-Ser-Pronunciado” ou apenas “Lorde das Trevas”.

P. S. 3. Sobre fascismo, sabemos muito bem o que é, diferente do que pensa e de quem repete, feito papagaio de pirata, esse contra argumento, querendo desqualificar os argumentos. Conceitos são complexos e dinâmicos. No tempo de neoliberalismo extremo e de redes sociais, certamente, esse conceito pode tomar outras feições. No futuro, saberemos a cara que tem o fascismo que troca o pilar antiliberal pelo neoliberalismo desenfreado na economia e “ditadura” do mercado.

P.S.4. Escrevi tudo isso antes do episódio em que o presidente eleito e uma deputada mais louca ainda que ele, se manifestaram publicamente sobre estudantes filmarem as aulas dos professores para denunciá-los. Ainda bem... o tom meio ácido desse texto teria sido sulfúrico... professor não vale NADA para essa gente... E temos que ver isso mesmo - os oprimidos apoiando seus opressores cegamente. Porque se é apoio consciente, e não cego, então professora é o que você NÃO É!

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Minhas andanças em Minas

Olá, gente,
Folder da minha palestra no Ceale Debate
Faço esse post para registrar minha viagem a Minas, de 26/10 a 28/10/2018, a convite da FaE (Faculdade de Educação), da UFMG, através da professora Daniela Montuani

Fui falar no Ceale Debate, evento do Ceale - Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da FaE, coordenado, no momento, por Daniela, bem como apresentar minha pesquisa sobre jogos e materiais pedagógicos na alfabetização e fazer uma oficina de produção de material para a equipe de professoras de Lagoa Santa, município próximo a Belo Horizonte, onde a professora Magda Soares desenvolve um trabalho com a rede municipal de ensino, através do projeto Alfaletrar

Bom, mas como falei em Magda Soares...começarei por ela. Como ela não pôde participar dos eventos em questão, fomos visitá-la em sua casa em BH. Que pessoa encantadora e generosa...quis me conhecer ao vivo e me acolheu tão bem... Magda! Obrigada por tudo! E que escritório lindo! Quando eu crescer, quero ter um igual!!! :)  


Queria presentear Magda com um mimo pessoal e que tivesse a ver com nossa afinidade pela alfabetização. Então, dei a ela a capa da minha brochura (ainda a sair) sobre o abecê nordestino, feita especialmente para essa publicação pelo J. Borges e, claro, devidamente emoldurada e embalada, com cartãozinho de agradecimento

Depois de muitas conversas, era hora de voltar para nos preparar para o Ceale Debate. Ainda meio rouca...saída de um processo longo de rouquidão - fiquei até afônica! - e ainda que a voz não tivesse 100%, deu tudo certo! 

Minha fala foi sobre Textos poético-musicais da tradição oral na apropriação da linguagem escrita, como no Ceará, recentemente. Mas dessa vez, numa fala com maior duração...embora sem a Canastra Real! Mas Dani deu um jeito de arrumar um estudante da UFMG que fez o introito cantante para colocar a galera no clima. Obrigada, Maurício!

A mesa foi composta por mim e por Daniela, coordenadora atual do Ceale Debate.

Eu e Daniela Montuani

A palestra está disponível abaixo, ou aqui, em melhor resolução. Posteriormente, aqui.



No dia seguinte, partimos para Lagoa Santa, que é bem perto de BH, para fazer a Oficina de produção de materiais para as "meninas de Magda". Da parceria de Magda com a rede municipal de lá, através do projeto Alfaletrar, foi constituído um Núcleo de Alfabetização e Letramento na rede, e estão fazendo um trabalho coletivo e consistente de acompanhamento da alfabetização. As professoras já produzem jogos e materiais, seja a partir dos objetivos de aprendizagem, seja de dificuldades específicas que sua turma revela no decorrer do ano. Tanto essas produções de material, quanto o que produzem relativo à leitura literária, constituem dois eventos que acontecem cada um num ano: o Alfalendo, de literatura, e o Paralfaletrar, a mostra de jogos e materiais produzidos por elas. No ano que vem vou tentar ir no Paralfaletrar. Vamos ver!

Diante disso, a galera já tem a manha, e a oficina transcorreu de forma leve, apesar de rápida. Foi a própria Magda quem escolheu os materiais do meu acervo que seriam disponibilizados para elas produzirem na oficina. Algumas alunas da UFMG, especialmente as bolsistas de Daniela, participaram também. 




No outro dia, apresentei minha pesquisa na FaE, no Grupo de Pesquisa em Alfabetização, do Ceale (GPA/CEALE/FaE/UFMG). Foi muito bacana poder compartilhar a pesquisa com outros pesquisadores da área, ainda mais no Ceale - centro que é referência, junto com o CEEL, no campo da alfabetização no Brasil. É muito bom trocar com os pares que comungam das nossas concepções, epistemologia e posicionamento político quanto à alfabetização no nosso país. Assim, conheci as professoras Francisca Maciel (atual diretora do Ceale), Sara Mourão Monteiro, Isabel Frade, dentre outras.


Dani, eu, Isabel Frade e Francisca Maciel
Registro também a minha alegria de conhecer Isabel, que só via de longe nos eventos, e de ter podido, em off, conversar com ela também sobre a minha outra pesquisa - a do abecê nordestino - já que ela se dedica à história da alfabetização, dos materiais didáticos do passado.  

Depois disso, um passeio pela FaE, foto no grafite de Magda no pátio da Faculdade, e presentinhos... ganhei o Glossário Ceale e outros materiais lá para o Laboratório de Acervos Pedagógicos, lá da FACED/UFBA (projeto articulado a minha pesquisa). Mas, olha, ganhei queijo Canastra e goiabada Cascão também, viu? Porque ninguém é de ferro! Aliás, comemos muito bem esses dias, né, Dani?! Ô terra boa é Minas!

É isso, gente! Muito produtiva essa ida a Minas, à qual agradeço imensamente a Daniela Montuani, contando que teremos ainda outras trocas, parcerias, coisas em conjunto. Aliás, já temos duas publicações em vista! Um Dossiê de Alfabetização numa revista de lá, que ela está coordenando, e me convidou a submeter um artigo, e um livro cá, que estou organizando com Patrícia Camini (UFRGS), Gabriela Medeiros e Silvana Zasso (ambas da FURG/RS), e para o qual convidei Dani a participar também. Esse será sobre recursos didáticos. As coisas estão acontecendo!

E tudo começou (para isso aqui), a partir de uma entrevista comigo, que está postada lá no site do Alfaletrar, aqui. É só clicar em "saber mais" ali onde indica a minha entrevista "Alfabetização em jogo". Essa entrevista foi um convite de Sônia Madi, que trabalhava na plataforma Alfaletrar, antiga professora minha e também seguindo fazendo coisinhas juntas agora. Foi a partir dessa entrevista que Daniela fez o convite para tudo isso...e muito mais!


E assim, vamos nessas parcerias interinstitucionais, que nos ajudam a fortalecer as discussões comuns que nós nos empenhamos em fazer. Em outubro, parto para Pernambuco! Vou apresentar minha pesquisa lá no CEEL/UFPE, a convite de Carol, a Ana Carolina Perrusi Brandão, e participar de uma banca de doutorado de orientanda de Artur Gomes de Morais. Vamos que vamos! 

Inté o próximo post!

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Para relembrar...
Mesa intitulada Jogar é coisa séria, no Seminário nacional do PNAIC, em Sobral, Ceará, em novembro de 2016.

Clique aqui.

Minha fala só começa lá pela 1h48, mas as falas, antes da minha, de Rafaella Asfora e Wilma Pastor, ambas da UFPE, são também sobre jogos - jogos adaptados para crianças com necessidades especiais.

É isso, minha gente!


domingo, 26 de agosto de 2018

E os fonemas?

Nesse post, vamos falar de consciência fonêmica e grafofonêmica/fonografêmica, ou seja, a consciência metalinguística relativa ao fonema e a sua relação com a grafia. Aos que são estudiosos da área de letras, indico a observação no final da postagem, certo?

Embora a unidade fonológica que estrutura o sistema de escrita alfabética seja o fonema - pois os grafemas notam os fonemas, a reflexão fonológica sobre rimas e sílabas é muito importante para chamar a atenção para a dimensão sonora da língua e as diversas segmentações da palavra, importante na alfabetização inicial e, de qualquer modo, conferem um perfil analítico à língua. A consciência fonológica de rimas, sílabas e fonemas vocálicos contribui para a fonetização da escrita e para os avanços rumo à compreensão do funcionamento alfabético da notação da língua. A sílaba, em especial, contribui muito para o entendimento gradual de que o que as letras notam são os fonemas.

Para compreender o funcionamento alfabético, é preciso ir além dessas unidades fonológicas, e analisar as sílabas - unidade mínima de emissão sonora e, por isso muito mais natural para sujeitos não alfabetizados - em unidades menores, desenvolvendo a consciência fonêmica. Mas esse subtipo de consciência fonológica, diferente de ser prévia à escrita, se desenvolve junto à apropriação da notação alfabética. A análise oral apoia-se na palavra escrita e essa amplia a análise do oral. O fonema consonantal é uma unidade fonológica muito abstrata para quem não é alfabetizado. E por que isso?  

Os fonemas vocálicos soam, não é mesmo? As vogais são essas letras que representam sons que soam isoladamente, que não encontram obstáculos ao serem pronunciadas, e seus nomes coincidem com seus sons (ou alguns dos sons que assumem). Então é bem fácil observá-los oralmente e associá-los às letras que representam. Entretanto, os fonemas consonantais não soam isoladamente. Eles "soam com" - o nome consoante vem justamente daí, já pensou nisso? E soam com quem? Com as vogais! Por isso são tão abstratos, eles não são pronunciáveis nem perceptíveis isoladamente, porque a mínima emissão sonora é silábica - dizemos MA-LA, não M-A-L-A, não é? Além disso, é preciso considerar também que o fonema é uma unidade mental, não um som, pois a sua materialização pode ser de sons diferentes: a palavra DIA por exemplo, pode ser pronunciada como /Dia/, como se diz em algumas partes do Nordeste, ou algo como /djia/, com um chiadinho. O som muda, a palavra não. Então trata-se de um só fonema, pois a troca de fonemas troca, necessariamente, a palavra - esse é o conceito de fonema, ser uma unidade distintiva. Então, o que temos aí são alofones, dois fones diferentes, para o mesmo fonema. Fone é a materialização sonora do fonema. Parece complicado, não é? Mas é isso que garante que as palavras, seja lá a variedade linguística em que forem pronunciadas, continuem sendo a mesma palavra.

E como a unidade mínima de emissão sonora é silábica, pois não pronunciamos fones isoladamente, a não ser no contexto do ensino do sistema alfabético, a consciência dos fonemas não se dá pela emissão sonora (que é silábica), mas no contato com a própria escrita alfabética. O fonema consonantal não preexiste ao sistema alfabético como unidade sonora, tomar consciência da existência dessas unidades mínimas vem da necessidade de relacioná-las aos grafemas da escrita. Assim, é em situações de reflexão sobre as palavras escritas que o fonema ganha materialidade e pode, então, ser analisado pelas crianças. A presença da escrita amplia as possibilidades de análise fonológica, pois a escrita fornece um modelo de análise para o oral. É por isso que podemos dizer que a consciência fonêmica é, na verdade, consciência grafofonêmica. 

A consciência fonêmica não implica, necessariamente, a habilidade de pronunciar fonemas isolados e a segmentação artificial das palavras oralmente em todos os seus fonemas, como propõe a perspectiva dos defensores dos métodos fônicos. Mas também não há isso de achar que é impossível ter consciência fonêmica antes de estar alfabetizado. A relação entre consciência fonêmica e capacidade de leitura e escrita da notação alfabética é de causalidade recíproca, uma vai ampliando a outra, algumas habilidades são necessárias para se alfabetizar e outras se desenvolvem com a compreensão gradual do sistema. Há diferentes habilidades relativas ao fonema, umas, inclusive, são difíceis mesmo para os já alfabetizados. Por isso, é importante que as situações de reflexão sobre os fonemas se dêem em presença da escrita, se constituindo, na verdade, como consciência grafofonêmica. 

De todo modo, é bom ter em mente que, ainda assim, podemos brincar oralmente com os fones em duas situações, primordialmente:
  • “Esticando” os fricativos (/f/, /v/, /x/, /j/, /z/, /s/) e vibrantes (/R/, /r/ - R forte e fraco), numa tentativa de pronúncia isolada, em situações de jogo com a língua. Os fricativos são esses fonemas que friccionam, cujo obstáculo ao serem pronunciados não é total, mas parcial. Brincar de achar figuras que começam como "xxxxxxícara"..."xxxxxxá" (lembre que é o som que vale, não a letra, como o som /ssss/, pode ser sapo, cinto, cinema, sala, cera...); Lá vai a barquinha carregadinha de /sssss/sapo, /sssss/sorvete, /ssss/cinto...
  • Em sua repetição, aliteração, como nos trava-línguas – e aí, mesmo os fonemas oclusivos, mais difíceis de serem percebidos e pronunciados isoladamente, se tornam mais salientes. Os oclusivos são os fonemas que encontram obstáculo total ao serem pronunciados (/p/, /t/, /d/, /b/, /g/, /k/...).  Nos trava-línguas, mesmo os fonemas oclusivos se tornam observáveis por sua repetição: repare o /p/ se "amostrando" em “A pipa pinga, o pinto pia, quanto mais o pinto pia, mais a pipa pinga”  ou em “O peito do pé de Pedro é preto”.
É bom ressaltar que seja apenas brincando, seja já analisando oralmente essa unidade que trava a língua, seja observando essa repetição também no texto escrito, o trava-língua contribui para alfabetizar - no nível epilinguístico, ainda não muito consciente, controlado, explícito, apenas brincando; e, depois, no nível metalinguístico, de consciência fonêmica, analisando essas aliterações oralmente (observar o som que se repete e trava a língua) ou em presença da escrita (que letras indicam, no trava-língua escrito, as sonoridades que dificultam a pronúncia). 

Alguns autores, como Morais (2019), indicam que, em termos de consciência fonêmica, para se alfabetizar, basta identificar palavras que começam com o mesmo fonema e produzir palavras que começam o mesmo fonema que outra, tendo relação com a consciência de aliterações. Segmentar palavras em fonemas e contá-los, bem como ouvir e produzir fonemas isolados não seriam habilidades necessárias para se alfabetizar.

O sistema alfabético é um sistema complexo, não um código de transcrição da fala e, portanto, não se trata de memorizar e treinar associações entre fonemas e grafemas. Trata-se de atividade cognitiva, metacognitiva. Assim, se quando falamos em consciência fonêmica não se trata de artificializar a língua, pronunciando os fonemas de uma palavra isoladamente, nem de aprender os sons das letras fora do contexto das palavras, memorizando mecanicamente suas associações com os grafemas, qual seria, então, a abordagem da unidade fonema - além dessas brincadeiras orais - nas situações de reflexão linguística em presença da escrita? 

Acredito que a abordagem vai em duas direções, principalmente, que envolvem dois aspectos interessantes do fonema, que nos ajudam a refletir sobre isso: sua propriedade como unidade distintiva e sua propriedade de invariância (desculpem a simplificação, para os que são de letras e estudam fonologia). Vamos lá?

Como o aspecto distintivo define o fonema, começaremos por ele. E isso quer dizer o que? Fonema é uma unidade distintiva em uma língua, isso quer dizer que, se for trocado por outro em uma palavra, tem-se uma nova palavra, com um sentido diferente. Por exemplo, PATO e RATO são duas palavras diferentes, pois trocando o som /p/ pelo som /R/, mudou o sentido da palavra. Desse modo, /p/ e /R/, nesse contexto, são fonemas, fonemas diferentes. Ou seja, os fonemas existem nessa oposição a outros fonemas, a troca de um fonema em uma palavra forma, necessariamente, outra. Nesse exemplo, mudando-se apenas o fonema inicial, mudou a palavra e se um determinado som é distintivo, configura-se como um fonema. É importante sublinhar que o uso dos fones /R/ ou /r/ na palavra PORTA não muda a palavra, ela pode ser pronunciada com o R forte ou fraco, continua sendo uma porta, nesse caso são alofones, realizações fonéticas diferentes devido a variações dialetais. Ou seja o fonema /R/, por exemplo, ora é fonema (PATO-RATO), ora é alofone (/poRta/ x /porta/, com som forte e som fraco. Nesse caso, há perda do contraste fonêmico, há apenas variação de fones.

Desse modo, trabalhar as trocas de fonemas/letras iniciais é fundamental para a consciência grafofonêmica.. Há jogos e materiais estruturados que focam, justamente, essas comutações, como alguns do meu acervo (Adivinhas par mínimo, foto abaixo), jogos comerciais (como o Boggle Slam) e do acervo do CEEL (Bingo de Sons Iniciais, foto abaixo). 




Palavras que se distinguem apenas por um fonema  - e não necessariamente o inicial - são definidas  como pares mínimos, que são também muito usados como recurso poético. Sobre isso, veja nesse post sobre isso no poema O Colar de Carolina, de Cecília Meireles. No poema “Tanta Tinta”, da mesma autora, ela brinca também com os termos TINTA, TONTA, TENTA, pares mínimos que fazem a festa no poema, e ainda os desdobra em outras palavras. Os pares mínimos são sonoros e, por isso, servem muito bem à poesia! E eles têm muito a ver também com consciência fonêmica. Todos esses recursos que Cecília usa em seus poemas (e muitos outros autores), são matéria prima da poesia e também matéria prima da alfabetização! Para saber mais sobre o par mínimo e ver algumas brincadeiras envolvendo a alfabetização, veja essa postagem aqui mesmo no blog.  

Vê como  o aspecto distintivo do fonema está em jogos e na literatura? E na tradição oral, também pode estar! Nesse exemplo de atividade abaixo, a partir da parlenda “Cadê o toucinho que estava aqui?” também vemos essa abordagem:

Depois de brincar com a parlenda, saber se conheciam e as diferentes versões que conheciam, de pesquisar essas versões, a professora colocou no quadro uma delas:

Cadê o toicinho 
que estava aqui?
O gato comeu
Cadê o gato?
Foi pro mato
Cadê o mato?
O fogo queimou
Cadê o fogo?
A água apagou...

Depois disso, ela sugeriu à turma criar oralmente mais versos para essa parlenda, incluindo um rato e um pato nesse encadeamento, e deixou as crianças discutirem e acharem uma solução. Percebe que, nessa proposta, ela tanto brinca com esse repertório como tradição, herança de nosso povo, como gênero oral, que abriga várias versões, pois vai mudando no tempo e espaço, quanto como renovação desses textos da cultura da infância? Pois bem, depois de muitas  propostas e negociações para "renovar" essa parlenda, ela ficou assim:

Cadê o toicinho 
Que estava aqui?
O rato comeu
Cadê o rato?
O gato espantou.
Cadê o gato?
Saiu com o pato.
Cadê o pato?
Foi pro mato
Cadê o mato?
O fogo queimou
Cadê o fogo?
A água apagou...

Depois de discutirem sobre rimas, a professora colocou no quadro a parlenda escrita e quatro palavras do texto: RATO, GATO, PATO e MATO. E propôs analisarem as semelhanças das palavras rimadas em -ATO, e as crianças observaram que terminam com as mesmas letras, do som ATO. Observaram também que só mudando a letra inicial – e o som inicial – a palavra vira outra. 

O interessante dessa situação é que uma criança começou a experimentar escrever ATO com todas as consoantes do alfabeto, em ordem. A professora gostou da proposta e aproveitou na sua aula! Ela fez uma tabela, propondo que, depois de juntarem todas as consoantes com –ATO, separassem as palavras que existem das que não existem. As crianças foram sugerindo, discutindo, a professora, junto com elas, ajustando, e a tabela ficou assim:


A situação gerou ainda muitas conversas como por exemplo: sobre o que é BATO, CATO, LATO...que foram sugerindo frases e a professora conduzindo para que compreendessem que se trata de verbos conjugados; falaram sobre XATO existir no som, mas ser escrita com CH e não com X; sobre o significado de NATO, que acharam que não existia; sobre QATO não poder, porque Q sempre vem com U - essa é uma restrição da língua - e com U ia ficar QUA; falaram ainda que DATO não existe, mas DATA sim...Ou seja, a atividade favoreceu não apenas a consciência fonêmica em presença da escrita (grafofonêmica), mas outras conversas e aprendizagens muito produtivas sobre a língua, seus aspectos semânticos, morfológicos e ortográficos.  

Bom, mas por que é importante abordar essas comutações de fonemas/letras na alfabetização? Justamente devido ao que falamos antes: o fonema ganha materialidade ao ser observado no contexto da palavra escrita. Ao analisar RATO-GATO-PATO-MATO, os fonemas que as letras R, G, P e M representam, aparecem, ganham corpo. 

O mesmo acontece quando se trata da propriedade da invariância. A invariância diz respeito à identidade do fonema em itens lexicais (palavras) diferentes, ou seja, compreender, identificar e produzir um mesmo fonema em palavras distintas. É um aspecto da consciência fonêmica que, quando se trata do fonema inicial, envolve a aliteração, um nível importante de consciência fonológica, que pode ser considerado também no âmbito da consciência fonêmica. Vou falar sobre isso trazendo um exemplo. Meu filho Joaquim, uma vez indagou: "Ô, mãe, Zi de Ziraldo (estava lendo, a seu modo de menino de 5 anos, O menino maluquinho, de Ziraldo) e Zé (apelido do pai dele)...tem algo parecido e algo diferente..." Ele ficou pensativo. Pedi que pegasse o livro e olhasse o nome do pai dele escrito na geladeira (ele tinha uns imãs de letras e montava nossos nomes lá). E ele disse em tom de descoberta, analisando as duas palavras escritas: Zé e Ziraldo: "Aaaaah, o parecido é o Z e o diferente é o E de ZÉ e o I de ZI... o parecido é esse zzzzz (e fez o som)". Vejam que situação interessante de consciência fonêmica na oralidade, que se ampliou (caiu a ficha!) quando Joaquim foi confrontado com a escrita. É disso que se trata aqui. A observação das duas sílabas orais, analisando-as ainda de forma difusa, com uma sensibilidade fonológica a essa diferença fonêmica, em confronto com a escrita, se completou, apoiando a análise do oral. Ele pôde observar a unidade gráfica que representa uma unidade mínima fonológica, abstrata, que não tem uma realidade sonora de forma isolada, mas que no confronto com a palavra escrita, tomou corpo e se apresentou. Fantástico, não é?

Veja a proposta daquela mesma professora que trouxe a parlenda "Cadê o toucinho que estava aqui?", agora com o trava-língua "O rato roeu", para abordar a invariância do fonema. Depois de brincar de trava-línguas, de observar as aliterações do /R/, pedindo às crianças que prestassem atenção aos sons que travam e atrapalham a pronúncia, com a participação ativa das crianças, ela listou as palavras começadas por R do texto com o objetivo de chamar a atenção, através da aliteração, para a identidade do fonema, sua invariância em diferentes palavras. E isso para que as crianças tomassem consciência do fonema através de sua realização pelo grafema no contexto da palavra.


Em todas essas palavras há "algo parecido" no início, como o /z/ de Joaquim, não é? E esse som parecido é o /R/. Percebe que, nessa aliteração, nessa invariância, as crianças passam a prestar a atenção a esse fone? RA-RO-RE-RU-RI, todas essas sílabas, que de início poderiam lhes parecer muito diferentes (e, por isso, grafadas com caracteres diferentes), podem passar a ser analisadas em unidades menores, chamando a atenção ao fonema inicial. Por isso que argumento que as sílabas também ajudam às crianças chegarem no fonema, elas dão pistas sobre os fonemas que as compõem. Trata-se aí de consciência de aliterações, tanto no sentido dado na poesia - repetição de fonemas consonantais - quanto no sentido dado na psicologia cognitiva da leitura - coincidência de fonemas iniciais em duas ou mais palavras.

É importante dizer, no entanto, que, evidentemente, tanto o caráter distintivo quanto a invariância dizem respeito a fonemas em qualquer posição. Mas, o fonema inicial é muito saliente, chama mais a atenção e, por isso, focá-los já é suficiente para contribuir com a consciência fonêmica. Estudos mostram que essas propriedades podem ser generalizadas e, uma vez descobertas, podem ser aplicadas aos fonemas em geral, não precisando trabalhar isso com todos os fonemas em todas as posições nas palavras. 

Mas é importante chamar a atenção para outras particularidades dos sons menores que as sílabas, as unidades intrassilábicas. Observar que PATO e PRATO ou POTE e POSTE  têm algo de sutilmente diferente no som, apesar de sentidos tão distintos, é fundamental também nesse sentido. Colocar foco em unidades intrassilábicas, que são abundantes nos trava-línguas, além de preparar a consciência fonêmica - a mais difícil de todas, também é muito produtivo para trabalhar as sílabas complexas (o R e S aí configuram sílabas complexas, com encontro consonantal PRA ou travada POS). Quanto a isso, ver o post sobre o jogo Trave o trava-língua.

Uma observação importante quando se fala de invariância, é a questão da variação linguística e dos alofones nesse sentido, por isso retomo aqui esse ponto. O fonema é uma unidade concebida mentalmente, a materialidade do som é o fone. Os fones são os sons que, de fato, ocorrem na fala, inclusive os que estão envolvidos na variação da pronúncia das palavras. Ou seja, é fone que é a unidade sonora. No Glossário Ceale, lemos que "[...] nossa ortografia é baseada na relação fonema/grafema e não na relação som (fone)/letra. Se a ortografia tivesse como referência a relação som (fone)/letra, deveria representar qualquer variação de pronúncia e, consequentemente, de fones". O fonema é uma unidade abstrata, uma representação mental desse som, uma unidade que deve representar qualquer pronúncia regional, social, que possa ser dada a uma palavra. Por exemplo, na Bahia e em grande parte do Brasil, pronunciamos TIA como tchia, um som chiado do T, e em outros lugares, como em outras regiões do Nordeste, como tia. O fonema é o mesmo (não muda a palavra, lembra?), mas o fone sim (são alofones). Foi o que indiquei em relação ao se passa palavra DIA, em algumas regiões pronunciado DI, em outras, algo como DJI. A variação do fone não implica em outro fonema. Mesma coisa quem pronuncia poRta, com o R forte, e quem pronuncia porta, com o r fraco, tremido. O fonema é o mesmo, o fone não – lembra da definição de fonema como unidade distintiva das palavras? Pois é. Agora, nas palavras CARRO e CARO, a unidade aí é distintiva, pois nesse caso, muda-se a palavra. Assim, uma coisa são os fonemas (entidades abstratas da língua), que estruturam o sistema, outra são os fones e alofones de variedades linguísticas falada (entidades concretas da fala). 

Assim, simplificando bem, a propriedade da invariância, é de identidade, mas com essas pequenas variações possíveis, no nível dos fones, dos sons concretos, como nesses casos. Bom, já deu para notar que o conceito de fonema é bem complexo. Ele vem da fonologia, uma área da linguística, mas é um conceito importante para o alfabetizador e, inclusive, para uma abordagem consistente da variação linguística no processo de apropriação da escrita. É preciso diferenciar o que são as relações entre fonemas e grafemas e o que é variação do fone em determinada variedade linguística, não confundindo essas duas coisas, que pode gerar, inclusive, conclusões errôneas que define pronúncias como certa ou errada. Além disso, o sistema de escrita, em última instância, representa arbitrária e convencionalmente a língua falada, não codificam diretamente os sons da fala, senão escreveríamos como se fala, não é?

Tanto a invariância do fonema (sua identidade em diferentes palavras), com “O rato roeu”, quanto o fonema como unidade distintiva, como na situação a partir da parlenda “Cadê o toucinho?”, são propriedades que as crianças podem observar em situações de consciência fonêmica em presença da escrita. E jogos, textos da tradição e a poesia literária podem contribuir com o desenvolvimento da consciência fonêmica/grafofonêmica e a apropriação de conhecimentos sobre o funcionamento alfabético da notação escrita, em contextos lúdicos e letrados. Lembrem que a matéria prima da poesia é também matéria prima da alfabetização. Desde que o texto seja contexto e não pretexto para a análise linguística, podemos aprender sobre a língua ao mesmo tempo em que aprendemos sobre a linguagem poética, seus recursos expressivos, suas belezas.  

É isso, gente!

Observação: pessoal de letras, estudiosos da fonologia. Sei bem que o que tento aqui é uma simplificação enorme da complexidade do conceito de fonema e tudo o que ele envolve. Sei também que há correntes diferentes no âmbito da fonologia tanto na história quanto tomada no campo conceitual atual. Espero que me perdoem a possível heresia, mas preciso tornar um assunto complexo, abstrato, e tão importante, para o alfabetizador, minimamente palatável às professoras e professores, articulando-o também à prática pedagógica. Não me ocupo da fonologia pura, mas aplicada, aos que terão a generosidade de me corrigir por algum deslize grave, aceito contribuições de bom grado. Sou diletante na linguística, mas sei de meu papel como educadora.